terça-feira, 13 de maio de 2025

LEÃO XIV SERÁ PAPA DA LUTA PELA JUSTIÇA SOCIAL? Por frei Gilvander

LEÃO XIV SERÁ PAPA DA LUTA PELA JUSTIÇA SOCIAL? Por frei Gilvander Moreira[1]

Papa Francisco e Papa Leão XIV. Reprodução Redes Virtuais

O novo Papa LEÃO XIV assumiu o ministério de bispo de Roma e primaz da comunhão universal da Igreja dia 08 de maio de 2025. De nascimento, ele é norte-americano, mas é muito mais latino-americano porque foi missionário no meio dos pobres no Peru. Por mais de vinte anos, trabalhou com comunidades camponesas e indígenas, e por amor ao povo peruano adquiriu a cidadania peruana. Após ser anunciado como Papa, escolhido pelos Cardeais no Conclave, Robert Francisco Prevost saudou o povo da Diocese de Chiclayo no Peru em espanhol e não disse nada em inglês ao povo dos Estados Unidos.

Pelo Papa Francisco, em 2014, foi nomeado bispo da Diocese de Chiclayo no norte do Peru, região de povo empobrecido, onde caminhou no meio dos pobres, ouviu, dialogou, animou lutas por justiça e solidariedade. Prevost já denunciou atrocidades do ex-presidente Fujimori e criticou Trump na sua postura autoritária, ao deportar imigrantes. Os mais de 20 anos que viveu e atuou pastoralmente no Peru forjaram Robert Francisco Prevost como "pastor com cheiro de ovelha" que Francisco tanto gostava. Por não ser bispo príncipe e nem de palácio, Prevost foi convidado pelo Papa Francisco para, em Roma, assumir o Ministério (Dicastério) dos Bispos. Como bom mineiro, desconfio que o Papa Francisco, ao torná-lo Cardeal, quando já sentia que suas forças físicas estavam diminuindo, quis sinalizar que Prevost era o Cardeal que ele, Francisco, queria como seu sucessor, pois se revelava ser da mesma linha de Francisco e discípulo autêntico de Jesus Cristo e do seu Evangelho.

Na sua primeira aparição como Papa na janela do Vaticano, Prevost citou duas vezes o papa Francisco. Adotar o nome de papa Leão XIV indica que ele vai abraçar o estilo do papa Leão XIII, criador e pai do Ensinamento Social da Igreja, papa que publicou a histórica Encíclica RERUM NOVARUM (“Das Coisas Novas”), que defende os direitos da classe trabalhadora, a dignidade humana. Ao aparecer sorrindo na janela do Vaticano me fez recordar do Papa João Paulo I, o que viveu apenas 33 dias como Papa, que se apresentou sorrindo e dizendo: “Deus é Pai e é Mãe, mas é mais Mãe do que Pai..." Eloquente também o Papa Leão XIV ter dito na sua primeira saudação: "A paz de Jesus Ressuscitado, paz desarmada e desarmante, esteja com vocês". “A igreja deve construir pontes”, indireta aos fascistas Trump e Netanyaru que têm investido de forma brutal na construção de muros de segregação. “Queremos ser uma igreja sinodal, uma igreja que caminha, que sempre busca a paz...” "Igreja que acolha todos/as, principalmente os sofredores".

Por que e para que o novo Papa adotou o nome de Leão XIV? É porque ele quer ser o Papa da luta pela Justiça Social? Temos que recordar que, em contexto de desrespeito à dignidade humana e de superexploração da classe trabalhadora e da classe camponesa e diante da luta dos socialistas que defendiam a abolição da propriedade privada, reforçando a luta pelos direitos humanos fundamentais, a dignidade humana tem sido defendida pelo Ensinamento Social da Igreja Católica, expressa em várias encíclicas papais.

Nessa perspectiva, rejeitando a tese socialista da abolição da propriedade, a Rerum Novarum: sobre a condição dos operários, encíclica do Papa Leão XIII, de 15 de maio de 1891, afirma que a propriedade, inclusive a dos bens de produção, é um direito natural de todas as pessoas e não apenas de 5% da humanidade. A propriedade tem que exercer sua função social e não se destina apenas a satisfazer os interesses do proprietário. Significa, também, uma maneira de atender às necessidades de toda a sociedade.

Em um contexto no qual as Constituições de muitos países garantiam direito absoluto à propriedade, como a Constituição Imperial Brasileira de 1824, na Rerum Novarum, o Papa Leão XIII advogou que toda propriedade tem que cumprir sua função social. Na época e até em nossos dias, isso é algo que parece revolucionário, pois, injustamente, na prática o direito à propriedade segue sendo garantido apenas para uma minoria e sem cumprir nenhuma função.

Desde 1891 os papas (re)afirmam Ensinamento Social semelhante em várias encíclicas: a Quadragesimo Anno, do papa Pio XI, de 1931 (escrita justamente em celebração ao 40º aniversário da Rerum Novarum); a Mater et Magistra (Mãe e Mestra), do papa João XXIII, de 1961; a Gaudium e Spes (Alegrias e Esperanças), documento do Concílio Vaticano II, de 1965, e a Populorum Progressio (Do Progresso dos Povos), do papa Paulo VI, de 1967, as quais afirmam que o conjunto de bens da terra destina-se, antes de mais nada, a garantir a todas as pessoas um decente teor de vida pelo conjunto de condições sociais que permitam e favoreçam o desenvolvimento integral de sua personalidade. A propriedade é um direito que comporta obrigações sociais.[2]

O papa Francisco na carta Encíclica Laudato Si’ (Louvado Sejas), de 24 de maio de 2015, reafirma o destino comum dos bens como um princípio inarredável do Ensinamento Social da Igreja. Diz Francisco: “A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada. [...] Sobre toda a propriedade particular pesa sempre uma hipoteca social, para que os bens sirvam ao destino geral que Deus lhes deu” (PAPA FRANCISCO, 2015: n. 93).

