DEUS OUVE O CLAMOR DA VIÚVA INJUSTIÇADA (Lc 18,1-8). Por frei Gilvander Moreira[1]
Reprodução Redes VirtuaisA parábola da viúva
perseverante na luta por justiça, exclusiva do Evangelho de Lucas, pode ser
dividida assim: a) introdução redacional de Lucas, que apresenta o porquê da
parábola (Lc 18,1); b) a parábola (Lc 18,2-5); c) aplicação da parábola feita
por Jesus (Lc 18,6-8a); d) interrogação, atribuída a Jesus, sobre o desafio de
manter a fé (Lc 18, 8b).
“Orar sempre, sem nunca desistir” (Lc 18,1). Jesus já havia dito aos discípulos: “Peçam, e lhes será dado! Procurem, e
encontrarão! Batam, e a porta será aberta para vocês!” (Lc 11,9). Entretanto,
pedir o quê? Como? Procurar o quê? Como? Bater em quais portas? Estas questões
fazem toda a diferença no jeito de orar e de lutar por justiça.
As primeiras pessoas
cristãs sentiam as mesmas dificuldades que muitas vezes sentimos: oramos e não
obtemos o que pedimos! Qual era o núcleo da oração das primeiras pessoas cristãs?
O que pediam? A resposta está em Lc 11,2-4 na Oração do Pai Nosso: “Pai, santificado seja o teu nome. Venha o
teu Reino. Dá-nos a cada dia o pão de amanhã…”
Na prática, porém, a
vinda do Reino divino e sua implantação demoravam. A primeira geração cristã
pensava que a vinda definitiva do reinado divino seria para aqueles dias. Pouco
a pouco, as comunidades tiveram de descobrir que Deus parecia tardar e isso não
significava que Deus tinha abandonado o seu projeto ou que nunca viria
manifestar no mundo a sua justiça.
Nesse Evangelho, Jesus
promete que Deus fará justiça e realça as pessoas que são as eleitas ou
escolhidas de Deus. Como ele estava falando da viúva pobre, se subtende que
essas pessoas preferidas do Amor Divino não se destacariam por ser dessa ou
daquela nação ou etnia ou raça, e sim por serem as que, em todos os recantos do
mundo, são injustiçadas.
Houve quem abandonasse a
fé como hoje há pessoas que desistem
de acreditar em Deus diante de tanta injustiça, guerra e violência que se abate
sobre justos e inocentes, como milhares de mulheres, mães e crianças palestinas
assassinadas no brutal genocídio perpetrado com requintes de crueldade pelo
governo sionista de Israel. Jesus nos mostra, por meio de uma parábola, a
necessidade de orar sempre de forma correta, sem jamais esmorecer. E o conteúdo
central dessa parábola, identificado com o desejo da viúva, é que seja feita
justiça. No texto grego do evangelho, a raiz ‘justiça’ aparece cinco vezes, o
que demonstra de forma enfática que a oração verdadeira é aquela que está
colada umbilicalmente com a luta por justiça.
A pessoa injustiçada tem a fé inabalável de que será
atendida (Lc 18,2-5). A parábola mostra que pessoas oprimidas e opressoras habitam a mesma
cidade. O juiz injusto e a viúva injustiçada está na mesma cidade. Na
perspectiva do Evangelho de Lucas, isso só acontecia nas cidades, pois nas
aldeias camponesas as viúvas eram respeitadas e protegidas. Vale recordar que
na Bíblia em inúmeras passagens “a viúva e os órfãos” são os mais injustiçados
na sociedade.[2]
De um lado, temos um juiz injusto, que não temia a Deus e não tinha consideração
para com as pessoas (Lc 18,2). No caso em questão, temer a Deus significava
aplicar a Lei que impedia as injustiças contra as viúvas (Ex 22,21-22; Dt
24,17). Ter consideração para com as pessoas era não fazer distinção no
julgamento, favorecendo o opressor em detrimento da viúva e do pobre. O juiz
devia ser imparcial: “Todos são iguais perante a lei e têm a mesma dignidade”,
diz a nossa Constituição e está também na Bíblia e em todas as Constituições de
países que se dizem democratas.
