quarta-feira, 13 de agosto de 2025

DEUS QUER PODEROSOS DESTRONADOS E RICOS DE MÃOS VAZIAS (Lc 1,39-56). Por Frei Gilvander

DEUS QUER PODEROSOS DESTRONADOS E RICOS DE MÃOS VAZIAS (Lc 1,39-56). Por Frei Gilvander Moreira1

Reprodução Redes Virtuais

No Evangelho de Lucas, em Lc 1,39-56 se narra “a visita de Maria a Isabel” e o Cântico de Maria, o Magnificat. Pertence aos relatos do nascimento e infância de João Batista e de Jesus (Lc 1-2). O contexto é de aldeias do campo: Maria é da aldeia de Nazaré e vai a uma aldeia da Judeia para servir sua prima Isabel que estava grávida. Lucas não pretende, em primeiro lugar, mostrar como isso aconteceu, mas reler na década de 80 do século I esses acontecimentos à luz da morte-ressurreição de Jesus, a fim de iluminar a caminhada das primeiras comunidades cristãs. Não se trata, pois, de crônica histórica, mas de leitura teológica. Lucas 1,49-56 se divide em dois momentos: Lc 1,39-45, onde o Deus da vida se revela aos pobres e Lc 1,46-56, o Cântico de Maria (Magnificat), um cântico revolucionário.

Na anunciação, o anjo Gabriel informara Maria a respeito da gravidez de Isabel, com a garantia de que nada é impossível para Deus (Lc 1,37). Ao declarar-se serva do Senhor (Lc 1,38), Maria concebe Jesus e, como sinal de seu serviço, dirige-se apressadamente, não ao templo, mas à casa de Zacarias, ao encontro de Isabel para servi-la (Lc 1,39-40). A cena mostra o encontro de duas mulheres mães agraciadas com o dom da fecundidade e da vida (Isabel era estéril e Maria namorava com José, mas ainda não tinha se casado); mostra também o encontro de duas crianças: o precursor e profeta João Batista e Jesus que seria o Messias salvador, ambos sob o dinamismo do Espírito Santo.

Não no templo, mas numa casa (oikia, em grego), uma mulher idosa reconhece a presença do divino em uma mulher jovem e esta, Maria, ao visitar Isabel, reconhece também a presença do divino em uma mulher idosa. Mulheres de gerações diferentes se confirmando e se irmanando na caminhada de construção do reino de Deus no meio dos pobres.

Jesus havia sido concebido por obra do Espírito, o que não exclui a participação de José na concepção de Jesus, pois “a graça supõe a natureza”, já dizia o filósofo e teólogo Tomás de Aquino; João Batista exulta no seio de Isabel que, cheia do Espírito Santo, proclama Maria bem-aventurada: “Bendita és tu entre as mulheres, bendito o fruto do teu ventre” (Lc 1,42). A cena mostra, sobretudo, que Deus se revela aos pobres e faz deles sua morada permanente. O mensageiro divino havia revelado a Maria o dom feito a Isabel, a marginalizada porque estéril; o Espírito revela a Isabel que Maria, a serva do Pai, se tornou “mãe do meu Senhor” (Lc 1,43). Assim, Deus entra na casa dos pobres e humilhados que esperam a libertação, cansados de opressão e exploração pelo império romano escravocrata, pelos saduceus que grilavam as terras, pelo sinédrio que taxava os pobres como impuros e, assim, era cúmplice das opressões dos reis biônicos Herodes e Pilatos, impostos pelo imperador.

A etimologia dos nomes das personagens nos ajuda a ver melhor: Jesus significa ‘Deus salva’; João, ‘Deus é misericórdia’; Zacarias, ‘Deus se lembrou de nós’; Isabel, ‘Deus é plenitude’, ‘mulher de Deus’; Maria, ‘a amada’. Maria se torna, assim, pioneira insuperável de evangelização, pois leva Jesus-Messias às pessoas desde quando ele estava em seu ventre.

