Produzir de forma agroecológica?
Por Gilvander Moreira[1]
O MST mantém cerca de 20 cursos em nível nacional para formar agentes em agroecologia / Divulgação/MST |
Diante da grande diversidade de
frutas produzidas no Assentamento Primeiro do Sul, do MST[2],
em Campo do Meio, no sul de Minas Gerais - banana, goiaba, maracujá, laranja,
mamão etc. - um grupo de mulheres assentadas organizou e está trabalhando em
uma microindústria de doces para o consumo próprio e venda do excedente na
Feira da Agricultura Camponesa na Praça da Caixa D’água na cidade de Campo do
Meio. As 50 famílias Sem Terra assentadas, em trabalho cooperado, compraram um
tanque coletivo com a capacidade para resfriar 1.500 litros de leite. O
caminhão da cooperativa CAPEBE busca o leite dia sim, dia não. Segundo Sebastião
Mélia Marques, assentado no PA[3]
Primeiro do Sul: “A produção de leite está baixa, pois a prioridade nossa é a
produção de café.”
Para além da produção agrícola e
do leite, a base da produção no PA Primeiro do Sul é a produção de café. A
produção de café no sul de Minas Gerais, próximo a São Paulo, evoca as fazendas
cafeeiras que tiveram seu berço em São Paulo e foram alavancas do capitalismo
agrário no Brasil. Produzia-se café basicamente para a exportação, porque o
café era artigo de luxo. Os fazendeiros de meados do século XIX investiram na
produção e na comercialização de café como instrumento de acumulação do
capital. Não era alimento de subsistência como o feijão, o arroz e a mandioca.
É o que José de Souza Martins, no livro O Cativeiro da Terra, recorda: “O café, na Europa e nos
Estados Unidos, um artigo de sobremesa e foi historicamente um artigo de luxo.
Luxo exibido pelo refinamento de bules e colheres de prata, bules e xícaras de
porcelana finíssima, verdadeiras obras de arte. Foi a bebida da ostentação
social e pública e do prazer da sociabilidade burguesa” (MARTINS, 2013, p.
157).
Entre várias outras
peculiaridades, o sul de Minas Gerais se caracteriza por ser região cafeeira.
As famílias camponesas do MST que ocuparam a fazenda Jatobá, que se tornou o PA
Primeiro do Sul, vieram quase todas do trabalho assalariado nas fazendas de
café da região. Culturalmente tinham a experiência e a tradição de plantar
café. Por isso, já no primeiro ano, em 1997, várias famílias iniciaram o
plantio de café. Mas somente após dois anos de plantio, o pé de café dá a
primeira colheitinha. Sebastião Mélia complementa: “Apenas no terceiro ano, o
café dá uma colheita que quita as dívidas que gastaram com ele e sobra um
pouquinho.” Atualmente, a base econômica do PA Primeiro do Sul é a produção de
café, representando 70% da produção do assentamento. Os outros 30%
constituem-se de produção diversificada: milho, feijão, arroz, gado, hortaliças
e pequenos animais. É o que informa Wadilsom Manoel, Sem Terra Assentado no PA
Primeiro do Sul: “Aqui ninguém planta somente café. Eu, minha companheira e
nossos dois filhos, por exemplo, plantamos 80% do lote em café, cerca de 30 mil
pés de café, em oito hectares do nosso lote. Plantamos também 1.500 pés de
eucalipto. Plantamos feijão no meio do café. No pasto, de forma consorciada,
mexemos com gado e abelhas. Criamos peixes também. Nossa renda varia muito. O
café produz uma boa safra em um ano e no ano seguinte só uma safrinha. Como diz
o Tiãozinho, um ano o café faz o dono e no outro ele se refaz.”
