LEÃO XIV SERÁ PAPA DA LUTA PELA JUSTIÇA SOCIAL? Por frei Gilvander Moreira[1]
Papa Francisco e Papa Leão XIV. Reprodução Redes VirtuaisO novo Papa LEÃO XIV assumiu o
ministério de bispo de Roma e primaz da comunhão universal da Igreja dia 08 de
maio de 2025. De nascimento, ele é norte-americano, mas é muito mais latino-americano
porque foi missionário no meio dos pobres no Peru. Por mais de vinte anos,
trabalhou com comunidades camponesas e indígenas, e por amor ao povo peruano
adquiriu a cidadania peruana. Após ser anunciado como Papa, escolhido pelos
Cardeais no Conclave, Robert Francisco Prevost saudou o povo da Diocese de
Chiclayo no Peru em espanhol e não disse nada em inglês ao povo dos Estados
Unidos.
Pelo Papa Francisco, em 2014, foi nomeado
bispo da Diocese de Chiclayo no norte do Peru, região de povo empobrecido, onde
caminhou no meio dos pobres, ouviu, dialogou, animou lutas por justiça e
solidariedade. Prevost já denunciou atrocidades do ex-presidente Fujimori e
criticou Trump na sua postura autoritária, ao deportar imigrantes. Os mais de
20 anos que viveu e atuou pastoralmente no Peru forjaram Robert Francisco
Prevost como "pastor com cheiro de
ovelha" que Francisco tanto gostava. Por não ser bispo
príncipe e nem de palácio, Prevost foi convidado pelo Papa Francisco para, em Roma,
assumir o Ministério (Dicastério) dos Bispos. Como bom mineiro, desconfio que o
Papa Francisco, ao torná-lo Cardeal, quando já sentia que suas forças físicas
estavam diminuindo, quis sinalizar que Prevost era o Cardeal que ele, Francisco,
queria como seu sucessor, pois se revelava ser da mesma linha de Francisco e
discípulo autêntico de Jesus Cristo e do seu Evangelho.
Na sua primeira aparição como Papa na
janela do Vaticano, Prevost citou duas vezes o papa Francisco. Adotar o nome de
papa Leão XIV indica que ele vai abraçar o estilo do papa Leão XIII, criador e
pai do Ensinamento Social da Igreja, papa que publicou a histórica Encíclica RERUM NOVARUM (“Das Coisas Novas”), que
defende os direitos da classe trabalhadora, a dignidade humana. Ao aparecer
sorrindo na janela do Vaticano me fez recordar do Papa João Paulo I, o que
viveu apenas 33 dias como Papa, que se apresentou sorrindo e dizendo: “Deus é Pai e é Mãe, mas é mais Mãe do que
Pai..." Eloquente também o Papa Leão XIV ter dito na sua primeira
saudação: "A paz de Jesus
Ressuscitado, paz desarmada e desarmante, esteja com vocês". “A igreja deve construir pontes”, indireta
aos fascistas Trump e Netanyaru que têm investido de forma brutal na construção
de muros de segregação. “Queremos ser uma
igreja sinodal, uma igreja que caminha, que sempre busca a paz...” "Igreja que acolha todos/as, principalmente
os sofredores".
Por que e para que o novo Papa adotou o
nome de Leão XIV? É porque ele quer ser o Papa da luta pela Justiça Social? Temos
que recordar que, em contexto de desrespeito à dignidade humana e de
superexploração da classe trabalhadora e da classe camponesa e diante da luta
dos socialistas que defendiam a abolição da propriedade privada, reforçando a
luta pelos direitos humanos fundamentais, a dignidade humana tem sido defendida
pelo Ensinamento Social da Igreja Católica, expressa em várias encíclicas
papais.