O papa Francisco transcreve na Encíclica Laudato Si’ o que disse os bispos do Paraguai na Carta Pastoral El campesino paraguayo y la tierra, de 1983: “Cada camponês tem direito natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa gozar de segurança existencial. Este direito deve ser de tal forma garantido que o seu exercício não seja ilusório, mas real. Isto significa que, além do título de propriedade, o camponês deve contar com meios de formação técnica, empréstimos, seguros e acesso ao mercado” (PAPA FRANCISCO, 2015: n. 94).

Está na Constituição brasileira de 1988 a exigência de cumprimento da função social da propriedade fundiária, mas o Estado não cumpre a Constituição neste e em nenhum dos direitos sociais constitucionais. Pior, dribla o tempo todo as leis que garantem os direitos sociais. Por isso, a luta pela Justiça Social precisa seguir de forma firme.

Conforme escreveu o padre Alfredo Gonçalves: "O nome do pontífice eleito obedece a critérios pastorais precisos. Enquanto Francisco nos remetia ao pobre de Assis, Leão XIV nos remete a Leão XIII. Leão XIII, por sua vez, foi o Papa que teve a coragem de publicar a Carta Encíclica Rerum Novarum, em 1891, que tinha como subtítulo "a condição dos operários". Carta que se tornou o primeiro documento da Doutrina Social da Igreja (DSI). Cabe lembrar que esse subtítulo havia sido publicado em um livro do companheiro de Karl Marx, Friedrich Engels - A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra - a condição dos operários nas fábricas da Inglaterra" – publicado em 1845, 46 anos antes.

O depauperamento moral de mulheres e crianças, resultante da exploração de seu trabalho pelo capital, foi descrito por vários escritores e com toda a precisão necessária por Engels, aos 25 anos, na sua obra sobre a condição/situação dos operários. Em O Capital, Marx cita vários relatórios de inspetores ingleses de trabalho. Em um relatório se diz: “O fato é que, antes da lei de 1833, crianças e adolescentes de ambos os sexos eram postos a trabalhar toda a noite, o dia inteiro, às vezes, noite e dia segundo a vontade do empregador” (MARX, 1982: 99).

Na época em que a classe trabalhadora reivindicava diminuição da jornada de trabalho para 18 horas diárias, profundamente incomodado e indignado com a miséria imposta à classe trabalhadora inglesa, para sustentar que na sociedade capitalista o motor da história é a luta de classes, Marx cita também M. Broughton, juiz de paz, que declarou: “Na parte da população urbana empregada nas fábricas de renda, reinam uma miséria e uma carência desconhecidas pelo resto do mundo civilizado [...] às duas, três, quatro horas da manhã, crianças de nove e dez anos são arrancadas de seus leitos miseráveis e forçadas a trabalhar até dez, onze, doze horas da noite para ganhar simplesmente o necessário para a subsistência. Enquanto elas trabalham, seus membros definham, seu talhe diminui, sua fisionomia toma um ar abobalhado, todo o seu ser cai num torpor tal que seu aspecto as assusta” (BROUGHTON apud MARX, 1982: 99).

Da oficina artesanal para a fábrica de manufatura o operário é transformado de ferramenta a máquina. Em um trabalho sem fim e extenuante, imediatamente, o operário não mais produz diretamente a mercadoria, mas apenas move a máquina que produz a mercadoria. “Na manufatura, os operários são membros de um mecanismo vivo; na fábrica, são apenas complementos vivos de um mecanismo morto que existe independentemente dele” (MARX, 1982: 113). No volume I de O Capital, Marx cita Engels em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, de 1845: “A lamentável rotina de um trabalho sem fim, onde o mesmo processo mecânico renova-se sem cessar, assemelha-se ao trabalho de Sísifo; o peso do trabalho cai sempre sobre o operário esgotado” (ENGELS apud MARX, 1982: 113).

Este contexto de exploração da dignidade humana no mundo do trabalho da primeira revolução industrial moveu o Papa Leão XIII a defender os direitos dos trabalhadores. Agora, ao assumir o nome de Leão XIV, o novo Papa se coloca na esteira dos papas que se preocuparam com a questão social e assumiram a luta pela Justiça Social.

O Papa Leão XIV disse no seu primeiro Encontro com os Cardeais após ser escolhido: “Escolhi adotar o nome de Leão XIV. As razões são várias, mas a principal é que o Papa Leão XIII, com a histórica Encíclica Rerum Novarum, abordou a questão social no contexto da primeira grande revolução industrial e hoje a Igreja oferece a todos o seu patrimônio de doutrina social para responder a mais uma revolução industrial e ao desenvolvimento da inteligência artificial, que trazem novos desafios na defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho” (Discurso do Papa Leão XIV ao colégio dos Cardeais, dia 10/05/2025).

Avançando em barbárie, o sistema capitalista está mostrando suas garras brutais ao pisotear a natureza com toda sua biodiversidade e violentando cada vez mais de forma atroz a dignidade humana. Ao concentrar renda, riqueza e poder em apenas 5% da população e impor exclusão social, pobreza e fome para 95%, este sistema fomenta o fascismo e empurra as massas desesperadas para as propostas religiosas espiritualizantes, desencarnadoras da fé e negadoras da dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo. Tendo como motor o lucro e a acumulação de capital, gigantescas desigualdades sociais e migrações compulsórias estão sendo produzidas por esta “economia de morte”, como dizia o papa Francisco. Consequência: desemprego, subemprego, trabalho informal e/ou nos moldes da escravidão contemporânea.

Ao trabalhar como missionário no norte do Peru em meio aos mais pobres, Leão XIV experimentou essas contradições e descobriu que sem Justiça Social não teremos paz, nem respeito à dignidade humana e nem à dignidade da natureza. Ecologia Integral não se constrói sem Justiça Social. “Buscando inspiração em Leão XIII, pastor dos operários e da Doutrina Social da Igreja, e dando seguimento a Francisco, pastor dos pobres e migrantes... seja firme na defesa dos direitos humanos e na promoção da dignidade humana”, propomos em sintonia com o escrito pelo padre Alfredo Gonçalves.

