DEUS QUER PODEROSOS DESTRONADOS E RICOS DE MÃOS VAZIAS (Lc 1,39-56). Por Frei Gilvander Moreira1
Reprodução Redes VirtuaisNo Evangelho de Lucas, em Lc
1,39-56 se narra “a visita de Maria a Isabel” e o Cântico de Maria, o
Magnificat. Pertence aos relatos do nascimento e infância de João Batista e de
Jesus (Lc 1-2). O contexto é de aldeias do campo: Maria é da aldeia de Nazaré e
vai a uma aldeia da Judeia para servir sua prima Isabel que estava grávida.
Lucas não pretende, em primeiro lugar, mostrar como isso aconteceu, mas reler na
década de 80 do século I esses acontecimentos à luz da morte-ressurreição de
Jesus, a fim de iluminar a caminhada das primeiras comunidades cristãs. Não se
trata, pois, de crônica histórica, mas de leitura teológica. Lucas 1,49-56 se
divide em dois momentos: Lc 1,39-45, onde o Deus da vida se revela aos pobres
e Lc 1,46-56, o Cântico de Maria (Magnificat), um cântico
revolucionário.
Na anunciação, o anjo Gabriel informara
Maria a respeito da gravidez de Isabel, com a garantia de que nada é impossível
para Deus (Lc 1,37). Ao declarar-se serva do Senhor (Lc 1,38), Maria concebe
Jesus e, como sinal de seu serviço, dirige-se apressadamente, não ao templo,
mas à casa de Zacarias, ao encontro de Isabel para servi-la (Lc 1,39-40). A
cena mostra o encontro de duas mulheres mães agraciadas com o dom da
fecundidade e da vida (Isabel era estéril e Maria namorava com José, mas ainda
não tinha se casado); mostra também o encontro de duas crianças: o precursor e profeta
João Batista e Jesus que seria o Messias salvador, ambos sob o dinamismo do
Espírito Santo.
Não no templo, mas numa casa (oikia, em grego), uma mulher idosa
reconhece a presença do divino em uma mulher jovem e esta, Maria, ao visitar
Isabel, reconhece também a presença do divino em uma mulher idosa. Mulheres de
gerações diferentes se confirmando e se irmanando na caminhada de construção do
reino de Deus no meio dos pobres.
Jesus havia sido concebido por
obra do Espírito, o que não exclui a participação de José na concepção de Jesus,
pois “a graça supõe a natureza”, já dizia o filósofo e teólogo Tomás de Aquino;
João Batista exulta no seio de Isabel que, cheia do Espírito Santo, proclama
Maria bem-aventurada: “Bendita és tu entre as mulheres, bendito o fruto do teu
ventre” (Lc 1,42). A cena mostra, sobretudo, que Deus se revela aos pobres e
faz deles sua morada permanente. O mensageiro divino havia revelado a Maria o
dom feito a Isabel, a marginalizada porque estéril; o Espírito revela a Isabel
que Maria, a serva do Pai, se tornou “mãe do meu Senhor” (Lc 1,43). Assim, Deus
entra na casa dos pobres e humilhados que esperam a libertação, cansados de
opressão e exploração pelo império romano escravocrata, pelos saduceus que
grilavam as terras, pelo sinédrio que taxava os pobres como impuros e, assim,
era cúmplice das opressões dos reis biônicos Herodes e Pilatos, impostos pelo
imperador.
A etimologia dos nomes das
personagens nos ajuda a ver melhor: Jesus significa ‘Deus salva’; João, ‘Deus é
misericórdia’; Zacarias, ‘Deus se lembrou de nós’; Isabel, ‘Deus é plenitude’,
‘mulher de Deus’; Maria, ‘a amada’. Maria se torna, assim, pioneira insuperável
de evangelização, pois leva Jesus-Messias às pessoas desde quando ele estava em
seu ventre.
As palavras de Isabel a Maria (Lc
1,42b-45) se inspiram nos elogios das mulheres libertadoras do Primeiro
Testamento: Jael, mulher estrangeira do Povo Quenita (“Que Jael seja bendita
entre as mulheres”, Jz 5,24.) e Judite, mulher imprescindível na salvação do
povo ameaçado (“Que o Deus Altíssimo abençoe você, minha filha”, Jt 13,18; cf.
