Inibir
lutas necessárias é erro político grave
Nos dias anteriores a 7 de junho, fiquei indignado ao ver e ouvir lideranças que se dizem de esquerda com discursos rasos inibindo o povo de ir para as ruas lutar por direitos. Alegavam riscos de contágio pelo novo coronavírus, risco de apanhar da polícia, risco do antipresidente usar as manifestações como pretexto para “não deixar a democracia respirar”. Uns alegando que “não queremos mais mártires”. Enfim, tentando meter medo no povo e inibir a ida às ruas para as lutas tão necessárias e urgentes. É triste ver que há lideranças que já erraram tanto e que seguem repetindo os erros, o que traz como consequência o descrédito do povo que acaba por se enfiar debaixo do espinheiro que é um desgoverno fascista. Não é apenas ilusão, mas erro político grave acreditar em “bananeira que já deu cacho”. As lideranças devem ir aonde o povo está. O povo se antecipou e foi para as ruas, chama para as ruas, lugar onde historicamente se decidem os rumos de suas vidas.
É muito suspeito o discurso que diz
"não queremos mais mártires". Ouvi muito esta cantilena no meio de
quem é da classe alta, da elite ou da pequena burguesia (classe média), mas que
dizem ter boas intenções e práticas assistenciais. Já ouvi muito “não queremos
mais mártires” na boca de pessoas com análises moderadas e posturas políticas moderadas.
De forma não confessada quem diz assim tem a ilusão de que apenas com eleições
e negociações institucionais conquistaremos a superação do capitalismo, essa
máquina de moer vidas, com todas as suas formas de matar. Aliás, toda pessoa
cristã é discípula de um mártir: Jesus Cristo, martirizado pelo conluio dos
podres poderes da política, da economia e da religião. Quem é de esquerda é
discípulo de Che Guevara, Rosa Luxemburgo e tantos outros camaradas
martirizados pelos opressores. Dom Pedro Casaldáliga disse mil vezes: “Feliz de
um povo que não esquece e honra seus mártires”. Não é possível acontecer
ressurreição sem passar pela sexta-feira da paixão. As primeiras comunidades
cristãs também tiveram que rechaçar os que queriam só uma teologia da glória
que negava o Jesus Cristo Crucificado. Em uma sociedade capitalista organizada
para reproduzir a desigualdade social não acontecem mudanças profundas sem
mártires. É duro, mas é a realidade. Como nos resguardar dizendo não querer
novos mártires se o martírio está sendo o cotidiano do povo negro, do povo
indígena, de mulheres e de toda classe superexplorada deste país? Como honrar os
milhares de mártires da pandemia da Covid-19, resultado do descaso com a saúde
pública que o desgoverno Bolsonaro e a necropolítica agravam cotidianamente? E
quem mais está morrendo? Lembremo-nos de “um hino de luta”: “A Carne”, música
cantada lindamente por Elza Soares, de autoria de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses
Cappelletti.
(...) “De algum antepassado da cor
Brigar sutilmente por respeito
Brigar bravamente por respeito
Brigar por justiça e por respeito (Pode acreditar)
De algum antepassado da cor
Brigar, brigar, brigar, brigar, brigar
Se liga aí
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Na cara dura, só cego que não vê
A carne mais barata do mercado é a carne negra” (...)
Por posturas que não vão além de
políticas compensatórias, não apenas desconfio, mas tenho certeza de que diante
de tanta superexploração, os/as moderados/as estão sendo cúmplices da
reprodução da violência estrutural e da superexploração. Em uma sociedade
desigual, os omissos não são apenas omissos, são cúmplices e coniventes com os
sistemas opressivos. Quem fica na inação “esperando o momento propício, sem
riscos”, pela omissão, faz a pior “ação”: se torna cúmplice da reprodução da
violência. É grande ilusão pensar que é possível lutar por direitos sem correr
riscos. Impossível conquistar a superação do sistema de morte sem lutas
arriscadas. Antigamente, as pessoas que inibem lutas por direitos eram chamadas
de “pelegas”, as que amortecem a fricção da luta de classe, em analogia ao couro
colocado sobre os arreios para tornar o assento
do cavaleiro confortável. Sem lutas massivas e arrojadas não acontecerá
a superação do autoritarismo e de todas as violências estruturais. Só posturas
institucionais serão sempre tímidas e paliativas. O fascismo e o nazismo
cresceram na Europa graças também a posturas conciliadoras de partidos e
movimentos sociais que ficavam com excesso de cautela. Em meus trinta anos de
luta por direitos sociais, nunca vi nenhuma conquista de direitos acontecer sem
lutas arrojadas. Ao contrário, já vi muitas posturas moderadas atrapalharem
muito as lutas. Uma liderança popular que se diz de esquerda não tem o direito
de inibir lutas, pois quem inibe lutas necessárias por direitos está jogando ao
lado dos opressores. Basta de posturas moderadas! São cúmplices de opressão,
repito. Manter todas as precauções para não se contaminar com o novo
coronavírus, sim, é necessário, mas jamais deixar de lutar por todos os
direitos com organização e afinco. Enfim, sem lutas massivas e arrojadas nas
ruas e em todos os cantos e recantos, nas periferias e na floresta, quem
continuará sendo martirizado é o povão, a mãe Terra, os biomas e toda a
biodiversidade.