O Papa Leão XIV disse em seu primeiro discurso aos Cardeais: “Vamos reunir a valiosa herança do Papa Francisco e retomar o caminho proposto pelo Concílio Vaticano II”. Esperamos que o papa Francisco, Leão XIII e Jesus Cristo sigam vivos no papa Leão XIV e em nós na luta sempre pelo que justo e ético. Por isso, intuo que o papa Leão XIV entrará para a história como o Papa da luta pela Justiça Social também colocando em prática a Opção pelos Pobres, que passa necessariamente pelos grandes desafios a serem por ele enfrentados, apontados sabiamente por Leonardo Boff: “desocidentalizar e despatriarcalizar a Igreja Católica face à nova fase da humanidade.”

Enfim, a nossa esperança é que o Papa Leão XIV valorize o legado do Papa Francisco, os avanços conquistados em seu pontificado: compromisso com os pobres, ecologia integral, sinodalidade, cultura do encontro..., com Evangelho para além dos templos. E siga avançando no que se refere à maior participação de todas as pessoas, inclusive nas diversas posições de liderança, especialmente das mulheres,  na construção de uma Igreja fraterna, igualitária, conforme as exigências do Evangelho de Jesus de Nazaré.

13/05/2025.

Referências

MARX, Karl. O Capital. Edição resumida. 7ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.

MOREIRA, Gilvander Luís. Laudato si´ e as lutas dos movimentos socioambientais. In: MURAD, Afonso; TAVARES, Sinivaldo Silva (Org.). Cuidar da Casa Comum: chaves de leitura teológicas e pastorais da Laudato Si´. São Paulo: Paulinas, p. 197-217, 2016a.

 

Obs.: As videorreportagens no link, abaixo, de alguma forma VERSAM sobre o assunto tratado, acima.

1 - Paz e Bem #2363 - Habemus papam (Emerson Sbardelotti) - 12.Mai.25

2 - PAPA FRANCISCO E O EVANGELHO DE JESUS CRISTO, SEU LEGADO E DESAFIOS NOSSOS. Marcelo Barros/Gilvander


3 - PAPA FRANCISCO, OUTRO FRANCISCO DE ASSIS, PEREGRINO DE ESPERANÇA - Por frei Gilvander Moreira


4 - 7a Live: A "Fratelli Tutti" do Papa Francisco e o papel dos Cristãos na Política: Fora, Bolsonaro?



[1] Doutor em Educação pela FAE/UFMG; Mestre em Ciências Bíblicas; Bacharel e Licenciado em Filosofia; Bacharel em Teologia; frei e padre da Ordem dos Carmelitas; e Agente de Pastoral e Assessor da CPT/MG (Comissão Pastoral da Terra – www.cptmg.org.br ); e-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.gilvander.org.brwww.youtube.com/@freigilvander – No instagram: @gilvanderluismoreira

[2] Cf. nota n. 7 de MOREIRA, G. L.; LAUREANO, D. S.; “MST – 25 anos de luta por reforma agrária”. In: Revista Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 6  n. 11  p. 11-29, Janeiro - Junho de 2009, p. 18, onde se cita CHEMERIS, Ivan Ramom. “A Função Social da Propriedade, o Papel do Poder Judiciário Diante das Invasões Coletivas”. Disponível em: http://www.domhelder.edu.br/veredas_direito/pdf/29_180.pdf , acesso em 02/11/2016, às 22h27.

 

quarta-feira, 23 de abril de 2025

PAPA FRANCISCO, OUTRO FRANCISCO DE ASSIS, PEREGRINO DE ESPERANÇA. Por frei Gilvander

PAPA FRANCISCO, OUTRO FRANCISCO DE ASSIS, PEREGRINO DE ESPERANÇA. Por frei Gilvander Moreira[1]

Na madrugada do dia 21 de abril de 2025, no ônibus, voltando de missão no Acampamento Vida Nova, em Jordânia, e da Ocupação Irmã Dorothy, em Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG, ao passar pela cidade de João Monlevade, voltando para Belo Horizonte, eu fiquei muito comovido ao saber da travessia do nosso querido irmão Papa Francisco[2] para a vida plena. Ele se transvivenciou, se encantou e nos deixou um extraordinário legado de ética, de humanismo, de profecia, de espiritualidade libertadora, de luta pelos direitos humanos, pela ecologia integral...

Francisco pediu um velório e sepultamento simples, sem pompas, e que fosse escrito no seu túmulo apenas uma palavra: “Franciscus”. Homem imprescindível, que lutou até o fim pelo que é justo. No seu último dia de vida no nosso meio, no Domingo de Páscoa, ainda teve força para nos abençoar, nos desejar feliz Páscoa e deixar sua última mensagem à Igreja e ao mundo, em que faz apelo “a todos os que, no mundo, têm responsabilidades políticas para que não cedam à lógica do medo que fecha, mas usem os recursos disponíveis para ajudar os necessitados, combater a fome e promover iniciativas que favoreçam o desenvolvimento” e lembrou que “estas são as armas da paz: aquelas que constroem o futuro, em vez de espalhar morte!” 

Papa Francisco foi outro Francisco de Assis que guiou a Igreja Católica com humildade, sabedoria, sensatez e profecia. O papa João XXIII (1881-1963) tentou reformar a Igreja convocando e iniciando o Concílio Vaticano II. Francisco lançou sementes no concreto duro da instituição Igreja ao convocar e realizar vários Sínodos, mostrando que é por meio da caminhada conjunta, se animando comunitariamente, incluindo todos e todas, dialogando, em missão, sendo “igreja em saída”, que a Igreja e as pessoas que se dizem católicas vão conseguir ser coerentes com o ensinamento e a práxis de Jesus Cristo.

 Francisco fez vários Encontros com Movimentos Sociais Populares de todo o mundo. Defendeu a utopia de: “nenhum/a CAMPONÊS/A sem terra, nenhuma PESSOA/FAMÍLIA sem casa, nenhum/a TRABALHADOR/A sem direitos, não há DEMOCRACIA com fome, nem DESENVOLVIMENTO com pobreza, nem JUSTIÇA na desigualdade...”

