O
poder da Caverna Sagrada Kamukuwaká – Mitos, Matas e Desafios.
Por Alenice Baeta[1]
Destaque: Líder indígena mostrando
detalhes e magias da caverna
Kamukuwaká, vale do Batovi,
Paranatinga-MT.
Foto:
A Alquimia da Cura
|
Em setembro de 2018 foi noticiada a
depredação de conjuntos de grafismos rupestres antiquíssimos na caverna
Kamukuwaká, situada no município de Paranatinga, estado do Mato Grosso, às
margens do rio Tamitatoala ou Batovi, Alto Xingu, na Bacia Amazônica.
Esta caverna, que fica próxima de uma
grande cachoeira, é considerada sagrada e de grande importância histórica e
espiritual para as onze etnias indígenas que vivem no Xingu. Segundo a
cosmologia do povo Wauja ou Waurá (falantes da língua maipure, da família arawak),
esta gruta seria lar do ancestral guerreiro Kamukuwaká, que ali teria se
defendido dos ataques do inimigo, o Kamo, que invejava a sua beleza e a sua
força, transformando a sua casa em pedra, tentando atacá-lo; mas com a ajuda de
pássaros foi aberto um buraco no teto rochoso, e assim Kamukuwaká e seus
familiares conseguiram escapar para o céu, livrando-se da emboscada.
Os Wauja consideram que há algumas
figurações esculpidas nas paredes de sua entrada que representam também a
fecundidade da mulher e estas teriam o poder mágico de aumentar a fertilidade
das coisas vivas. Ali seria ainda a residência de espíritos Wauja, chamados
“Inyãkãnãu”, ou “aqueles que ensinam”. Os espíritos guiam os xamãs, os
Yakapa, que aparecem em visões ajudando a curar os doentes e a promover a
harmonia nas aldeias, reativando por meio de terapias rituais as relações
divinatórias.
Nos últimos anos, a caverna, apesar da
distância das atuais aldeias, também estava sendo utilizada como local de
ensinamentos para as crianças e jovens indígenas do Xingu por meio de recursos
musicais e artísticos, dons que tão bem dominam, pois segundo eles, a música
molda um padrão de convivência produtivo, místico e de grande sociabilidade
(Mello, 1999; Barcelos Neto, 2001).
A arte impregna a concepção Wauja, pois
este povo é considerado artesão excepcional, inclusive pelas outras etnias da
região, possuidores de um repertório gráfico e processos complexos de produção
de artefatos cerâmicos, cestaria, plumária, máscaras, miçangas e aerofones
(flautas e clarinetes) para rituais com marcada maestria e peculiaridade
tecno-estílistica. A cerâmica Wauja é sua grande especialidade e distintivo,
composta por peças com formatos zoomorfos, de diversas dimensões, decoradas por
grafismos geométricos variados, mas que traduzem uma complexa cosmologia
baseada na relação animais, coisas, humanos e seres extra-humanos, cruciais
para a prática do xamanismo e de inúmeros rituais místicos. No trançado,
produzem os melhores cestos cargueiros, além de objetos associados ao preparo
da mandioca e seus derivados, como pilões, pás de beiju, torradores e peneiras.
Mas esta herança é considerada por eles
uma grande dádiva, pois no século XX, o Alto Xingu sofreu grandes perdas
demográficas devido às várias epidemias e ações violentas de fazendeiros e
garimpeiros. Os índios Wauja foram reduzidos a poucas dezenas de indivíduos. Entretanto,
apesar da brutal mortalidade e perseguições permanentes, os Wauja conseguiram
guardar em segredo os conhecimentos fundamentais e memórias ancestrais para a
sua reprodução étnica e sociocultural, enfim a sua resistência.
Pesquisas arqueológicas e etnográficas
sobre a formação da cultura xinguana apontam (Heckenberger 2001; Fausto, 2005)
que os grupos arawak teriam sido os primeiros a se estabelecer no Alto Xingu e que
os Wauja atuais seriam, possivelmente, seus descendentes mais antigos,
responsáveis pela formação das imensas aldeias circulares e fortificadas
que surgiram na periferia meridional da Amazônia entre os anos 1000 e 1450.
