segunda-feira, 3 de março de 2025

Lc 4,1-13 – JESUS NÃO CAI NA TENTAÇÃO DA MÁGICA, NEM DO PODER E NEM DA IDOLATRIA. Por frei Gilvander

Lc 4,1-13 – JESUS NÃO CAI NA TENTAÇÃO DA MÁGICA, NEM DO PODER E NEM DA IDOLATRIA. Por frei Gilvander Moreira[1]

Irmã Dorothy, mulher imprescindível, pois dedicou toda  sua vida aos pobres e à defesa da Amazônia. Não caiu em nenhuma tentação. Reprodução Redes Virtuais

No Evangelho de Lucas, em Lc 4,1-13, está a narrativa das tentações de Jesus com algumas diferenças em relação aos Evangelhos de Mateus (Mt 4,1-11) e de Marcos (Mc 1,12-13). Que tipo de pessoa Jesus se torna para testemunhar um caminho de libertação e salvação dos oprimidos? 

Lucas retoma a ordem do Evangelho de Marcos, interrompida para colocar a genealogia de Jesus, mas conserva de Marcos somente "durante quarenta dias no deserto" e "o tentava".  Omite os detalhes com que Marcos termina sua narração global das tentações de Jesus. Em Marcos, a tentação é narrada de forma genérica e abstrata, enquanto que Lucas utiliza materiais provenientes da Fonte "Q"[2] para especificar a natureza concreta das tentações, igual a Mateus (cf. Mt 4,2b-10).

Talvez alguém pudesse imaginar que, por se tratar de experiência tão íntima do próprio Jesus, os discípulos e as discípulas podem ter sabido disso pelo próprio Jesus que partilhou com eles e elas como foi importante para ele discernir qual a vontade do Pai sobre sua missão e, portanto como ler e interpretar os textos sagrados da Bíblia. De fato, o modo como Lucas conta as tentações as aproxima do que Jesus vai sofrer no Horto das Oliveiras, na noite em que seria preso e entregue aos tribunais para sofrer pena de morte. Lucas termina o seu relato dizendo que o tentador se afastou dele ‘até o tempo oportuno”, que teria sido no Getsemani.

Específicas de Lucas são as seguintes expressões: "cheio do Espírito Santo", "durante todo esse tempo", "poder", "em um instante", o uso invariável do substantivo diabolos (= "diabo") em toda a narração, a motivação que apresenta o diabo em Lc 4,6b e a conclusão do episódio (Lc 4,13). Lucas transformou o plural "pedras", "pães" (Mt 4,3) para sua forma singular; omitiu a "montanha altíssima" de que fala Mt 4,8[3].

A diferença de ordem das tentações nas versões de Mateus e de Lucas nos leva a perguntar: Qual teria sido a ordem original no Evangelho "Q"? Qual dos evangelistas que alterou a ordem originária? O biblista K. H. Rengstorf[4] sugere que Lucas segue a ordem dos três pedidos no Pai Nosso: 1) "Proclamar que teu nome é santo"; 2) "Que chegue o teu reino"; 3) "Dá-nos cada dia o pão para nossa subsistência". É muito fecunda essa aproximação entre o relato das tentações e os pedidos que Jesus propõe no Pai Nosso.

Mateus teria colocado a tentação da "montanha" altíssima" na última posição, porque o tema da "montanha" é particularmente significativo na sua narração evangélica (por exemplo, o discurso da montanha: Mt 5-7; a aparição final de Jesus ressuscitado no monte: Mt 28,16-20; todo o evangelho que tenta apresentar Jesus como o novo Moisés) ou também porque, segundo Mateus, o ponto culminante seria recusar todo culto a Satanás para dedicar-se única e exclusivamente a serviço de Deus.

Mas Lucas preferiu colocar a tentação do pináculo do templo como a última, porque para ele o lugar mais importante está em Jerusalém. Segundo o biblista Bultmann, o episódio é uma criação das primeiras comunidades cristãs para explicar de forma apologética, porque Jesus não fez nenhum milagre/prodígio em proveito próprio nem se acomodou às dominantes ideias messiânicas do seu tempo.

As primeiras comunidades cristãs foram transmitindo diversos relatos de tentação, mas é provável que o relato de Marcos, da tentação, no deserto, constitua a base mais antiga do episódio, em Lucas. É absolutamente impossível provar a realidade histórica destas cenas de tentação, já que não temos o menor fundamento para emitir um juízo histórico. É mais provável que tenha significado simbólico.