Papa Francisco, o primeiro pontífice latino-americano e o primeiro jesuíta a liderar a Igreja Católica, um dos maiores e melhores profetas de todos os tempos, lutou pela construção de uma igreja de todos, para todos/as e todes. Foi um papa ecumênico que cultivou o diálogo inter-religioso. Ele pregava que a espiritualidade nos une na construção de uma sociabilidade justa e solidária. Francisco, papa da Ecologia Integral, que denunciou a economia capitalista, a idolatria do mercado, como “economia que mata”. Em uma única Casa Comum, “somos todos irmãos e irmãs (“Fratelli tutti”), enfatizou Francisco em livro, em Encíclica etc. Como peregrino de esperança e semeador de uma sociedade justa e solidária, e de uma igreja que não reproduza o regime da Cristandade, aliada aos poderes político e econômico, mas uma igreja dos pobres que acolhe misericordiosamente todos/as sem discriminação e que promova a igualdade de direitos, que repudia a intolerância religiosa, o fundamentalismo e o moralismo anticristão, o papa Francisco condenou todas as guerras, o genocídio do Povo Palestino e clamava diariamente pela paz como fruto da justiça. Denunciando o genocídio que o Estado de Israel segue fazendo sobre o Povo Palestino, Francisco disse: “O que Israel está fazendo é crueldade.”

Como Jesus Cristo e Francisco de Assis, com sorriso nos olhos, o papa Francisco sempre acolheu de braços abertos todas as pessoas, especialmente quem sofre algum tipo de discriminação e injustiça: os indígenas, os camponeses, os negros, as crianças, as mulheres, as pessoas LGBTQIA+, os imigrantes, os presos, os refugiados, as pessoas em situação de rua... Francisco sabia que em uma sociedade brutalmente desigual quem se diz neutro e fica “em cima do muro” se torna cúmplice das opressões e injustiças. Francisco sempre escolheu o lado dos humildes, dos empobrecidos/as e injustiçados/as. Francisco teve a coragem de pedir perdão pelos crimes do colonialismo e de reconhecer a sabedoria e os direitos dos Povos Originários/Indígenas. Às juventudes, no Rio de Janeiro, em 2013, Francisco bradou: “Sejam como Jesus Cristo: REVOLUCIONÁRIOS! Não tenham medo de ir contra a corrente”.

Papa Francisco, durante seus 12 anos de pontificado, promoveu importantes reformas na Cúria Romana, combateu com firmeza os abusos dentro da Igreja e fortaleceu a presença de mulheres no Vaticano, incluindo-as em funções de destaque, abriu recentemente um novo processo para reformas na Igreja Católica, inserindo a possibilidade de mulheres servirem como diaconisas e uma melhor inclusão de pessoas LGBTQUIA+ na Igreja.  Francisco assumiu posicionamento firme contra a pena de morte, alterou no Novo Catecismo, à luz do Evangelho, a doutrina sobre a pena de morte e prescreveu a sua abolição em todo o mundo, afirmando que “a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa, e se compromete, com determinação, em prol da sua abolição no mundo inteiro”. Coerente com o Evangelho de Jesus de Nazaré criticou reiteradas vezes o consumismo desenfreado e as desigualdades sociais, provocados pelo sistema capitalista, tornando-se uma voz respeitada mundialmente.

Aos opressores e exploradores, falsos cristãos, idólatras de extrema-direita e fascistas que o caluniam chamando-o de “comunista” e com outras injúrias, o nosso irmão Papa Francisco diz: "Pai, perdoai-lhes, pois uns sabem o que fazem, outros estão cegados". Inspirando-se em Jesus que perguntou a um dos seguranças do sistema: “Por que me bates?” (Jo 18,23), Francisco respondeu à acusação de “ser comunista” em uma entrevista ao canal C5N, da TV argentina, em 2023. Disse ele: “Minha carta de identidade é o Evangelho de Mateus 25,31-46. Leia Mateus 25 e veja se quem escreveu era comunista”.

As realidades mais profundas, muitas vezes, só conseguimos enxergar de olhos fechados e após perdermos a presença física da pessoa amada. O papa Francisco foi um gigante na vivência do Evangelho de Jesus Cristo e será ainda maior quando as sementes do seu ensinamento e do seu testemunho se enraizarem em milhões de pessoas pelo mundo afora. Como semente que brota nas rachaduras do concreto, a mensagem do papa Francisco continuará irradiando e será cultivada nos corações de milhões de pessoas pelo mundo afora. E gerará primaveras de justiça, paz e amor.

Papa Francisco, agora na glória, viverá presente em nós sempre na luta por tudo o que é justo. Gratidão eterna ao nosso querido irmão papa Francisco, recebido com aplausos na vida plena pelos anjos e anjas, por Francisco de Assis, por Jesus Cristo, pelas crianças palestinas massacradas pelo Estado genocida de Israel com a cumplicidade do desgoverno dos Estados Unidos e por tantos outros irmãos e irmãs, discípulas e discípulos autênticos de Jesus de Nazaré que já fizeram sua travessia definitiva.

Rezemos para que os cardeais do Conclave compreendam o sopro do Espírito Santo e tenham a sensatez de escolher um novo papa que seja fiel ao Evangelho de Jesus Cristo, a Francisco de Assis e ao Francisco de Roma.

23/04/2025. 

Obs.: A videorreportagem no link, abaixo, de alguma forma ATUALIZA o assunto tratado, acima.

1 - Francisco de Assis e o Papa Francisco: Ecologia Integral - Por Frei Gilvander - 10/6/2020


2 - Frei Betto encontra Papa Francisco e fala na Rádio Vaticano: Dez anos de Francisco, COP30, Sínodos

3 - Papa Francisco, “Igreja em Saída e Sinodal”, Cantoria e Oração (CEBs de MG, ES e RJ): XV Inter CEBs


4 - Papa Francisco: "Terra, Teto e Trabalho!" Sete Lagoas/MG, 28o Grito dos Excluídos. Direitos, Já!