Gn 14,19-20.).
A expressão de alegria de Isabel
ao acolher Maria (Lc 1,43) recorda a surpresa de Davi ao acolher a Arca (“Como
é que a Arca de Javé poderá ser introduzida em minha casa?”, 2Sm 6,9.). Em base
a esse paralelismo, alguns veem em Maria a arca da nova Aliança, por ser ela a
mãe do menino que é chamado Santo, Filho de Deus (Lc 1,35). Mas o elogio de
Isabel a Maria vai além de sua maternidade física. A grande bem-aventurança de
Maria é ter acreditado que as coisas ditas pelo Senhor iriam cumprir-se (Lc 1,45).
Isso está em perfeita sintonia com o Evangelho de Lucas, no qual ela aparece
como modelo de discípula. O próprio Jesus afirma haver uma bem-aventurança que
supera a da maternidade física: “Felizes,
antes, as pessoas que ouvem a palavra de Deus e a colocam em prática” (cf. Lc,11,17-28).
Duas são as características mais
importantes de Maria no relato da visita a Isabel. E são exatamente as
qualidades do discipulado no Evangelho de Lucas: atenção e adesão absolutas à
palavra de Deus e, como conseqüência disso, serviço incondicional a quem
necessita. Maria é discípula fiel (em relação a Deus) e solidária (em relação
ao próximo).
Em Lc 1,46-56, no Cântico
de Maria: Deus realiza a esperança dos pobres. O Magnificat se inspira
fortemente no Cântico de Ana (1Sm 2,1-10), mãe de Samuel, depois que Deus a
livrou da humilhação da esterilidade.
Os biblistas afirmam que o
Magnificat, assim como se encontra, não foi composto por Maria. Uma prova disso
são os verbos no passado: agiu com a força de seu braço, dispersou, depôs,
exaltou, cumulou, despediu etc. (Lc 1,51-55). Esses verbos no passado revelam
que o hino é lido à luz da vida, morte e ressurreição de Jesus. Deus subverteu a
realidade brutal que a condenação de Jesus à morte havia criado.
É bem provável que este Cântico
de Maria fosse um hino das primeiras comunidades cristãs, onde se louva a
intervenção de Deus em favor dos pobres, humilhados e famintos, contra os
orgulhosos, poderosos e ricos (característica dos hinos de louvor). O contraste
de sortes ressalta o poder de Deus e as maravilhas que realiza em favor dos
pobres, coroando suas esperanças. O evangelista Lucas atribuiu esse hino a
Maria porque ela, mais que todas as pessoas seguidoras de Jesus, expressa os
sentimentos e as atitudes de compromisso, esperança e confiança no poder de
Deus.
Lucas foi muito corajoso ao
atribuir esse hino a Maria, ressaltando-lhe o valor e a importância enquanto
figura representativa de uma coletividade. Ela, portanto, é porta-voz
qualificada dos discípulos e discípulas de Jesus Cristo, dos pobres que anseiam
e lutam por libertação. Maria é porta-voz dos oprimidos, pobres, aflitos,
viúvas e órfãos. Opostos a estes estavam os ricos, mas também os orgulhosos e autossuficientes
que punham suas esperanças nos próprios recursos, não sentindo qualquer
necessidade de Deus.
O Cântico de Maria, um dos mais
revolucionários da Bíblia, é profético, não no sentido de previsão do futuro,
mas no sentido genuíno da profecia, que pode ser traduzida como denúncia de
algo injusto e anúncio de uma transformação. Maria é profetisa porque, movida
pelo Espírito de vida, encarna os ideais dos profetas e das profetisas do Primeiro
Testamento, do qual também ela faz parte.
O espírito do Magnificat combina
com o da comunidade cristã de Jerusalém (At 2,43-47; 4,32-37), na qual
provavelmente o hino tomou corpo, tornando-se canto de louvor pela libertação.