As três cenas têm um denominador comum: todas corrigem uma idéia equivocada da missão de Jesus como "Filho" de Deus. O número de "três" tentações indica "toda a vida", “todas as tentações”. As três tentações de Jesus são uma síntese de todas as tentações que Jesus sofreu ao longo de sua missão libertadora.

 O biblista Dupont diz que "Jesus fala de uma experiência por ele vivenciada, porém a expressa em linguagem simbólica, perfeitamente apta para impressionar os seus ouvintes[5]". O biblista R. E. Brown chega à seguinte conclusão: "Mateus e Lucas, ou a fonte comum a ambos, não fazem injustiça aos fatos históricos ao concentrar o dramatismo destas cenas em um só episódio e ao desmascarar o verdadeiro autor das tentações, pondo nos seus lábios toda esta carga de sedução[6]". Seja linguagem figurativa ou "dramatismo", o que não pode ser é ingênuo literalismo. Mais do que se tratar de um fato histórico ou não, o sentido teológico é o mais importante.

A narração evangélica apresenta as tentações de Jesus como fenômenos que procedem de fontes externas; não há o mínimo de indício de que provenham de um conflito interior, mas são um símbolo da sedução contida na hostilidade, na oposição e inclusive na recusa ao projeto de Jesus.

As três cenas da tentação descrevem Jesus como Filho de Deus, obediente à vontade do Pai; por isso não cede à sedução de usar seus poderes ou sua autoridade de Filho para uma finalidade distinta da que constitui sua missão. Ao citar três tentações do povo no deserto, conforme o livro do Deuteronômio, faz-se um paralelo entre Jesus e os povos escravizados que se libertaram da escravidão no Egito sob o imperialismo dos faraós. Onde os povos do Primeiro Testamento falharam, Jesus sai vitorioso. E nós podemos vencer as tentações de hoje.

Observe o contexto literário: Lucas inseriu a narrativa das tentações depois da genealogia de Jesus para mostrar que Jesus é humano como qualquer pessoa e, enquanto ser humano, vem de Deus. Lucas tem uma visão dialética da história e trabalha muito com contrastes. Após ter superado as tentações, Lucas mostra Jesus iniciando sua missão pública e apresentando seu programa de libertação integral (Lc 4,16-19) na pequena sinagoga de Nazaré. Como irá colocar em prática esse programa? As tentações são propostas que Jesus rejeitou, porque por meio delas não é possível libertar os oprimidos, pois mágica, poder e idolatria não criam condições de vida e liberdade para todos e todas.

Segundo Lucas, Jesus foi tentado durante quarenta dias, número simbólico que lembra o tempo em que Moisés ficou na montanha (Ex 34,28), sem comer nem beber, a fim de escrever, na intimidade com Deus, o Decálogo da aliança para a nova sociedade. Lembra também o tempo em que o profeta Elias permaneceu no monte Horeb, depois do qual desceu para superar a idolatria imposta pelo rei Acab e pela rainha Jezabel e transformar completamente a sociedade do ponto de vista político e religioso (cf. 1Rs 19,8). Lembra, ainda, os quarenta anos dos hebreus no deserto, com suas tentações de voltar ao Egito, mesmo que fosse para sobreviver como escravo, desde que de barriga cheia, mas sob o imperialismo que massacre de inúmeras formas.

Na Primeira tentação (Lc 4,3-4) - “Se és Filho de Deus, mande que esta pedra se transforme em pão” -, Jesus não aceita se tornar o Messias da acumulação. O diabo é aquele que tem um projeto capaz de perverter o projeto de Deus e de Jesus. Ele quer um deus que seja garantia de prosperidade para uma minoria, um deus de palanque e de status. Jesus recusa ser o messias da abundância porque o projeto de Deus vai além de promessas eleitoreiras: "Não só de pão vive a pessoa humana" (Lc 4,4; cf. Dt 8,3). O texto do Deuteronômio fala do tempo em que o povo vivia no deserto e se contentava em sobreviver assim desde que tivesse pão para comer. A palavra de Javé, porém, tinha objetivos mais amplos: conduzir todos os povos escravizados à plena posse da terra para terem vida e dignidade. Jesus recusa-se a ser o messias da abundância para si, pois sua proposta é a partilha (Lc 11,41) e pão para todos (Lc 9,12-17). Dt 8,3 faz parte de Dt 8,1-6; recorda quando os povos oprimidos, ao marchar no deserto, murmuravam contra Moisés e Arão (Ex 16; Nm 11,7-8). A tentação de abrir mão da caminhada libertadora precisa ser superada. Se parar de caminhar e só pensar em comer, a escravidão volta. Padre Alfredinho, da Fraternidade do Servo Sofredor, gostava de dizer: “Os ricos se salvarão quando aprenderem a passar fome”.