5 - Papa Francisco: “A igreja deve lutar junto com os Movimentos Populares na defesa dos pobres"-15/7/21



[1] Doutor em Educação pela FAE/UFMG; Mestre em Ciências Bíblicas; Bacharel e Licenciado em Filosofia; Bacharel em Teologia; frei e padre da Ordem dos Carmelitas; e Agente de Pastoral e Assessor da CPT/MG (Comissão Pastoral da Terra – www.cptmg.org.br ); e-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.gilvander.org.brwww.youtube.com/@freigilvander – No instagram: @gilvanderluismoreira

[2] Jorge Mario Bergoglio, nascido em 17 de dezembro de 1936, em Buenos Aires, Argentina, foi eleito Papa Francisco em 13 de março de 2013.

sexta-feira, 18 de abril de 2025

O QUE PEDE DE NÓS A PAIXÃO DE JESUS SEGUNDO O EVANGELHO DE LUCAS? (Lc 22,1-23,56). Por frei Gilvander

O QUE PEDE DE NÓS A PAIXÃO DE JESUS SEGUNDO O EVANGELHO DE LUCAS? (Lc 22,1-23,56). Por frei Gilvander Moreira[1]



A paixão de Jesus Cristo é narrada nos quatro Evangelhos da Bíblia. Em Lucas, começa com o anúncio da traição de Judas (Lc 22,21-23). Estando reunido com seus discípulos e discípulas pela última vez, Jesus anuncia: "A mão daquele que me trai está comigo sobre a mesa". Este jeito de falar acentua o contraste. O traidor seria um íntimo. Ser traído por um companheiro reforça o heroísmo do líder (cf. a História e a Mitologia grega). O nome Judas ajuda a associar a judeus, a Judá. É, provavelmente, uma forma de tentar inocentar o Império Romano, ao lado do governador Pilatos “lavando as mãos”, o que é muito pouco provável historicamente, pelo caráter sanguinário e opressor de Pilatos, conforme escreveu o historiador Flávio Josefo, do 1º século da Era Cristã. Para os judeus, a comunhão de mesa era a expressão máxima da amizade, da intimidade e da confiança. Jesus ser morto na cruz não se trata de predestinação nem de fatalismo. Em um mundo organizado a partir do egoísmo e da ganância, quem decide viver o amor vai ser condenado “a morrer crucificado”.

Segundo os Evangelhos de Marcos e Mateus, Jesus está desesperado. “Apavora-se, angustia-se”. Muito diferente, em contrapartida, é o relato de Lucas. Lucas não descreve diretamente a angústia de Jesus e omite a frase: "A minha alma está triste até a morte". Não aparece o tríplice e inquieto ir e vir de Jesus. Os discípulos são repreendidos somente uma vez e também a oração é proferida somente uma vez.

Lucas acrescenta o seguinte: o anjo que conforta Jesus (Lc 22,43)[2]; a oração que, no momento da agonia, se faz mais forte e insistente, e o suor de sangue; "como de costume" (cf. Lc 21,37), afasta-se dos discípulos "a um tiro de pedra"; não reza prostrado por terra, mas "dobrando os joelhos" (naquele tempo o costume era rezar em pé), e os discípulos adormeceram "de tristeza".

"Os discípulos o acompanhavam". Aqui aparece o verbo técnico do seguimento. Jesus e os discípulos estão juntos, mesmo se em atitudes contrastantes; e, se caem de sono, é "de tristeza". Lucas procura desculpá-los revelando ternura. A tensão entre Jesus e os discípulos, em Lucas, é, na verdade, lembrada, mas também, de certa forma, dissolvida. Lucas sabe muito bem que, na realidade, os discípulos abandonaram Jesus no momento mais trágico e que Pedro até mesmo o renegou, mas sabe também que, depois, estes mesmos discípulos deram a sua vida por Jesus Cristo e seu Evangelho.

Jesus, que supera a tentação rezando, é o quadro. A moldura é "orai para não entrardes em tentação". Lucas quer ensinar às comunidades que, se pretendem superar as tentações, é necessário rezar, como fez Jesus. É como diz a sabedoria popular: "Certos "problemas" só se resolvem com reza "brava"". A oração é a única arma capaz de deter a tentação de querer instaurar o Reino com a violência do poder.

Por que Judas trai Jesus? Porque não concorda com a forma de Jesus exercer a sua liderança messiânica, não eliminando os inimigos (cf. Lc 9,54). E também Judas trai Jesus pela idolatria do dinheiro (cf. Lc 16,13[3]). Segundo Lucas, no tempo da Paixão, Jesus e os discípulos estão unidos na mesma luta.

Narrada em Lc 22,47-53, o que a prisão de Jesus quer nos dizer? O primeiro traço que desperta a atenção do leitor estudioso são os silêncios. Lucas diz que Judas "se aproximou de Jesus para beijá-lo". Mas não diz se de fato o beijou. Em seguida, não existe nenhum aceno à prisão e nenhuma referência à fuga dos discípulos. Lucas procura calar, embora supondo-as, sobre as coisas mais humilhantes que Jesus sofreu. Jesus é traído, aprisionado e abandonado, mas é, apesar disso, sempre o Senhor glorioso e inatingível.

Para Lucas, Jesus é eminentemente misericordioso, aquele que sempre perdoa. Lucas não perde oportunidade de colocar também em evidência que Jesus e compassivo-misericordioso. Mais do que o discurso, o gesto de Jesus na hora em que seu discípulo decepa a orelha de Malco, um segurança do sumo-sacerdote ("E tocando-lhe a orelha, curou-o") revela a lógica que o guia: Não à violência, nem mesmo para resistir a outra violência, mas somente o amor. Jesus é coerente com o seu ensinamento de amar os inimigos, inclusive. A distância entre Jesus e os discípulos não poderia parecer maior, na compreensão. Para uns discípulos é lógico resistir. A paixão de Jesus não aconteceu nem porque Deus quis a morte do seu Filho – o Deus da vida não é sádico! -, nem porque Jesus era masoquista e queria morrer, mas foi consequência da opressão humana (sistema e pessoal) e da arrogância dos poderosos da economia, da política e da religião, que, já naquele tempo, sentiam-se donos da vida dos seres humanos. Jesus assumiu o martírio por solidariedade a todas as vítimas do mundo, a todos/as os/as crucificados/as da história, de todos os tempos.

O dinheiro recebido por Judas (Lc 22,5) para trair Jesus, segundo Mt 26,15, tratou-se de trinta siclos de prata (e não de trinta denários, como se afirma frequentemente). Era o preço que a Lei fixava para a vida de um escravo (Ex 21,32), o equivalente a quatro meses de trabalho. Logo, Jesus foi entregue pelo preço de um escravo (cf. Mt 26,15).