Do outro lado, temos uma
viúva – símbolo das pessoas mais desprotegidas contra a ganância dos doutores
da Lei (cf. Mc 12,40 e repetição em Lc 20,47: “Os doutores da Lei exploram as viúvas e roubam suas casas, e para
disfarçar fazem longas orações”) – que se dirigia insistentemente ao juiz
pedindo justiça contra quem a injustiçava (Lc 18,3). Quer no Primeiro
Testamento bíblico, quer no tempo de Jesus, a viúva não tinha um defensor
legal, ficando assim à mercê de juízes injustos (Is 1,23; 10,2; 2Sm 14,4ss). As
leis que ordenavam defender as viúvas nunca foram levadas a sério. Não
esqueçamos que os doutores da Lei eram peritos em legislação, a
intelectualidade da época. Privatizando o conhecimento, os doutores da Lei
gozavam de poder para dominar muita gente.
A força da viúva está na
insistência, a ponto de azucrinar a vida do juiz. Este, não por causa da
coerência de seus princípios, nem pela consciência da responsabilidade de sua
função, decide fazer justiça à viúva. E o faz por duas razões: está cansado da
amolação e quer evitar o escândalo de um tapa na cara em pleno tribunal ou em
praça pública (Lc 18,5). Destemida na luta por justiça, a viúva tinha acampado
na porta do tribunal e de lá estava decidida a não sair enquanto não lhe fosse
conferida justiça. A oração da viúva era clamor por justiça.
Muito em breve, Deus fará justiça a seus eleitos (Lc
18,6-8a). A
intervenção de Jesus visa aplicar a parábola aos ouvintes. Jesus chama a
atenção para o gesto do juiz injusto que fez justiça para se ver livre da
amolação da viúva. Se só por causa disso acabou fazendo justiça, quanto mais
Deus, que se interessa pela causa das pessoas oprimidas! De fato, Deus é o
protetor das viúvas (Ml 3,5), afirma e reafirma os profetas e as profetisas
inúmeras vezes na Bíblia. As pessoas mais exploradas da sociedade escravocrata,
as viúvas, portanto, têm a quem recorrer: “Não
oprimam nenhuma viúva ou órfão… se clamar a mim, escutarei o seu clamor”
(Ex 22,21-22), alerta Deus, mistério de infinito amor, por meio da profecia
bíblica.
Jesus diz que Deus fará
justiça “aos escolhidos”, ou eleitos. Essas pessoas eleitas são as perseguidas que
não perdem a fé no mistério de amor que as envolve, encontram em Deus aquele
que lhes faça justiça muito em breve. Esse clamor por justiça era peculiar aos
primeiros cristãos e cristãs, envolvidos/as em perseguições por causa de sua fidelidade
ao Evangelho de Jesus Cristo, ao reino divino (cf. Ap 6,10: “Até quando, ó Senhor santo e verdadeiro,
tardarás a fazer justiça, vingando o nosso sangue contra os habitantes da
terra?”). Deus vem ao encontro do pedido insistente dos oprimidos que
perseveram na fé (dia e noite), fazendo-lhes justiça em breve (Lc 18,8a; cf.
Eclo 35,18-19, onde está presente a mesma idéia da imediata intervenção de Deus
em favor dos oprimidos). “A súplica do
pobre penetra as nuvens e o pobre não sossega, enquanto ela não chegar até a
Deus. Ele não desiste, até que o Altíssimo intervenha para fazer justiça aos
justos. O Senhor não terá paciência com os injustos, enquanto não quebrar as
costas dos cruéis... até quebrar o cetro dos injustos. A misericórdia é
bem-vinda no templo da aflição, como as nuvens de chuva no tempo da seca” (Eclo 35,17-24).
É difícil manter-se na luta por justiça (Lc 18,8b). Tal como agiu a viúva, assim deve ser a
pessoa cristã: perseverar na luta por justiça e na oração incessante para que
Deus intervenha, fazendo justiça aos injustiçados/as, salvando-os. Mas a
parábola termina com uma interrogação desafiadora: Quando o Filho do Homem
voltar, para fazer justiça, encontrará fé sobre a terra? Encontrará pessoas que
se mantiveram fiéis a Jesus, na luta pela justiça do reinado divino e na oração
perseverantes? A pergunta é uma admoestação severa: é difícil manter-se na
luta. É preciso crer com garra, conservando-se prontos para a doação da vida no
compromisso com as causas dos pobres, pois, tanto naquele tempo (cf. 2Ts 2,3;
Mt 24,12[3])
como hoje, muitos são tentados a desanimar.