Na segunda tentação (Lc 4,5-8) - “Eu te darei todo esse poder com glória..., se te prostrares diante de mim” -, Jesus não aceita se tornar o Messias do poder. Jesus é tentado a resolver o problema dos oprimidos tornando-se chefe político de estruturas injustas. Refutou com veemência Jesus: “Adorarás ao Senhor teu Deus, e só a Ele prestarás culto” (Lc 4,8 cita Dt 6,13)[7]. Todo tipo de idolatria oprime e mata de muitas formas.

O diabo faz exegese no seu modo de ler a Bíblia: descobrir nela a motivação para o poder e o sucesso messiânico. O evangelho diz que Jesus responde ao diabo com outro modo de ler a Bíblia e a experiência histórica dos povos que lutam por libertação, e esse é o da inserção amorosa e do serviço despojado do Servo Sofredor que vai até a cruz, doando a vida a todos/as, primordialmente aos injustiçados/as. A citação completa deste versículo do Deuteronômio mostra claramente que absolutizar-se no poder é repetir ação opressora dos faraós.

São dois modos de ler e interpretar a Bíblia que até hoje existem entre nós nas próprias Igrejas cristãs. Quem lê a Bíblia ou os evangelhos para legitimar pretensões de poder eclesiástico, sagrado e/ou político, faz o mesmo tipo de exegese do diabo no relato das tentações de Jesus.

A mosca azul do poder corrompe muitas pessoas. Jesus tem outros projetos mediante os quais testemunhará um caminho de libertação dos oprimidos. No Evangelho de Lucas, uma de suas principais características é o poder serviço (cf. Lc 22,27).

Na terceira tentação (Lc 4,9-12) - Em Jerusalém, no pináculo do Templo, “Se és Filho de Deus, atira-te para baixo ...” -, Jesus não aceitou se tornar o Messias do prestígio, do status. O diabo quer livrar Jesus da morte. Desta vez cita a Bíblia (Sl 91,11-12). Mas ser messias do prestígio constitui idolatria. "O diabo afastou-se para voltar no tempo oportuno" (Lc 4,13). Este "tempo oportuno" é o final da prática libertadora de Jesus, onde ele vai enfrentar os chefes dos sacerdotes, doutores da Lei e anciãos (cf. Lc 20,1). Eles personificam as tentações que Jesus venceu: crêem que Deus lhes garante a prosperidade. Acham que é o suporte político para as estruturas injustas que defendem e promovem; vivem envolvidos pela busca do prestígio. Jesus vai enfrentá-los. É sua última tentação. Eles o matam, mas a ressurreição é a prova de que o projeto de Deus, mistério de infinito amor, é mais forte que as forças de morte.

Em Lc 22,31-32 Jesus fala aos discípulos que Satanás o instigava para peneirar os discípulos como trigo. Lc 22,31-32 mais Lc 4,13 ("para voltar em tempo oportuno") nos dão elementos textuais para respaldar a tese de que Jesus foi tentado durante toda sua vida (principalmente no seu ministério público) até no momento da morte, e não somente em "40 dias" antes de entrar em campo para a missão. Para sermos filhos de Deus precisamos doar nossa vida aos injustiçados/as de ponta a ponta, a vida inteira.

As tentativas de estabelecer uma conexão entre a narração das tentações de Jesus, de Lucas, com 1 Jo 2,16, onde se menciona "a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e o orgulho da vida", são simplesmente erradas. Também é equivocada a interpretação de que a vitória de Jesus se deve à sua condição de "sumo-sacerdote".

Jesus vence com a ferramenta "da palavra de Deus" (Ef 6,17), pois cita sempre uma passagem do Primeiro Testamento para inspirar um projeto genuinamente humano-divino.

Lucas apresenta as três tentações em uma ordem diferente do Evangelho de Mateus. Este inicia apresentando a tentação da transformação de pedras em pão (primeira tentação), do jogar-se do pináculo do templo e ser salvo pelos anjos (segunda tentação) e a tentação de contemplar em uma alta montanha os reinos com todo o esplendor (terceira tentação) (Mt 4,1-11 e Lc 4,1-13).

No evangelho de Lucas, a primeira tentação se dá no deserto, onde Jesus é tentado a transformar pedra em pão. A segunda acontece na montanha, em que contempla os reinos. A terceira, no pináculo do templo, onde Jesus é tentado a saltar dali para ser salvo pelos anjos. Há uma progressão nas tentações. O clímax do confronto entre Satanás e Jesus aconteceu precisamente em Jerusalém, onde acontecerá a execução do Justo e Inocente com a pena de morte, a pena capital. Assim, a cena na qual Jesus se encontra sobre o pináculo da “casa de seu Pai” se torna muito eloquente, porque no Evangelho de Lucas, “Jerusalém” é o ponto de chegada de Jesus para realizar a missão (Lc 17,11; Lc 19,28-38).

