‘Chico Rei’ e a luta pela superação do
racismo e da escravidão.
Por Gilvander Moreira[1]
Reprodução / Zenaide Zenah e Mário Gusmão |
“Feliz Ano Novo”, dizem pessoas, em uma
padaria, enquanto compram o pão de cada dia. Em Brasília, com o maior aparato
militar de segurança e repressão da história, Jair Bolsonaro toma posse como
presidente do Brasil. Em 8 de dezembro de 1967, o papa Paulo VI propôs a
criação do Dia Mundial da Paz a ser celebrado todo dia 1º de janeiro. Porém,
como conquistar um “Feliz Ano Novo” e Paz como fruto de justiça social,
agrária, ambiental, urbana e com respeito aos direitos humanos fundamentais
diante do cenário e contexto político, econômico, religioso e social que
atravessamos: imensa dívida histórica com o povo negro, racismo institucional,
ascensão do fascismo e igrejas com teologia da prosperidade? Com 54% de sua
população negra, segundo o IBGE, o Brasil continua reproduzindo uma das maiores
desigualdades sociais e raciais do mundo. Essa questão nos remete à história do
povo negro no Brasil e ao filme ‘Chico Rei’.
Dirigido por José Eugênio Muller, o belíssimo
Filme ‘Chico Rei’ narra a história de um negro, Rei no Congo, África, mas
trazido como escravo para o Brasil em navio negreiro e que, após trabalhar
muito forçadamente como escravo em Ouro Preto - Antiga Vila Rica -, em Minas
Gerais, teria comprado sua alforria e a de muitos outros negros escravizados. Chico
Rei trata-se de uma lenda, mas que inspira muitas reflexões e posicionamento
diante da escravidão contemporânea que continua crescendo de mil maneiras.
Óbvio também que o filme não pode ser assistido como se fosse uma narrativa
histórica simplesmente.
Enquanto assistimos ao filme ‘Chico Rei’,
podemos viajar imaginariamente pela história da escravidão no Brasil. Artisticamente
o filme foi muito bem feito, com músicas inebriantes e cenas inesquecíveis com
crueldade de arrepiar! O soar dos tambores e as danças do povo negro revelam
uma mística invencível: a certeza de que nascemos livres e pela liberdade
sempre lutaremos. Toda opressão suscitará lutas libertárias.
Segundo o filme ‘Chico Rei’, arrancados
à força da Mãe África, onde nasceram livres, após serem laçados e capturados
por jagunços, durante vários séculos, milhões de negros e negras, com argolas
de ferro no pescoço e nos pés, eram empurrados para os navios negreiros, que
eram navios para transporte de cargas, também chamados de ‘navios tumbeiros’.
Nos navios negreiros, os/as negros/as escravizados/as eram amontoados/as nos
porões e amarrados/as em grupos, em média 400 por cada navio. Nos porões
superlotados, o mau cheiro imperava, pois, embora fossem grandes porões, o
espaço para se movimentar era mínimo, pois quanto mais se superlotava os porões
mais lucro se adquiria em cada viagem. Em porões escuros, os negros e as negras
escravizados/as passavam literalmente e existencialmente por noites escuras,
nas quais uns enlouqueciam, outros suicidavam-se, outros/as tantos/as eram
jogados/as ao mar, mas muitos sobreviviam. Historiadores atestam que “conviviam
no mesmo local – nos porões -, a fome, a sede, as doenças, a sujeira, os
agonizantes e os mortos” que continuavam por muitos dias junto aos vivos, pois
o pessoal da tripulação passava muitos dias sem descer aos porões. As fezes e a
urina continuavam nos locais onde os negros eram amarrados nos porões.
Em alto mar, em meio a grandes
tempestades, muitos negros/as escravizados/as eram jogados/as ao mar para
evitar naufrágios. Negro que se rebelava era amarrado no mastro do navio e
açoitado impiedosamente. Mulheres negras escravizadas eram estupradas por
brancos da tripulação nos navios negreiros. Na costa brasileira, famílias eram
separadas, homens eram levados para o Rio de Janeiro ou para São Paulo e as
mulheres, vendidas na Bahia, por exemplo. Os negros escravizados eram vendidos
em mercados como ‘peças’, mercadoria importada que poderia gerar lucro para
seus mercadores brancos. Sacerdotes europeus que vinham juntos nestes navios,
ofendendo ao Deus da vida, abençoavam essa tamanha injustiça, trazendo a
religião europeia como embaixadora da "civilização" e da
"modernidade." Os negros escravizados eram submetidos a trabalhos
forçados nos Engenhos da monocultura de cana e em áreas de mineração. Muitos
não sobreviviam além de 7 anos de escravidão.
Com maestria poética, Castro Alves registrou
no poema Navio Negreiro:
“Que
quadro d'amarguras! / É canto funeral! ... / Que tétricas figuras! [...] Que
cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror! [...] / Se o velho
arqueja, se no chão resvala, / Ouvem-se gritos... o chicote
estala. [...] / Presa nos elos de uma só cadeia, / A multidão faminta
cambaleia, / E chora e dança ali! / Um de raiva delira, outro
enlouquece, [...] / Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me
vós, Senhor Deus! / Se é loucura... se é verdade / Tanto horror
perante os céus?”