Leia o que diz Darcila Rodrigues, mulher
negra e lutadora: “É difícil respirar, principalmente quando o relato de grande
parte do povo, insiste em se calcar na ótica da classe média. Dia 06 de junho
último, ouvi diversos "conselhos" para que o povo não saísse às ruas
sob o pretexto de proteção contra a pandemia do novo coronavírus. No entanto, o
povo já foi obrigado a ir para as ruas para trabalhar e a levar o vírus para
suas casas e comunidades. Só a classe média e alta pode, de fato, fazer
quarentena. O povo tem sido empurrado para se aglomerar nos ônibus coletivos e
metrôs, porque está sendo obrigado a ir trabalhar para produzir principalmente
para os empresários. O povo já tão violentado tem sido atraído para se
aglomerar nas portas da Caixa Econômica Federal para receber uma migalha de auxílio
emergencial de 600 reais, que para milhões de pessoas não chega. Ir às ruas no
dia 7 de junho, não foi um gesto suicida, foi um gesto de dignidade, um
pouco do que ainda resta para aquela parte do povo que sabe o que é
luta, o que é dor, fome, injustiças e as sentem no próprio corpo a necessidade de
conquistar direitos. Esta mesma parcela do povo que tem sua força ancorada na esperança
de que um dia possa respirar, pois a cada dia de nossas vidas nos tiram o ar
pisando no nosso pescoço de muitas formas. Tristemente só compreende isso quem
de fato sofre, pois os alienados que se entendem por classe média, mesmo tendo
um pé depositado em sua jugular, já se adaptaram ao ar rarefeito, a uma
vida limitada de ar e de sonhos. Pensam só em sobreviver.”
Margarida Alves, martirizada a mando de
latifundiários da monocultura da cana de açúcar, dizia sempre: “É melhor morrer
na luta do que morrer de fome”. O sangue de George Floyd, de João Pedro, do
menino Miguel, dos milhares de brasileiros/as que estão sendo mortos de mil
formas pela necropolítica reinante precisa continuar circulando nas nossas
artérias, suas vozes devem se expressar agora e sempre por meio daquelas e
daqueles que se comprometem com as lutas pela superação do sistema do capital,
isso para adiarmos o fim do mundo.
Observando todas as medidas de segurança
para evitar o contágio do novo coronavírus, o povo deve, sim, seguir se
manifestando com coragem e compromisso até depois de conseguir a derrubada
deste desgoverno genocida e a implementação de outro governo justo
economicamente, democrático politicamente, solidário socialmente, responsável
ambientalmente e respeitador da diversidade cultural presente no nosso país.
Enfim, inibir lutas necessárias é um grave erro político, pois “as mães negras
não aguentam mais chorar. Chega!”. “Enquanto houver opressão e repressão haverá
luta!” “Quantos outros não foram filmados?” Em vários pontos do planeta Terra
este grito marcou definitivamente as manifestações antifascistas de junho de
2020: “Vidas Negras Importam!”[2]
09/6/2020.
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o
assunto tratado acima.
1
- Domingo no Brasil é marcado por protestos em 20 capitais
3
- FOMOS ÀS RUAS E O MUNDO NÃO SE ACABOU
4
- Roda de conversa entre Leonardo Péricles, da UP, e Glauber Braga
[1] Frei e
padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e
bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em
Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da
CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, que fez a
revisão deste texto.