As palavras de Isabel a Maria (Lc 1,42b-45) se inspiram nos elogios das mulheres libertadoras do Primeiro Testamento: Jael, mulher estrangeira do Povo Quenita (“Que Jael seja bendita entre as mulheres”, Jz 5,24.) e Judite, mulher imprescindível na salvação do povo ameaçado (“Que o Deus Altíssimo abençoe você, minha filha”, Jt 13,18; cf. Gn 14,19-20.).

A expressão de alegria de Isabel ao acolher Maria (Lc 1,43) recorda a surpresa de Davi ao acolher a Arca (“Como é que a Arca de Javé poderá ser introduzida em minha casa?”, 2Sm 6,9.). Em base a esse paralelismo, alguns veem em Maria a arca da nova Aliança, por ser ela a mãe do menino que é chamado Santo, Filho de Deus (Lc 1,35). Mas o elogio de Isabel a Maria vai além de sua maternidade física. A grande bem-aventurança de Maria é ter acreditado que as coisas ditas pelo Senhor iriam cumprir-se (Lc 1,45). Isso está em perfeita sintonia com o Evangelho de Lucas, no qual ela aparece como modelo de discípula. O próprio Jesus afirma haver uma bem-aventurança que supera a da maternidade física: “Felizes, antes, as pessoas que ouvem a palavra de Deus e a colocam em prática” (cf. Lc,11,17-28).

Duas são as características mais importantes de Maria no relato da visita a Isabel. E são exatamente as qualidades do discipulado no Evangelho de Lucas: atenção e adesão absolutas à palavra de Deus e, como conseqüência disso, serviço incondicional a quem necessita. Maria é discípula fiel (em relação a Deus) e solidária (em relação ao próximo).

Em Lc 1,46-56, no Cântico de Maria: Deus realiza a esperança dos pobres. O Magnificat se inspira fortemente no Cântico de Ana (1Sm 2,1-10), mãe de Samuel, depois que Deus a livrou da humilhação da esterilidade.

Os biblistas afirmam que o Magnificat, assim como se encontra, não foi composto por Maria. Uma prova disso são os verbos no passado: agiu com a força de seu braço, dispersou, depôs, exaltou, cumulou, despediu etc. (Lc 1,51-55). Esses verbos no passado revelam que o hino é lido à luz da vida, morte e ressurreição de Jesus. Deus subverteu a realidade brutal que a condenação de Jesus à morte havia criado.

É bem provável que este Cântico de Maria fosse um hino das primeiras comunidades cristãs, onde se louva a intervenção de Deus em favor dos pobres, humilhados e famintos, contra os orgulhosos, poderosos e ricos (característica dos hinos de louvor). O contraste de sortes ressalta o poder de Deus e as maravilhas que realiza em favor dos pobres, coroando suas esperanças. O evangelista Lucas atribuiu esse hino a Maria porque ela, mais que todas as pessoas seguidoras de Jesus, expressa os sentimentos e as atitudes de compromisso, esperança e confiança no poder de Deus.

Lucas foi muito corajoso ao atribuir esse hino a Maria, ressaltando-lhe o valor e a importância enquanto figura representativa de uma coletividade. Ela, portanto, é porta-voz qualificada dos discípulos e discípulas de Jesus Cristo, dos pobres que anseiam e lutam por libertação. Maria é porta-voz dos oprimidos, pobres, aflitos, viúvas e órfãos. Opostos a estes estavam os ricos, mas também os orgulhosos e autossuficientes que punham suas esperanças nos próprios recursos, não sentindo qualquer necessidade de Deus.

O Cântico de Maria, um dos mais revolucionários da Bíblia, é profético, não no sentido de previsão do futuro, mas no sentido genuíno da profecia, que pode ser traduzida como denúncia de algo injusto e anúncio de uma transformação. Maria é profetisa porque, movida pelo Espírito de vida, encarna os ideais dos profetas e das profetisas do Primeiro Testamento, do qual também ela faz parte.