Com a expansão do comércio de negros,
muitas grandes empresas foram constituídas para traficar negros da África e
vender no Brasil. O tráfico de escravos só foi proibido com a Lei Eusébio de
Queiroz, em 04 de setembro de 1950, 38 anos antes da abolição formal da
escravatura no Brasil. Sobre os/as negros/as escravizados/as se impingia a
ideologia dominante que dizia que se trabalhassem muito poderiam comprar sua
própria alforria, liberdade. Porém, na realidade, o caminho para se conquistar
a liberdade era fugir e construir quilombos. Dandara e Zumbi demonstraram que
esse era o caminho da libertação, assim como os quilombos na região de Ouro
Preto.
Em Alagoas, o Quilombo dos Palmares, em
1670, contava com mais de 20 mil pessoas e resistiu por mais de 100 anos ao
sistema escravista. Recentemente, os 11 Acampamentos do MST, em Campo do Meio,
MG, em homenagem à resistência quilombola no estado de Minas Gerais, batizou o
nome da sua luta de “Quilombo Campo Grande”, em que cada Sem Terra é outro
Zumbi e outra Dandara. O Quilombo dos Palmares é considerado um grande símbolo
nacional de luta, mas é importante também ressaltar que a antiga Confederação
dos Quilombos Campo Grande vem sendo considerada por historiadores ainda muito
maior do que foi o Quilombo dos Palmares, tendo sido composta por, pelo menos,
27 núcleos de resistência, espalhados por territórios que abrangem hoje, em
Minas Gerais, o Centro-Oeste, o Alto São Francisco, o Sudoeste e o Triângulo
Mineiro e , em 1752, segundo o pesquisador Diogo de Vasconcelos, chegou a
possuir vinte mil habitantes. Os líderes quilombolas Ambrósio e Pedro Angola da
Confederação do Quilombo Campo Grande devem ser também lembrados por todos da
luta. Na segunda metade do século XVIII, houve várias investidas repressivas
que visavam desbaratar os principais núcleos quilombolas em Minas Gerais. A
perseguição e a matança de negros escravizados foi grande e hedionda. O capitão
do mato, Bartolomeu Bueno Prado, fez questão de trazer para mostrar ao
governador da capitania de Minas Gerais 3.900 pares de orelhas de negros
escravizados assassinados. Apesar da intensa perseguição, muitas pessoas
quilombolas conseguiram fugir para as matas, pois a existência de rotas de fuga
antes da chegada das milícias saqueadoras e repressivas era uma forte
estratégia de resistência negra. A história oficial divulgou o extermínio total
dos quilombolas, da mesma maneira que dizia não haver mais indígenas nas matas
e nas vilas! Muitos indígenas e quilombolas se mantiveram na invisibilidade
como forma de resistência ao sistema repressor e ao preconceito racial e
social. Todavia, atualmente muitas comunidades remanescentes de quilombolas que
estão se organizando e lutando por seus direitos em Minas Gerais têm a sua raiz
na belíssima história dessa grande Confederação de Quilombos Campo Grande.
Uma história que foi por muito tempo
escondida pelos poderosos e que temos o dever de revelar e de divulgar! Mas,
sobretudo, entender que a escravidão não acabou. O que se vive atualmente no
Brasil e na América Latina, com os inúmeros retrocessos e perdas de direitos
conquistados pelo povo é uma forma concreta de manter o povo na escravidão. Não
percamos a memória das lutas de resistência! Sobretudo a memória das nossas
ancestralidades, de Dandara, de Zumbi, de Chico Rei – Ocupação Chico Rei em
Ouro Preto atualmente -, dos povos indígenas, de quem resistiu ontem e resiste
hoje. Assim, o Ano de 2019 se abre convidando toda a classe trabalhadora e
camponesa, do campo e da cidade, a dar as mãos. “Ninguém largue a mão de
ninguém!”, principalmente a mão dos povos indígenas, quilombolas, LGBTTQIs[2],
pessoas em situação de rua, jovens de periferia; enfim, todos os injustiçados.
Coragem e perseverança nas lutas de resistência e por conquista de direitos. Os
opressores são poderosos, mas contraditórios e, por isso, têm pés de barro
quebradiços.
Assista ao filme ‘Chico Rei’ e
Reportagem em vídeo sobre Ocupação Chico Rei em Ouro Preto, nos links, abaixo.
1
- De Galanga no Congo a Chico Rei em Ouro Preto
2
- Ocupação Chico Rei/Ouro Preto/MG: O direito à moradia com segurança e
dignidade - 04/7/2018
Belo Horizonte, MG, 1º/01/2019.
[1] Frei e padre da Ordem dos
carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em
Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e
Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos”
no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br - www.freigilvander.blogspot.com.br –
www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis, Transexuais, Queers e Pessoas Intersex.
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