Na cultura do café são feitos
três cortes: o esqueletamento, o corte em cima e o corte embaixo para o pé de
café se refazer. Os assentados fazem 70% do trabalho com auxílio de pequenas
máquinas, mas a colheita ainda continua sendo quase toda manual. O cafezal
precisa de muita chuva e está exigindo muito adubo químico e venenos. Segundo
dados do IBGE, do Censo Agropecuário de 2017, divulgados em 26 de julho de 2018,
o uso de agrotóxicos aumentou 21,2% nos últimos
11 anos no Brasil. A aplicação
de agrotóxicos na agricultura do Brasil se elevou de 2,7 quilos por hectare em
2002 para 6,9 quilos por hectare em 2012, um aumento de 155% no período de dez
anos. Segundo a Revista Problemas
Brasileiros: “Não à toa, o Brasil continua a liderar o ranking mundial do
consumo de agrotóxicos, indústria que movimenta mais de 2 bilhões de dólares ao
ano. O povo brasileiro consome, em média, 7 litros per capita de veneno a cada ano, o que resulta em mais de 70 mil
intoxicações agudas e crônicas em igual período, segundo dados do Dossiê da
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO)”. Cerca de 64,1% dos produtos
utilizados na agricultura em 2012 foram considerados pelos indicadores como
perigosos e 27,7% muito perigosos. A Região Sudeste é a que teve a maior
aplicação de agrotóxicos, com 8,8 quilos por hectare, em 2012. Os três estados
que mais aplicam agrotóxico na produção agrícola são Goiás, Minas Gerais e São
Paulo, sendo que este bateu o recorde de consumo proporcional com 10,5 quilos
por hectare.[4]
O MST está animando os Sem Terra,
no processo produtivo a migrar de “Ocupar, resistir e produzir” para “Ocupar,
resistir e produzir de forma agroecológica”. A luta do MST no sul de Minas
iniciou-se em 1996, época em que o MST entendia a luta pela terra e pela
reforma agrária basicamente como a partilha e a socialização da terra. Já se
discutia reforma agrária para além da democratização da terra, mas era ainda
incipiente a discussão sobre a necessidade e a pertinência da produção
agroecológica. Diante da terra concentrada em poucas mãos, o contexto era de
fome e de miséria avassaladoras. O que predominava era o latifúndio. A reforma
agrária era vista como política pública que viabilizaria a superação do
latifúndio.
Atualmente
o que predomina na agricultura brasileira é o agronegócio, com uso
indiscriminado de agrotóxico, em monoculturas nos latifúndios e utilização de
tecnologia de ponta quase toda ela não nacional. Diante desse novo cenário, a
agroecologia para o MST, para a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a para a Via
Campesina como um todo se tornou um paradigma necessário para a superação do
agronegócio, principal inimigo dos Sem Terra na atualidade. Sílvio Neto, do
MST, ao fazer resgate histórico, reflete: “Com o massacre de Eldorado dos
Carajás foi revelado que o latifúndio é o grande mal. Desmascaramos a crueldade
do latifúndio. O que eles fizeram? Colocaram o agronegócio. O MST tinha se
tornado o novo ao desmascarar o latifúndio como o atrasado, o que mata e
oprime. Mas o agronegócio, se beneficiando do avanço técnico e tecnológico, é
introduzido como algo novo, divulgado aos quatro ventos como algo que vai
elevar a balança comercial, que vai produzir alimentos para toda a população.
Com a chegada do agronegócio nos anos 90 do século XX, o MST passa a ser
considerado como atrasado ao insistir na socialização da terra. Nesse novo
contexto de apropriação da terra e de produção agropecuária, o paradigma da
agroecologia se torna necessário, não apenas porque o MST ama a natureza, mas
porque se torna uma necessidade política para o MST tentar se colocar novamente
como algo novo diante do agronegócio, que é algo mais atrasado do que o
latifúndio antigo. Nós temos sido classificados como atrasados, mas sabemos que
não somos. Mas a sociedade ainda não nos reconhece como o novo que produz
alimentação saudável. A avalanche do agronegócio é muito poderosa.”
Com os
retrocessos aos direitos sociais e ambientais que estão sendo impostos pelo
Governo Bolsonaro fortalecer a luta pela produção de alimentos agroecológicos
se torna mais necessário, pois, por meio do Ministério da Agricultura,
comandado pela ruralista Tereza Cristina, foi liberado quarenta novos produtos
comerciais com agrotóxicos que deverão chegar ao Brasil nos próximos dias.
Alguns, já conhecidos pelos empresários do agronegócio, mas que passam agora a
ser utilizados também em outras culturas, entre elas a de alimentos. Publicação
no Diário Oficial da União de 10 de janeiro de 2019 traz o Registro de 28
agrotóxicos e princípios ativos liberados. Isso é marcha rumo à guerra química.
Por isso, produzir alimentos saudáveis de forma agroecológica se tornou uma
necessidade imperiosa e uma questão ética imprescindível.
Referências.
MARTINS, José de Souza. O
Cativeiro da Terra. 9ª edição. São Paulo: Contexto, 2013.
Belo Horizonte, MG, 22/01/2019.
Obs.: Veja, abaixo, vídeo sobre a Feira da Agricultura Camponesa de Campo do Meio, no sul de Minas Gerais.
[1] Frei e padre da Ordem dos
carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em
Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e
Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos”
no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br - www.freigilvander.blogspot.com.br –
www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
[3] Sigla que designa Projeto de
Assentamento.
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