Para as primeiras comunidades cristãs, “Jerusalém” é o ponto de partida para a missão (Lc 24,52). Jerusalém tem uma importância particular, pois é a cidade do “destino” final de Jesus e de onde se irradia a libertação-salvação para todo o gênero humano e toda a Criação. Jesus caminha para Jerusalém como se buscasse alcançar uma meta (Lc 13,22). Lucas valoriza “Jerusalém” não somente como lugar físico, mas primordialmente como lugar teológico que representa a “cidade de Davi”,  o monte Sião, de onde o Deus da vida legisla. Lucas se refere a “Jerusalém” com o termo grego Ierousalëm, designação de Jerusalém não como lugar geográfico, mas de lugar sagrado do judaísmo e, talvez, como retornando a compreensão de que Jerusalém simboliza a aliança de Deus com os povos oprimidos, (a nova Jerusalém do Apocalipse 21 e 22). Aliança agora estendida e oferecida a toda a humanidade e até a todo o universo, onde se pode ouvir a voz divina que diz “Faço novas todas as coisas” (Ap  21,5). 

Enfim, Jesus não caiu nas tentações da mágica, nem do poder e nem da idolatria. Atualmente, em muitos países a tentação do fascismo, da extrema-direita, com projetos neonazistas, tenta seduzir a maioria do povo insuflando a ilusão de que por meio de ditadura militar-civil-empresarial será possível superar as injustiças socioambientais, políticas e econômicas que se abatem sobre os povos. Ledo engano! Feliz quem não cair na tentação do fascismo, nem do neonazismo da extrema-direita que ronda o mundo!

03/03/2025.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, ATUALIZAM o assunto tratado, acima.

1 - “POVO DEU UM PASSO À FRENTE E O MAR VERMELHO SE ABRIU”, Frei GILVANDER, NO QUILOMBO CAMPO GRANDE/MST



2 - PREFEITO DE ARAÇUAÍ/MG com PL PARA AMPUTAR APA CHAPADA DO LAGOÃO PARA ABRIR ESPAÇO PARA MINERADORAS



3 - INJUSTIÇAS SOCIOAMBIENTAIS BRUTAS EM MINAS GERAIS: Frei Gilvander entrevista Dr. Elcio Pacheco, adv



[1] [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, Movimentos Sociais e Ocupações. 

E-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.freigilvander.blogspot.com.br             www.gilvander.org.br

www.twitter.com/gilvanderluis             Face book: Gilvander Moreira III – Canal no You Tube: Frei Gilvander luta pela terra e por direitos

[2] Fonte “Q” é um Evangelho perdido com ditos e sentenças proferidas por Jesus. Conclui-se a existência deste Evangelho pela existência de passagens semelhantes nos evangelhos de Mateus e Lucas, mas que não existem no Evangelho de Marcos.

[3] Cf. J.DUPONT, Les tentations de Jésus au désert, pp. 43-72.

[4] Das evangelium nack Lukas, p. 63.

[5] Cf. J.DUPONT, Les tentations de Jésus au désert, pp. 113-115.

[6] Cf. R. E. BROWN, CBQ 23 (1961), p. 155.

[7] Dt 6,13 faz parte de Dt 6,1-15 e recorda os riscos que exercem os cultos cananeus (cf. Dt 12,30-31; Ex 23,23-33). As rebeliões do povo contra Moisés (e Deus) é um dos temas fortes do Primeiro Testamento: cf. 2Rs 16,3-4; 21,5-6; Jr 7,31; Sal 106 e etc.).

 

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

SEM-TERRA, INDÍGENAS E NEGROS NA LUTA POR DIREITOS. Por Frei Gilvander

SEM-TERRA, INDÍGENAS E NEGROS NA LUTA POR DIREITOS. Por Frei Gilvander Moreira[1]

No último final de semana de fevereiro de 2025, foi maravilhoso ver Sem-Terra do MST[2], Indígenas de vários Povos e Negros conspirando em comunhão na luta por terra, território e por muitos direitos. Dia 22 de fevereiro, estivemos em missão no Quilombo Campo Grande, do MST, no sul de Minas Gerais, no município de Campo do Meio, onde mais de 500 famílias Sem-Terra, em onze acampamentos[3], há 27 anos, lutam aguerridamente pela conquista das terras da ex-usina Ariadnópolis, 3.900 hectares.