O espírito do Magnificat combina com o da comunidade cristã de Jerusalém (At 2,43-47; 4,32-37), na qual provavelmente o hino tomou corpo, tornando-se canto de louvor pela libertação. Pondo-o nos lábios de Maria, Lucas atribui a ela um papel importante na história da humanidade. Como os salmos de louvor, o Magnificat contém uma introdução (Lc 1,46b-47) onde se louva Deus; um corpo (Lc 1,48-53), que enumera os motivos de louvor (cf. Lc 1,48: porque…), e uma conclusão (Lc 1,54-55), que ressalta porque Deus agiu assim, cumprindo as promessas feitas aos antepassados. Dentro do hino há pares que fazem de Maria a figura representativa de todo o povo: serva/servo; humilhação/humildade/humildes; a misericórdia de Deus que se estende..., Deus que se lembra de sua misericórdia.

A introdução vê realizadas as expectativas da profetisa Ana (cf. 1Sm 1,11) e do profeta Habacuc (Hab 3,18), que traduzem as esperanças dos pobres (anawim). Atribuindo a Maria este hino, Lucas a torna intérprete dos anseios dos humilhados que veem, finalmente, realizadas suas esperanças. Todo o ser de Maria é envolvido no louvor.

O corpo do Magnificat ressalta a ação de Deus em favor dos humilhados (inicia com porque...). Essa ação é descrita como maravilha, termo que, na Bíblia, marca as grandes intervenções de Deus em vista da libertação (por exemplo, a Criação, o Êxodo, a Caminhada no deserto, a Conquista da terra prometida...). A maravilha divina é libertar os que sofrem e esperam nele, exaltando-os e cumulando-os de bens. Os beneficiados são dois: Maria e os pobres. Os aspectos político e econômico estão bem representados (poderosos destronados; ricos despedidos de mãos vazias).

A conclusão salienta que a ação de Deus em favor dos pobres é fruto da memória de sua misericórdia, renovando hoje os benefícios e opções feitos no passado, mantendo assim a fidelidade prometida a Abraão e a seus descendentes.

Enfim, o Cântico de Maria é um dos mais revolucionários dos povos da Bíblia que lutam pela superação de todo tipo de opressão e exploração. “O Todo-Poderoso dispersa os soberbos de coração, derruba do trono os poderosos e eleva os humildes; aos famintos enche de bens, e despede os ricos de mãos vazias” (Lc 1,51-553). A profetisa Maria brada em alto e bom som que os poderosos serão derrubados e os ricos esvaziados de suas riquezas. Isso é profecia, não é vingança, porque em uma sociedade capitalista com idolatria do mercado não é possível se tornar rico sem oprimir e sem explorar, seja por receber herança que deveria ser de todos os filhos e filhas de Deus, seja pela acumulação de riqueza e poder, o que exige o empobrecimento da maioria. Portanto, denunciar os poderosos e ricos é questão de justiça e não de vingança. E temos que anunciar: Benditos os pobres humildes que testemunham o projeto de Jesus no meio da humanidade aqui e agora, pois agindo assim são presença do divino no nosso meio.

O Magnificat... Um verdadeiro canto de esperança e revolucionário porque entoado por uma mulher que se faz porta-voz das comunidades com fé, ternura, coragem. Maria...

A devoção a Maria, os Terços, os Rosários, as Ave-Marias salpicadas no dia a dia da caminhada do povo de Deus manifestam a beleza e a riqueza da nossa fé.  Maria é merecedora desse louvor e acolhe com amor as súplicas dos seus filhos e filhas, mas não podemos nos esquecer do Magnificat... Rezemos a Maria para que nos ajude a ter, como ela, o olhar profético, o coração solidário, a vida a serviço da causa de libertação dos pobres e em defesa da vida!

O Cântico de Maria nos pede: Sejamos humildes e não soberbos e nem gananciosos. Livra-nos, Deus da vida, da sede de poder! Doar a vida no serviço aos pobres e na luta pela libertação de todos/as e tudo seja nossa meta. Livra-nos, Deus-Amor, da sedução de riqueza! De mãos vazias, em estilo de vida simples, sejamos discípulos e discípulas de Jesus Cristo, fazendo o que ele nos pede: amar como ele amou.

 

 

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