Diferentemente de quanto afirmam os Evangelhos de Marcos (Mc 14,48-49) e Mateus (Mt 26,55), as últimas palavras de Jesus não são dirigidas à multidão, mas diretamente aos mandantes ("chefes dos sacerdotes, chefes dos guardas do Templo e anciãos"). Lucas sabe muito bem que, para prender Jesus veio "uma multidão" (cf. Lc 22,47), e não os mandantes. Mas ele se dirige diretamente a estes, os verdadeiros responsáveis. É a eles que Jesus fala, pois são os principais responsáveis pela condenação de Jesus à pena de morte e sua execução.

E Jesus diante do sinédrio? (Lc 22,66-71.63-65). Após o relato da prisão de Jesus, Lucas abandona a ordem da narração de Marcos e Mateus, colocando os episódios diferentemente. Primeiro, a negação de Pedro (Lc 22,54-62); depois, a cena dos ultrajes (Lc 22,63-65) e, por último, o interrogatório diante do Sinédrio (Lc 22,66-71).

O Sinédrio era um "parlamento com poder judiciário. Era composto por 71 membros (Fariseus + Anciãos + Sumo-sacerdote + Saduceus + Escribas). Segundo At 5, pelo menos um fariseu - Gamaliel - pertencia ao Sinédrio. Gamaliel consegue fazer valer sua opinião no Sinédrio. Segundo At 23, o Sinédrio era composto por fariseus e saduceus. Não se sabe se pertencer a um destes grupos era algo relevante para ser membro do Sinédrio ou se, ao contrário, os membros do Sinédrio eram determinados segundo outros critérios, como família, propriedade ou função.

"Negado pelo primeiro dos discípulos, espancado e escarnecido pelos seus adversários, Jesus anuncia diante dos chefes de Israel a sua reivindicação como Messias e filho de Deus[4]". Está delineada a figura do mártir, que nada consegue dobrar, nem a traição dos amigos nem a zombaria dos inimigos. O interrogatório de Jesus é conduzido por todos juntos, unanimemente, em coro, como se, na condenação de Jesus, ninguém pudesse ser considerado mais responsável do que o outro. O segundo significado é a absoluta centralidade de Jesus.

"Se eu vos disser, não acreditareis, e se eu vos interrogar, não respondereis" (Lc 22,67b-68). Com estas palavras, um pouco enigmáticas, que não têm nenhum paralelo em Marcos e Mateus, Jesus denuncia o vício de fundo do interrogatório: a hipocrisia dos juízes, que fingem indagar, mas na realidade já estão de posse da resposta. "Eles somente interrogam para encontrar motivos de condenação, não para saber, portanto não merecem ou não mereceriam uma resposta[5]". Com esta denúncia, Jesus, o interrogado, se transforma em juiz. É inútil dar uma resposta, se não existe a sinceridade da pergunta.

O que nos diz a cena de Jesus diante de Pilatos (Lc 23,1-25)? Lucas insiste em realçar a unanimidade (em forma de coro) da rejeição de Jesus. Multidão, sacerdotes e anciãos se sobrepõem. Não se diz que os sacerdotes incitaram a multidão. Para Lucas, autoridades e multidão são responsáveis do mesmo modo e no mesmo nível. Além da unanimidade, surpreende o encarniçamento da rejeição. Os acusadores seguem Jesus em todos os diferentes deslocamentos: do Sinédrio a Pilatos, de Pilatos a Herodes, de Herodes a Pilatos. Não são somente graves e infundadas as acusações contra Jesus, mas também e, sobretudo, encarniçada e furiosa a maneira como o acusam.

Lucas dá a entender que os responsáveis pela morte de Jesus são as autoridades judaicas, especificamente o Sinédrio, e inocenta o povo e Pilatos. Se as autoridades do Sinédrio tivessem coragem de peitar o povo, poderiam optar pela via do apedrejamento, como o farão mais tarde com Estêvão (At 6 e 7), mas preferem optar pela via política, arrancando de Pilatos o castigo aplicado aos que se rebelavam contra o império romano escravocrata.

O que as acusações contra Jesus (Lc 23,1-2) nos dizem? As acusações contra Jesus são fundamentalmente três: a) subverte a nação (acusação social religiosa); b) impede que se paguem os impostos[6] (acusação econômica) a César; c) e se proclama rei – acusação política - (cf. Lc 23,2). A acusação principal é a primeira, de tal sorte que é retomada mais adiante pelos acusadores ("ele subverte o povo” (Lc 23,5) e por Pilatos ("Vós me apresentastes este homem como agitador do povo" (Lc 23,14)).

Os chefes judeus temem a subversão religiosa. Contudo, diante de Pilatos, deixam entender que o seu temor diz respeito, acima de tudo, à subversão política, conforme fica sugerido claramente pela segunda acusação: não pagar tributos a César. Trata-se de uma maliciosa inversão de perspectiva que comprova a sua falta de sinceridade. Em parte, porém, eles mesmos se traem, ao insistirem, dizendo: "Ele subverte o povo, ensinando por toda a Judeia, desde a Galileia, onde começou, até em Jerusalém” (Lc 23,5). Logo, era o ensinamento de Jesus que metia medo nas autoridades opressoras e exploradoras.

E a inocência de Jesus (Lc 23,3-5)? Por três vezes, Pilatos declara publicamente que Jesus é inocente (cf. Lc 23,4.14-15.22) e por três vezes externa o desejo de soltá-lo (Lc 23,16.20.22). Contudo, ao final, entrega Jesus "ao arbítrio deles" (Lc 23,25).

Segundo muitos biblistas, o objetivo de Lucas é o de desculpar Jesus (e os cristãos) diante do império romano de qualquer acusação política. A sociedade romana não precisaria temer nada dos cristãos. Jesus não teria nada a ver com os zelotas, do tipo Barrabás, diz Lucas. Mesmo se o seu fundador foi crucificado - processado por um procurador romano e sentenciado com a condenação que os romanos reservavam aos revoltosos -, a acusação de sublevação que lhe foi imputada era completamente infundada. Na década de 80 do 1º século, com as pessoas cristãs sendo expulsas da sinagoga, Lucas percebe que é melhor ir infiltrando no império romano que confrontá-lo abertamente, o que poderia levar à exasperação da perseguição às pessoas cristãs.