Nessa perspectiva, rejeitando a tese
socialista da abolição da propriedade, a Rerum
Novarum: sobre a condição dos
operários, encíclica do Papa Leão XIII, de 15 de maio de 1891, afirma que a
propriedade, inclusive a dos bens de produção, é um direito natural de todas as
pessoas e não apenas de 5% da humanidade. A propriedade tem que exercer sua
função social e não se destina apenas a satisfazer os interesses do
proprietário. Significa, também, uma maneira de atender às necessidades de toda
a sociedade.
Em um contexto no qual as Constituições de
muitos países garantiam direito absoluto à propriedade, como a Constituição Imperial
Brasileira de 1824, na Rerum Novarum, o Papa Leão XIII advogou que toda
propriedade tem que cumprir sua função social. Na época e até em nossos dias,
isso é algo que parece revolucionário, pois, injustamente, na prática o direito
à propriedade segue sendo garantido apenas para uma minoria e sem cumprir
nenhuma função.
Desde 1891 os papas (re)afirmam
Ensinamento Social semelhante em várias encíclicas: a Quadragesimo Anno, do papa Pio XI, de 1931 (escrita justamente em
celebração ao 40º aniversário da Rerum Novarum); a Mater et Magistra (Mãe e Mestra), do papa João XXIII, de 1961; a Gaudium e Spes (Alegrias e Esperanças),
documento do Concílio Vaticano II, de 1965, e a Populorum Progressio (Do Progresso dos Povos), do papa Paulo VI, de
1967, as quais afirmam que o conjunto de bens da terra destina-se, antes de
mais nada, a garantir a todas as pessoas um decente teor de vida pelo conjunto
de condições sociais que permitam e favoreçam o desenvolvimento integral de sua
personalidade. A propriedade é um direito que comporta obrigações sociais.[2]
O papa Francisco na carta Encíclica Laudato Si’ (Louvado Sejas), de 24 de
maio de 2015, reafirma o destino comum dos bens como um princípio inarredável
do Ensinamento Social da Igreja. Diz Francisco: “A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito
à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de
propriedade privada. [...] Sobre toda a propriedade particular pesa sempre uma
hipoteca social, para que os bens sirvam ao destino geral que Deus lhes deu”
(PAPA FRANCISCO, 2015: n. 93).
O papa Francisco transcreve na Encíclica
Laudato Si’ o que disse os bispos do Paraguai na Carta Pastoral El campesino
paraguayo y la tierra, de 1983: “Cada
camponês tem direito natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa
gozar de segurança existencial. Este direito deve ser de tal forma garantido
que o seu exercício não seja ilusório, mas real. Isto significa que, além do
título de propriedade, o camponês deve contar com meios de formação técnica,
empréstimos, seguros e acesso ao mercado” (PAPA FRANCISCO, 2015: n. 94).
Está na Constituição brasileira de 1988
a exigência de cumprimento da função social da propriedade fundiária, mas o
Estado não cumpre a Constituição neste e em nenhum dos direitos sociais constitucionais.
Pior, dribla o tempo todo as leis que garantem os direitos sociais. Por isso, a
luta pela Justiça Social precisa seguir de forma firme.
Conforme escreveu o padre Alfredo
Gonçalves: "O nome do pontífice
eleito obedece a critérios pastorais precisos. Enquanto Francisco nos remetia
ao pobre de Assis, Leão XIV nos remete a Leão XIII. Leão XIII, por sua vez, foi
o Papa que teve a coragem de publicar a Carta Encíclica Rerum Novarum, em 1891,
que tinha como subtítulo "a condição dos operários". Carta que se
tornou o primeiro documento da Doutrina Social da Igreja (DSI). Cabe lembrar
que esse subtítulo havia sido publicado em um livro do companheiro de Karl
Marx, Friedrich Engels - A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra - a
condição dos operários nas fábricas da Inglaterra" – publicado em 1845,
46 anos antes.
O depauperamento moral de mulheres e
crianças, resultante da exploração de seu trabalho pelo capital, foi descrito
por vários escritores e com toda a precisão necessária por Engels, aos 25 anos,
na sua obra sobre a condição/situação dos operários. Em O Capital, Marx cita
vários relatórios de inspetores ingleses de trabalho. Em um relatório se diz: “O fato é que, antes da lei de 1833, crianças
e adolescentes de ambos os sexos eram postos a trabalhar toda a noite, o dia
inteiro, às vezes, noite e dia segundo a vontade do empregador” (MARX,
1982: 99).