Pondo-o nos lábios de Maria, Lucas atribui a ela um papel importante na
história da humanidade. Como os salmos de louvor, o Magnificat contém uma
introdução (Lc 1,46b-47) onde se louva Deus; um corpo (Lc 1,48-53), que enumera
os motivos de louvor (cf. Lc 1,48: porque…), e uma conclusão (Lc 1,54-55), que
ressalta porque Deus agiu assim, cumprindo as promessas feitas aos
antepassados. Dentro do hino há pares que fazem de Maria a figura representativa
de todo o povo: serva/servo; humilhação/humildade/humildes; a misericórdia de
Deus que se estende..., Deus que se lembra de sua misericórdia.
A introdução vê realizadas as
expectativas da profetisa Ana (cf. 1Sm 1,11) e do profeta Habacuc (Hab 3,18),
que traduzem as esperanças dos pobres (anawim).
Atribuindo a Maria este hino, Lucas a torna intérprete dos anseios dos
humilhados que veem, finalmente, realizadas suas esperanças. Todo o ser de
Maria é envolvido no louvor.
O corpo do Magnificat ressalta a
ação de Deus em favor dos humilhados (inicia com porque...). Essa ação é
descrita como maravilha, termo que, na Bíblia, marca as grandes intervenções de
Deus em vista da libertação (por exemplo, a Criação, o Êxodo, a Caminhada no
deserto, a Conquista da terra prometida...). A maravilha divina é libertar os
que sofrem e esperam nele, exaltando-os e cumulando-os de bens. Os beneficiados
são dois: Maria e os pobres. Os aspectos político e econômico estão bem
representados (poderosos destronados; ricos despedidos de mãos vazias).
A conclusão salienta que a ação
de Deus em favor dos pobres é fruto da memória de sua misericórdia, renovando
hoje os benefícios e opções feitos no passado, mantendo assim a fidelidade
prometida a Abraão e a seus descendentes.
Enfim, o Cântico de Maria é um
dos mais revolucionários dos povos da Bíblia que lutam pela superação de todo
tipo de opressão e exploração. “O Todo-Poderoso
dispersa os soberbos de coração, derruba do trono os poderosos e eleva os
humildes; aos famintos enche de bens, e despede os ricos de mãos vazias”
(Lc 1,51-553). A profetisa Maria brada em alto e bom som que os poderosos serão
derrubados e os ricos esvaziados de suas riquezas. Isso é profecia, não é
vingança, porque em uma sociedade capitalista com idolatria do mercado não é
possível se tornar rico sem oprimir e sem explorar, seja por receber herança
que deveria ser de todos os filhos e filhas de Deus, seja pela acumulação de
riqueza e poder, o que exige o empobrecimento da maioria. Portanto, denunciar
os poderosos e ricos é questão de justiça e não de vingança. E temos que
anunciar: Benditos os pobres humildes que testemunham o projeto de Jesus no meio
da humanidade aqui e agora, pois agindo assim são presença do divino no nosso
meio.
O Magnificat... Um verdadeiro canto de esperança e revolucionário
porque entoado por uma mulher que se faz porta-voz das comunidades com fé,
ternura, coragem. Maria...
A devoção a Maria, os Terços, os Rosários, as Ave-Marias
salpicadas no dia a dia da caminhada do povo de Deus manifestam a beleza e a
riqueza da nossa fé. Maria é merecedora desse louvor e acolhe com amor as
súplicas dos seus filhos e filhas, mas não podemos nos esquecer do
Magnificat... Rezemos a Maria para que nos ajude a ter, como ela, o olhar
profético, o coração solidário, a vida a serviço da causa de libertação dos
pobres e em defesa da vida!
O Cântico de Maria nos pede: Sejamos humildes e não soberbos e
nem gananciosos. Livra-nos, Deus da vida, da sede de poder! Doar a vida no
serviço aos pobres e na luta pela libertação de todos/as e tudo seja nossa
meta. Livra-nos, Deus-Amor, da sedução de riqueza! De mãos vazias, em estilo de
vida simples, sejamos discípulos e discípulas de Jesus Cristo, fazendo o que
ele nos pede: amar como ele amou.
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