A ironia da troca entre Barrabás e Jesus (Lc 23,18-19) é, em Lucas, muito mais descoberta do que em Marcos e Mateus. Acusam Jesus de ser um subversivo e pedem a libertação exatamente de um subversivo! Com efeito, Lucas descreve Barrabás assim: "Este último havia sido preso por um motim na cidade e por homicídio" (Lc 23,19). Lucas quer dizer: este povo não sabe o que faz, não tem cabeça, é massa e não povo. Por ironia da história, Jesus, que tinha sido acusado injustamente de amotinar o povo, é entregue ao arbítrio de seus acusadores em troca de um condenado por "subversão e assassinato".

E a verdade de Jesus? Se de um lado Jesus rompe o esquema teocrático, irritando os judeus, por outro lado rompe o esquema do absolutismo político, irritando os romanos. Assim Jesus foi um profeta religioso-político, não somente um revoltoso político. Todavia, as coisas "religiosas" que disse e que fez eram também socialmente e politicamente "perigosas".

E Jesus diante de Herodes (Lc 23,8-12)? A novidade mais importante do relato de Lucas é o comparecimento de Jesus diante de Herodes (Lc 23,8-12), algo que os outros evangelhos não mencionam. Lucas ainda acrescenta: a partir desta data, Pilatos e Herodes, antes inimigos, fazem as pazes. Para a comunidade de Lucas isso tem um sentido muito claro e dramático, que se expressa na oração da primeira comunidade cristã em At 4,24-30: trata-se da união dos poderes opressores e violentos para destruir o ungido de Deus, como já o dissera o Salmo 2. "Nesse mesmo dia Herodes e Pilatos ficaram amigos entre si" (Lc 23,12). Contra a verdade de Jesus, estão de acordo também aqueles que em outras coisas são inimigos, como precisamente os judeus e os romanos.

E a crucificação e morte de Jesus (Lc 23,26-49)? Lucas está muito interessado em mostrar a grandeza ética de Jesus, representando-o como o modelo do mártir cristão. Lucas enfatiza a inocência de Jesus, já enfatizada no processo diante de Pilatos e aqui reconhecida pelo bom ladrão (Lc 23,41) e pelo centurião pagão (Lc 23,47).

Jesus passou toda a sua vida em perene busca dos injustiçados, excluídos e dos pecadores, e agora morre na cruz entre dois malfeitores (Lc 23,33). Falou de perdão e pregou o amor aos inimigos (cf. Lc 6,27-42; 15) e agora, na cruz, não somente rejeita a violência, mas perdoa os seus crucificadores (Lc 23,34) e morre por aqueles que o rejeitam, ilustração viva da misericórdia de Deus, de que fala toda a Escritura Sagrada. O mártir afirma o homem diante de Deus, Jesus afirma Deus diante da pessoa humana.

A caminho do Calvário (Lc 23,26-32) o que nos diz? No caminho para o calvário, os soldados romanos propositalmente não são citados. A estrada que conduzia do palácio do governador ao lugar da execução, fora dos muros, não era longa. O condenado, porém, era obrigado a passar pelas ruas do centro de Jerusalém. A condenação devia ser pública e servir de escárnio. As tropas de ocupação podiam obrigar qualquer um a prestar um serviço de ordem pública. Simão, de Cirene (de fora da Palestina), ajuda Jesus a carregar a cruz. "Vinha do campo" indica que era um discípulo (cf. Lc 6,1). Lucas utiliza, ao contrário, uma expressão mais genérica, de uso civil: "tomaram". E continua: "e impuseram-lhe a cruz para levá-la atrás de Jesus" (Lc 23,26). Simão, personagem representativo ("certo") de um grupo real (nome próprio) de discípulos oriundos da diáspora judaica ("que vinha do campo", "de Cirene” (cf. At 11,20; 13,1), é figura do discípulo que faz sua a cruz de Jesus, levando até o fim o seu seguimento (cf. Lc 9,23; 14,27).

Nos sepultamentos judaicos, estavam sempre presentes algumas mulheres que elevavam lamentos fúnebres. Isto fazia parte do rito. Para os sentenciados à morte, porém, estavam proibidos os lamentos fúnebres, proferidos em público, porque o justiçado era considerado uma maldição (cf. Dt 21,22-23). As mulheres que seguem Jesus demonstram, com o seu corajoso testemunho, que ele não é um malfeitor, mas um profeta que está padecendo a sorte de todos os profetas: o martírio[7].

"Pai, perdoa-lhes" (Lc 23,34). A crucifixão era um castigo imposto pelo império romano aos que se engajavam politicamente fazendo oposição ao império. Curiosamente, à direita e à esquerda de Jesus são crucificados dois líderes da oposição ao império, chamados de malfeitores. O Crucificado de Lucas não está em silêncio, mas fala: às multidões, ao Pai, ao ladrão arrependido. Jesus não somente perdoa, mas desculpa. Não morre ameaçando com o juízo de Deus, mas perdoando e desculpando. Toda a Paixão, segundo Lucas, está, efetivamente, atravessada pela misericórdia: o gesto de Jesus que cura a orelha do servo do Sumo Sacerdote, o olhar benevolente a Pedro que o renega e a palavra de perdão aos que o crucificam. Jesus não dá pessoalmente o seu perdão, mas o pede ao Pai. Deve ficar claro que o seu perdão remete ao do Pai. A cruz é o esplendor do perdão do Pai. Morrer perdoando é uma característica essencial do mártir cristão.

"Salva-te a ti mesmo!" (Lc 23,35b.37.39). Observe-se a insistência na expressão "salvar a si mesmo", dirigida a Jesus por todos os três representantes da incredulidade: os chefes, os soldados e um dos dois malfeitores. Renunciando salvar a si mesmo, ele permanece solidário com todas as pessoas que, na morte, podem esperar salvação somente de Deus - abandonando-se a ele na fé.