Na época em que a classe trabalhadora
reivindicava diminuição da jornada de trabalho para 18 horas diárias,
profundamente incomodado e indignado com a miséria imposta à classe
trabalhadora inglesa, para sustentar que na sociedade capitalista o motor da
história é a luta de classes, Marx cita também M. Broughton, juiz de paz, que
declarou: “Na parte da população urbana
empregada nas fábricas de renda, reinam uma miséria e uma carência
desconhecidas pelo resto do mundo civilizado [...] às duas, três, quatro horas
da manhã, crianças de nove e dez anos são arrancadas de seus leitos miseráveis
e forçadas a trabalhar até dez, onze, doze horas da noite para ganhar
simplesmente o necessário para a subsistência. Enquanto elas trabalham, seus
membros definham, seu talhe diminui, sua fisionomia toma um ar abobalhado, todo
o seu ser cai num torpor tal que seu aspecto as assusta” (BROUGHTON apud
MARX, 1982: 99).
Da oficina artesanal para a fábrica de
manufatura o operário é transformado de ferramenta a máquina. Em um trabalho
sem fim e extenuante, imediatamente, o operário não mais produz diretamente a
mercadoria, mas apenas move a máquina que produz a mercadoria. “Na manufatura, os operários são membros de
um mecanismo vivo; na fábrica, são apenas complementos vivos de um mecanismo
morto que existe independentemente dele” (MARX, 1982: 113). No volume I de
O Capital, Marx cita Engels em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra,
de 1845: “A lamentável rotina de um
trabalho sem fim, onde o mesmo processo mecânico renova-se sem cessar,
assemelha-se ao trabalho de Sísifo; o peso do trabalho cai sempre sobre o
operário esgotado” (ENGELS apud MARX, 1982: 113).
Este contexto de exploração da dignidade
humana no mundo do trabalho da primeira revolução industrial moveu o Papa Leão
XIII a defender os direitos dos trabalhadores. Agora, ao assumir o nome de Leão
XIV, o novo Papa se coloca na esteira dos papas que se preocuparam com a
questão social e assumiram a luta pela Justiça Social.
O Papa Leão XIV disse no seu primeiro
Encontro com os Cardeais após ser escolhido: “Escolhi adotar o nome de Leão XIV. As razões são várias, mas a
principal é que o Papa Leão XIII, com a histórica Encíclica Rerum Novarum,
abordou a questão social no contexto da primeira grande revolução industrial e
hoje a Igreja oferece a todos o seu patrimônio de doutrina social para
responder a mais uma revolução industrial e ao desenvolvimento da inteligência
artificial, que trazem novos desafios na defesa da dignidade humana, da justiça
e do trabalho” (Discurso do Papa Leão XIV ao colégio dos Cardeais, dia 10/05/2025).
Avançando em barbárie, o sistema
capitalista está mostrando suas garras brutais ao pisotear a natureza com toda
sua biodiversidade e violentando cada vez mais de forma atroz a dignidade
humana. Ao concentrar renda, riqueza e poder em apenas 5% da população e impor
exclusão social, pobreza e fome para 95%, este sistema fomenta o fascismo e
empurra as massas desesperadas para as propostas religiosas espiritualizantes,
desencarnadoras da fé e negadoras da dimensão social do Evangelho de Jesus
Cristo. Tendo como motor o lucro e a acumulação de capital, gigantescas
desigualdades sociais e migrações compulsórias estão sendo produzidas por esta
“economia de morte”, como dizia o
papa Francisco. Consequência: desemprego, subemprego, trabalho informal e/ou nos
moldes da escravidão contemporânea.