Finalmente, a expressão
de Lc 18,8b pode ainda ser entendida assim: será que somos pessoas de fé, ao
ponto de reconhecer a presença da justiça de Deus agindo já em nosso meio ainda
sob os solavancos das injustiças? Ou temos fé só para a vinda do Filho do Homem
no final dos tempos? Não será agora a hora de sentirmos que Deus está fazendo
justiça às pessoas empobrecidas que não perdem a fé em Deus? Essa fé se
expressa nas conquistas de lutas concretas por direitos e pelo bem comum, lutas
travadas por pessoas e grupos organizados contra a impunidade dos grandes
criminosos, assim como a injustiça e a violência que se abatem sobre os mais
empobrecidos e violentados?
“Não estou nunca sozinho. Deus está sempre comigo”, me disse sorrindo o papai José
Moreira de Souza quando eu, estando na Itália para estudar hermenêutica bíblica,
disse a ele que estava preocupado porque ele estava vivendo sozinho lá na roça.
Oxalá cultivemos a oração como encontro amoroso com Deus, mas colada com a luta
por justiça, o que faz irromper sinais do reino divino no nosso meio.
Infelizmente, atualmente, um crescente
número de pessoas alimentam suas devoções particulares, oram a Deus desejosos
que se coloque a serviço de seus interesses e se esquecem de quem vive em
situação de injustiça, de exclusão, de sofrimento. Esta prática é uma
contradição gritante com o ensinamento e a práxis de Jesus Cristo. Jesus de
Nazaré subverteu a ordem religiosa, social, política e econômica, defendendo a
dignidade humana, colocando a vida acima da lei, dos ritos. É anticristão
praticar a cultura do individualismo, da indiferença diante da realidade que
provoca tantas mortes e violências.
A exemplo da viúva desta parábola, possamos
cultivar espiritualidade libertadora, que nos anima para a luta necessária por
condições dignas de vida para todas as pessoas e toda a criação, que nos faz
“buscar o Reino de Deus e a sua justiça”. Eis o caminho bom e santo a ser
seguido.
14/10/2025
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam
sobre o assunto tratado, acima.
1
- VIÚVA DO EVANGELHO QUE CLAMA POR JUSTIÇA: AVÓ MARLENE, NA OCUPAÇÃO-BAIRRO
ELIANA SILVA/MLB Vídeo 14
2
- Helba, viúva do fiscal Nelson: "São muitas provas que condenaram Antério
Mânica. 4 mandantes livres"
3 - Deuteronômio 24,17-22: "Deixe para o órfão, a viúva e o migrante". Rosa e Frei Gilvander – 2 - 3/9/2020
4 - Viúva do Evangelho e o Juiz no Acampamento Maria da Conceição, do MST, em Itatiaiuçu, MG. Vídeo 6
5
- Viúva e luta pela Justiça: Homilia de frei Gilvander/131a Festa N. Sra.
Rosário/Airões/MG. Vídeo 7
6
- Ocupação Nelson Mandela, Serra/BH/MG: Viúva e mãe de 6 filhos clama por
moradia digna . 29/12/14
7
- Chacina dos fiscais em Unaí: Entrevista com a viúva
do Ailton, Marlene e filha Rayanne. 18/01/2013
[1] Frei e padre da Ordem
dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em
Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT,
CEBI e Ocupações Urbanas; autor de livros e artigos. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– Canal no You Tube: https://www.youtube.com/@freigilvander
– No instagram: @gilvanderluismoreira – Facebook:
Gilvander Moreira III – No https://www.tiktok.com/@frei.gilvander.moreira
[2] Cf.
Gn 21,1; Ex 22,22; Lev 18,25; Dt 10,18; Dt 24,17; Dt 24,21; Dt 27,19; Nm 16,29;
Sl 68,5; Sl 94,6; Sl 109,9; Sl 146,9; Jó 22,9; Jó 24,3; Lm 5,3; Prov 23,10; Rt
1,14; Jr 49,11; Is 10,2; Os 9,9; Ez 22,7; Zc 7,10; Mal 3,5; Mt 25,36; Lc
1,43.68.77; Jo 14,18; Tg 1,27; e inúmeras outras vezes.
[3] “A
maldade se espalhará tanto, que o amor de muitos se resfriará.”
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