terça-feira, 1 de janeiro de 2019

O poder da Caverna Sagrada Kamukuwaká – Mitos, Matas e Desafios.


O poder da Caverna Sagrada Kamukuwaká – Mitos, Matas e Desafios.

Por Alenice Baeta[1]

Destaque: Líder indígena mostrando 
detalhes e magias da caverna 
Kamukuwaká, vale do Batovi, 
Paranatinga-MT. 
Foto: A Alquimia da Cura

Em setembro de 2018 foi noticiada a depredação de conjuntos de grafismos rupestres antiquíssimos na caverna Kamukuwaká, situada no município de Paranatinga, estado do Mato Grosso, às margens do rio Tamitatoala ou Batovi, Alto Xingu, na Bacia Amazônica.
Esta caverna, que fica próxima de uma grande cachoeira, é considerada sagrada e de grande importância histórica e espiritual para as onze etnias indígenas que vivem no Xingu. Segundo a cosmologia do povo Wauja ou Waurá (falantes da língua maipure, da família arawak), esta gruta seria lar do ancestral guerreiro Kamukuwaká, que ali teria se defendido dos ataques do inimigo, o Kamo, que invejava a sua beleza e a sua força, transformando a sua casa em pedra, tentando atacá-lo; mas com a ajuda de pássaros foi aberto um buraco no teto rochoso, e assim Kamukuwaká e seus familiares conseguiram escapar para o céu, livrando-se da emboscada.
Os Wauja consideram que há algumas figurações esculpidas nas paredes de sua entrada que representam também a fecundidade da mulher e estas teriam o poder mágico de aumentar a fertilidade das coisas vivas. Ali seria ainda a residência de espíritos Wauja, chamados “Inyãkãnãu”, ou “aqueles que ensinam”.  Os espíritos guiam os xamãs, os Yakapa, que aparecem em visões ajudando a curar os doentes e a promover a harmonia nas aldeias, reativando por meio de terapias rituais as relações divinatórias.
Nos últimos anos, a caverna, apesar da distância das atuais aldeias, também estava sendo utilizada como local de ensinamentos para as crianças e jovens indígenas do Xingu por meio de recursos musicais e artísticos, dons que tão bem dominam, pois segundo eles, a música molda um padrão de convivência produtivo, místico e de grande sociabilidade (Mello, 1999; Barcelos Neto, 2001).
A arte impregna a concepção Wauja, pois este povo é considerado artesão excepcional, inclusive pelas outras etnias da região, possuidores de um repertório gráfico e processos complexos de produção de artefatos cerâmicos, cestaria, plumária, máscaras, miçangas e aerofones (flautas e clarinetes) para  rituais com marcada maestria e peculiaridade tecno-estílistica. A cerâmica Wauja é sua grande especialidade e distintivo, composta por peças com formatos zoomorfos, de diversas dimensões, decoradas por grafismos geométricos variados, mas que traduzem uma complexa cosmologia baseada na relação animais, coisas, humanos e seres extra-humanos, cruciais para a prática do xamanismo e de inúmeros rituais místicos. No trançado, produzem os melhores cestos cargueiros, além de objetos associados ao preparo da mandioca e seus derivados, como pilões, pás de beiju, torradores e peneiras.
Mas esta herança é considerada por eles uma grande dádiva, pois no século XX, o Alto Xingu sofreu grandes perdas demográficas devido às várias epidemias e ações violentas de fazendeiros e garimpeiros. Os índios Wauja foram reduzidos a poucas dezenas de indivíduos. Entretanto, apesar da brutal mortalidade e perseguições permanentes, os Wauja conseguiram guardar em segredo os conhecimentos fundamentais e memórias ancestrais para a sua reprodução étnica e sociocultural, enfim a sua resistência.
Pesquisas arqueológicas e etnográficas sobre a formação da cultura xinguana apontam (Heckenberger 2001; Fausto, 2005) que os grupos arawak teriam sido os primeiros a se estabelecer no Alto Xingu e que os Wauja atuais seriam, possivelmente, seus descendentes mais antigos, responsáveis pela formação das  imensas aldeias circulares e fortificadas que surgiram na periferia meridional da Amazônia entre os anos 1000 e 1450.
A caverna Kamukuwaká faz parte deste território imemorial tradicional tendo sido, inclusive, tombada em nível federal pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), cujo processo encontra-se registrado no ano de 2006 (Processo IPHAN T1535-MT) em função de seus fortes atributos no âmbito natural, arqueológico e etnológico, juntamente com outros sítios sagrados da região, tais como o lugar conhecido como Sagihenhu, que integra o Kwarup, a maior festa ritualística entre os povos do alto Xingu.  Mas, lamentavelmente, o tombamento destes sítios arqueológicos e imateriais magníficos não garante a sua proteção eficaz, inclusive, a partir de 2011 lideranças indígenas já vinham denunciando desmatamento, abertura de estradas, construção de barracões, ranchos, turismo predatório e pesqueiros nos rios Kuluene e Batovi, além de muito lixo, conforme denúncia feita por Tahugaki Kalapalo.
A destruição de figurações rupestres na gruta Kamukawaká indica assim o alto grau de vandalismo, de extrema violência e de desrespeito para com a cultura indígena, seus direitos, territórios e valores no Alto Xingu. Ainda se soma à importância simbólica da gruta o fato dos grafismos parietais serem considerados pela constituição federal patrimônio arqueológico, ou melhor, “Bem da União”, protegido por lei desde 1961 (Lei n. 3.924/61). 
O arqueólogo Michael Heckenberger, que desenvolve profícuas pesquisas sobre a arqueologia xinguana, em entrevista ao Jornal Estado de São Paulo, em setembro de 2018, alertou sobre as peculiaridades estilísticas dos desenhos da gruta de Kamukuwaká que ele considera, sob esta ótica, “absolutamente única”. Do ponto de vista gráfico seriam “nitidamente desenhos xinguanos”, por isto, ele considera um caso de tradição do passado que se liga definitivamente a um povo atual e que continua sendo um lugar dos espíritos de tempos primordiais. Alguns rituais como a “furação da orelha”, por exemplo, se baseiam no sistema imagético da gruta, bem como as pinturas corporais e as decorações plásticas dos artefatos que se assemelham com algumas figuras, motivos e formas inscritas em suas paredes rochosas. O pesquisador insiste na proteção efetiva da caverna e do seu entorno, informando sobre a existência de um local onde foi ainda encontrado um antigo ateliê de lascamento de pedra, quer dizer, uma antiga oficina onde se produzia pontas de flecha e outros instrumentos pétreos.
O desafio dos povos xinguanos continua sendo a defesa incessante das suas fronteiras contra invasores interessados em destruir ou degradar intencionalmente as suas múltiplas formas de memórias, as magias dos seus territórios tradicionais, das grutas, das suas encantadas matas e das suas poderosas águas sagradas.
Segundo dados atualizados publicados pelo Instituto Sócio Ambiental (ISA), mais de 6 mil hectares de floresta na Bacia do Rio Xingu foram devastados somente nos primeiros dois meses de 2018, dando lugar a monoculturas do agronegócio e ao garimpo ilegal. Somam-se ainda 800 hectares que foram abertos de forma clandestina em terras indígenas (TIs) e em Unidades de Conservação (UCs), pressionando ainda o Corredor Xingu de Diversidade Socioambiental, que visa assegurar a proteção de locais vulneráveis e raros da região. 
Que os espíritos ancestrais da caverna Kamukawaká joguem luz e ensinamentos nas mentes da humanidade, muitas delas insanas e individualistas, protegendo e guiando as forças vivas da sociedade para o bem, visando à defesa permanente dos direitos humanos e da justiça social e ambiental.