Ao trabalhar como missionário no norte
do Peru em meio aos mais pobres, Leão XIV experimentou essas contradições e
descobriu que sem Justiça Social não teremos paz, nem respeito à dignidade
humana e nem à dignidade da natureza. Ecologia Integral não se constrói sem
Justiça Social. “Buscando inspiração em
Leão XIII, pastor dos operários e da Doutrina Social da Igreja, e dando
seguimento a Francisco, pastor dos pobres e migrantes... seja firme na defesa
dos direitos humanos e na promoção da dignidade humana”, propomos em
sintonia com o escrito pelo padre Alfredo Gonçalves.
O Papa Leão XIV disse em seu primeiro
discurso aos Cardeais: “Vamos reunir a
valiosa herança do Papa Francisco e retomar o caminho proposto pelo Concílio
Vaticano II”. Esperamos que o papa Francisco, Leão XIII e Jesus Cristo
sigam vivos no papa Leão XIV e em nós na luta sempre pelo que justo e ético.
Por isso, intuo que o papa Leão XIV entrará para a história como o Papa da luta
pela Justiça Social também colocando em prática a Opção pelos Pobres, que passa
necessariamente pelos grandes desafios a serem por ele enfrentados, apontados
sabiamente por Leonardo Boff: “desocidentalizar
e despatriarcalizar a Igreja Católica face à nova fase da humanidade.”
Enfim, a nossa
esperança é que o Papa Leão XIV valorize o legado do Papa Francisco, os avanços
conquistados em seu pontificado: compromisso com os pobres, ecologia integral,
sinodalidade, cultura do encontro..., com Evangelho para além dos templos. E
siga avançando no que se refere à maior participação de todas as pessoas,
inclusive nas diversas posições de liderança, especialmente das mulheres,
na construção de uma Igreja fraterna, igualitária, conforme as exigências do
Evangelho de Jesus de Nazaré.
13/05/2025.
Referências
MARX,
Karl. O Capital. Edição
resumida. 7ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
MOREIRA,
Gilvander Luís. Laudato si´ e as lutas dos movimentos socioambientais. In:
MURAD, Afonso; TAVARES, Sinivaldo Silva (Org.). Cuidar da Casa Comum: chaves de leitura teológicas e pastorais da
Laudato Si´. São Paulo: Paulinas, p. 197-217, 2016a.
Obs.: As
videorreportagens no link, abaixo, de alguma forma VERSAM sobre o assunto
tratado, acima.
1 - Paz e Bem #2363 -
Habemus papam (Emerson Sbardelotti) - 12.Mai.25
2 - PAPA FRANCISCO E O EVANGELHO DE JESUS CRISTO,
SEU LEGADO E DESAFIOS NOSSOS. Marcelo Barros/Gilvander
3 - PAPA FRANCISCO, OUTRO FRANCISCO DE ASSIS,
PEREGRINO DE ESPERANÇA - Por frei Gilvander Moreira
4 - 7a Live: A "Fratelli Tutti" do Papa
Francisco e o papel dos Cristãos na Política: Fora, Bolsonaro?
[1] Doutor em
Educação pela FAE/UFMG; Mestre em Ciências Bíblicas; Bacharel e Licenciado em
Filosofia; Bacharel em Teologia; frei e padre da Ordem dos Carmelitas; e Agente
de Pastoral e Assessor da CPT/MG (Comissão Pastoral da Terra – www.cptmg.org.br ); e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br
– www.youtube.com/@freigilvander
– No instagram: @gilvanderluismoreira
[2]
Cf. nota n. 7 de MOREIRA, G. L.; LAUREANO,
D. S.; “MST – 25 anos de luta por reforma agrária”. In: Revista Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 6 n. 11 p.
11-29, Janeiro - Junho de 2009, p. 18, onde se cita CHEMERIS, Ivan Ramom. “A
Função Social da Propriedade, o Papel do Poder Judiciário Diante das Invasões
Coletivas”. Disponível em: http://www.domhelder.edu.br/veredas_direito/pdf/29_180.pdf , acesso em 02/11/2016, às 22h27.
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