"Jesus, lembra-te de mim!" (Lc 23,39-43). O primeiro malfeitor é, provavelmente, um indomável zelota, que, mesmo na morte, continua fiel à sua opção de se rebelar contra o domínio estrangeiro, para instaurar o reino de Deus. O ladrão arrependido confia nele prontamente ("Jesus, lembra-te de mim!"), e Jesus responde com a sua pessoa, assegurando-lhe uma vida de comunhão com ele ("estarás comigo"), e logo ("hoje"). A um pedido que remetia ao futuro ("quando vieres no teu reino"), Jesus responde, remetendo ao presente ("hoje")[8]. No episódio dos dois malfeitores estão presente a misericórdia e a justiça.

"Dizendo isso, expirou" (Lc 23,44-46). Para a comunidade de Lucas a cruz é o momento último de reafirmar a fidelidade ao projeto do Pai, à missão que recebeu pela unção do Espírito. Quem morre ali é o mártir, fiel até o fim. A cruz é o momento: a) do perdão maior, do perdão àqueles que lhe tiram a vida (Lc 23,34. Cf. Estevão em At 7,60); b) da promessa da vida (Lc 23,43) para aquele que na última hora reconheceu o sentido de sua missão; c) de afirmar, no último suspiro, a confiança no Pai (Lc 23,46).

Diferentemente do que relatam Marcos e Mateus, para Lucas, "a vida de Jesus não termina com uma trágica interrogação, mas na serena convicção do cumprimento de uma missão libertadora[9]". Para Lucas não houve uma salvação da morte, mas na morte.

E as Sete Frases exclusivas de Lucas o que nos dizem? Eis Sete frases de Jesus que só Lucas nos conservou e nas quais transparece a vitória da vida que a morte não conseguiu matar:

1) "Desejei ardentemente comer esta páscoa com vocês" (Lc 22,15).

2) "Façam isto em memória de mim!" (Lc 22,19).

3) "Simão, rezei por você, para que não desfaleça a sua fé!" (Lc 22,32).

4) Na hora da negação de Pedro, Jesus fixa nele o olhar, provocando o choro de arrependimento (Lc 22,61).

5) No caminho do calvário, Jesus acolhe as mulheres: "Filhas de Jerusalém, não chorem por mim!" (Lc 23,28).

6) Na hora de ser pregado na cruz, ele reza: "Pai, perdoa, porque não sabem o que fazem" (Lc 23,34).

7) Ao ladrão pendurado na cruz ao seu lado ele diz: "Hoje mesmo estarás comigo no paraíso!" (Lc 23,43).

Estas frases nos dão os olhos certos para ler e a saborear a descrição da morte, do enterro e da ressurreição de Jesus.

Enfim, Jesus aceitou ser crucificado por infinito amor à humanidade e a toda a Criação, e pede de nós compromisso com a libertação de todos/as que estão crucificados atualmente. A crucificação de Jesus foi consequência da sua opção incondicional pelo reino de Deus, de liberdade, de justiça, de amor, de paz, de vida! Os poderosos da época foram desmascarados. Jesus incomodou a religião, o sistema político do império romano, os grandes do poder econômico e passou a ser uma ameaça para os exploradores. Por isso,  não tem sentido fazer memória da paixão de Jesus, do seu martírio,  sem reconhecer que Jesus continua padecendo, encarnado na vida de tantos irmãos e irmãs vítimas de um sistema que oprime, exclui, mata. E como discípulos e discípulas de Jesus, devemos seguir com coragem e esperança seus passos, em defesa de vida com dignidade para todos e todas e para toda a Criação, na certeza de que a morte não tem a última palavra... O horizonte é de ressurreição!

 

18/04/2025.

Obs.: A videorreportagem no link, abaixo, de alguma forma ATUALIZA o assunto tratado, acima.

1 - SENTIDO DA PÁSCOA DA CRUZ NAS PESSOAS CRUCIFICADAS E NOS POVOS MARTIRIZADOS (JO 18 E 19): EVANGELHO PARA ALÉM DOS TEMPLOS. Por Nancy Cardoso, Gilvander Moreira e Darlan Oliveira. 18/04/25



2 - Segue Sexta-feira da Paixão em Ibirité/MG. MRS/Vale, despejo/DEMOLIÇÃO de CASAS SEM DECISÃO JUDICIAL



3 - Basta de sexta-feira da Paixão em Betim, MG! Construamos Domingos de Ressurreição. Araújo! Vídeo 3



4 - Paixão e calvário no despejo de Ocupação em Miravânia, norte de MG. Zilah. Vídeo 5. 10/7/2019



 



[1] Doutor em Educação pela FAE/UFMG; Mestre em Ciências Bíblicas; Bacharel e Licenciado em Filosofia; Bacharel em Teologia; frei e padre da Ordem dos Carmelitas; e Agente de Pastoral e Assessor da CPT/MG (Comissão Pastoral da Terra – www.cptmg.org.br ); e-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.gilvander.org.brwww.youtube.com/@freigilvander – No instagram: @gilvanderluismoreira

 

[2] Pela terceira vez em Lc Deus se manifesta diretamente a Jesus. A primeira vez foi no Batismo (Lc 3,21-22). A segunda, na Transfiguração (Lc 9,35). E agora, a terceira vez, no Horto das Oliveiras (Lc 22,43).

[3] “Nenhum servo pode servir dois senhores; porque, ou há de odiar um e amar o outro, ou se há de chegar a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom.”

 

[4] J. ERNST, op. cit., pp. 863-864.

[5] O. SPINHETOLI, Da Luca, Assis, Cittadella, 1982, p. 893.

[6] O Império Romano dominava os povos conquistados através de uma pesadíssima carga tributária.

[7] Mencionando a presença da multidão e das mulheres, Lucas mostra a sua predileção pelas grandes multidões e pela presença das figuras femininas. Ver, a propósito, ROSSÉ, G., Il vangelo di Luca, Roma, Città Nuova, 1992, p. 967.

[8] Cf. GRELOT, P., De la mort à la vie eternelle, Paris, Cer, 1971, pp. 201ss.

[9] G. ROSSÉ, Il vangelo di Luca, op. cit., p. 987.