Referências Bibliográficas:
BARCELOS NETO, Aristóteles. O Universo Visual dos Xamãs Wauja (Alto Xingu). In: Jornal de la Société des Americanistes, vol. 87, 2001.
FAUSTO, Carlos.  Entre o passado e o presente: Mil anos de História Indígena no Xingu. In: Revista Estudos e Pesquisa da Funai, Distrito Federal, Vol. 2, n. 2, dez. de 2005.
HECKENBERGER, Michael. Estrutura, história e transformação: a cultura xinguana na longue durèe, 1000-2000 d.C. In: FRANCHETTO, B. & HECKENBERGER, M. ( Orgs.) Os Povos do Alto Xingu. Rio de Janeiro:UFRJ, 2001.
MELLO, Maria Ignês Cruz. Música e mito entre os Wauja do Alto Xingu. (Dissertação de Mestrado) Centro de Filosofia e Ciências Humanas/UFSC, Florianópolis: UFSC, 1999.

Sites Consultados:



[1] Doutora em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia-MAE/USP; Pós-Doutorado no Departamento de Antropologia e Arqueologia na FAFICH/UFMG; Mestrado em Educação pela FAE/UFMG; Historiadora; Membro do ICOMOS/Brasil-Conselho Internacional de Monumentos e Sítios e do CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva).


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