A caverna Kamukuwaká faz parte deste
território imemorial tradicional tendo sido, inclusive, tombada em nível
federal pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
cujo processo encontra-se registrado no ano de 2006 (Processo IPHAN T1535-MT)
em função de seus fortes atributos no âmbito natural, arqueológico e
etnológico, juntamente com outros sítios sagrados da região, tais como o lugar
conhecido como Sagihenhu, que integra o Kwarup, a maior festa ritualística
entre os povos do alto Xingu. Mas, lamentavelmente, o tombamento destes
sítios arqueológicos e imateriais magníficos não garante a sua proteção eficaz,
inclusive, a partir de 2011 lideranças indígenas já vinham denunciando
desmatamento, abertura de estradas, construção de barracões, ranchos, turismo
predatório e pesqueiros nos rios Kuluene e Batovi, além de muito lixo, conforme
denúncia feita por Tahugaki Kalapalo.
A destruição de figurações rupestres na
gruta Kamukawaká indica assim o alto grau de vandalismo, de extrema violência e
de desrespeito para com a cultura indígena, seus direitos, territórios e
valores no Alto Xingu. Ainda se soma à importância simbólica da gruta o fato
dos grafismos parietais serem considerados pela constituição federal patrimônio
arqueológico, ou melhor, “Bem da União”, protegido por lei desde 1961 (Lei n.
3.924/61).
O arqueólogo Michael Heckenberger, que
desenvolve profícuas pesquisas sobre a arqueologia xinguana, em entrevista ao Jornal
Estado de São Paulo, em setembro de 2018, alertou sobre as peculiaridades
estilísticas dos desenhos da gruta de Kamukuwaká que ele considera, sob esta
ótica, “absolutamente única”. Do ponto de vista gráfico seriam “nitidamente
desenhos xinguanos”, por isto, ele considera um caso de tradição do passado que
se liga definitivamente a um povo atual e que continua sendo um lugar dos
espíritos de tempos primordiais. Alguns rituais como a “furação da orelha”, por
exemplo, se baseiam no sistema imagético da gruta, bem como as pinturas
corporais e as decorações plásticas dos artefatos que se assemelham com algumas
figuras, motivos e formas inscritas em suas paredes rochosas. O pesquisador
insiste na proteção efetiva da caverna e do seu entorno, informando sobre a
existência de um local onde foi ainda encontrado um antigo ateliê de lascamento
de pedra, quer dizer, uma antiga oficina onde se produzia pontas de flecha e
outros instrumentos pétreos.
O desafio dos povos xinguanos continua
sendo a defesa incessante das suas fronteiras contra invasores interessados em
destruir ou degradar intencionalmente as suas múltiplas formas de memórias, as
magias dos seus territórios tradicionais, das grutas, das suas encantadas matas
e das suas poderosas águas sagradas.
Segundo dados atualizados publicados
pelo Instituto Sócio Ambiental (ISA), mais de 6 mil hectares de floresta na
Bacia do Rio Xingu foram devastados somente nos primeiros dois meses de 2018,
dando lugar a monoculturas do agronegócio e ao garimpo ilegal. Somam-se ainda
800 hectares que foram abertos de forma clandestina em terras indígenas (TIs) e
em Unidades de Conservação (UCs), pressionando ainda o Corredor Xingu de
Diversidade Socioambiental, que visa assegurar a proteção de locais vulneráveis
e raros da região.
Que os espíritos ancestrais da caverna
Kamukawaká joguem luz e ensinamentos nas mentes da humanidade, muitas delas
insanas e individualistas, protegendo e guiando as forças vivas da sociedade para
o bem, visando à defesa permanente dos direitos humanos e da justiça social e
ambiental.
Referências
Bibliográficas:
BARCELOS
NETO, Aristóteles. O Universo Visual dos Xamãs Wauja (Alto Xingu). In: Jornal
de la Société des Americanistes, vol. 87, 2001.
FAUSTO,
Carlos. Entre o passado e o presente: Mil anos de História Indígena no
Xingu. In: Revista Estudos e Pesquisa da Funai, Distrito Federal, Vol. 2,
n. 2, dez. de 2005.
HECKENBERGER,
Michael. Estrutura, história e transformação: a cultura xinguana na longue
durèe, 1000-2000 d.C. In: FRANCHETTO, B. & HECKENBERGER, M. ( Orgs.) Os
Povos do Alto Xingu. Rio de Janeiro:UFRJ, 2001.
MELLO,
Maria Ignês Cruz. Música e mito entre os Wauja do Alto Xingu. (Dissertação
de Mestrado) Centro de Filosofia e Ciências Humanas/UFSC, Florianópolis: UFSC,
1999.
Sites
Consultados:
[1] Doutora em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e
Etnologia-MAE/USP; Pós-Doutorado no Departamento de Antropologia e Arqueologia
na FAFICH/UFMG; Mestrado em Educação pela FAE/UFMG; Historiadora; Membro do
ICOMOS/Brasil-Conselho Internacional de Monumentos e Sítios e do CEDEFES
(Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva).
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