Já sofreram onze despejos, mas sempre foram acolhidos no Assentamento Primeiro do Sul, ao lado do latifúndio da ex-usina Ariadnópolis, no Assentamento Santo Dias, no município de Guapé e no Assentamento Nova Conquista II, os três Assentamentos do MST no sul de MG. Sem nunca perder a esperança de conquistar a terra, sempre após os cruéis despejos, os Sem-Terra se reorganizavam e voltavam a reocupar o latifúndio que já foi palco de devastadora monocultura de cana-de-açúcar, de trabalho escravo contemporâneo e de violações dos direitos humanos. Após falência da Usina Ariadnópolis, em 1996, milhares de trabalhadores ficaram sem o pagamento de seus salários e com seus direitos trabalhistas violados. Ocupar as terras da Ariadnópolis se tornou uma questão de justiça agrária, trabalhista e social. A luta contra o trabalho escravo no sul de Minas Gerais desaguou na luta pela terra com a ocupação do latifúndio da ex-usina Ariadnópolis.



Que beleza ver mais uma vez com nossos olhos como na prática os onze acampamentos que constituem o Quilombo Campo Grande já são assentamentos construídos na raça, em luta coletiva, enfrentando o Estado brasileiro, o agronegócio e latifundiários, pois as famílias seguem unidas e organizadas, produzindo alimentos saudáveis: feijão, milho, mandioca, hortaliças e mais de 17 mil sacas de café por ano. E se construindo como pessoas humanas, socialistas, libertadas da ideologia dominante. Há doze anos o MST funciona a Cooperativa Camponesa que incentiva e promove uma significativa produção agroecológica, como o Café Guaií agroecológico, que é vendido nos Armazéns do Campo, do MST, em muitas capitais do Brasil. Em horta comunitária, o Grupo Mulheres Raízes da Terra produz ervas medicinais, pomada milagrosa e remédios fitoterápicos imprescindíveis para ajudar as pessoas a resgatar a saúde com terapias naturais. Em viveiro coletivo dezenas de espécies de mudas de árvores do Cerrado e da Mata Atlântica e frutíferas são produzidas alavancando processos de agrofloresta, ou seja, produção de alimentos em harmonia com a natureza. Tudo isso no paradigma da agroecologia.

Emocionante também foi ver que onde a tropa de choque da polícia militar do Governador Zema, durante a pandemia da covid-19, em três dias e três noites, disseminou o terror, ao prender Sem-Terra, demolir 14 casas e destruir a Escola Eduardo Galeano, agora a Escola Agroecológica Eduardo Galeano está sendo reconstruída e já funcionando como filial de uma escola municipal de Campo do Meio. Marcante também foi ouvir o atual prefeito de Campo do Meio elogiar o MST e mostrar o tanto que as famílias Sem-Terra contribuem com a cidade de Campo do Meio e com a região sul de Minas Gerais.

No entanto, as famílias do Quilombo Campo Grande estão indignadas porque nem o Governo de Minas Gerais e nem o Presidente Lula ainda assinou o Decreto de desapropriação definitiva das terras ocupadas há 27 anos. De forma uníssona, ouvimos o clamor: “Não esperaremos mais além de março. Que o presidente Lula tenha a coragem e a sensatez de assinar sem tardar mais o Decreto que já está na mesa do presidente para ser assinado, para assentar definitivamente as quase quinhentas famílias Sem-Terra nas terras da ex-usina Ariadnópolis. Após este Decreto, as famílias poderão acessar vários créditos da Política de Reforma Agrária do Governo Federal.”

Dia 23 de fevereiro, na Aldeia Arapowanã Kakyá, do Povo Indígena Xukuru-Kariri, na fazenda Bruma, em Brumadinho, MG, participamos da celebração dos três anos de Retomada do Território. Dia-a-dia, o Povo Xukuru-Kariri segue se enraizando, florescendo e já colhendo frutos no Território que continua sendo disputado judicialmente pela mineradora Vale S/A. Em 25 famílias, com cinco crianças nascidas na aldeia, com Escola Indígena filial de uma Escola Estadual da cidade de Brumadinho, os Xukuru-Kariri seguem cultivando a terra, plantando hortas comunitárias, fazendo agrofloresta, cuidando das matas e das águas, produzindo lindas peças de artesanato indígena e exigindo que a criminosa reincidente Vale S/A libere pelo menos 165 hectares de território para a Aldeia, o mínimo necessário para comunidade indígena Xukuru-Kariri viver em paz. A Rede de Apoio aos Xukuru-Kariri se ampliou muito. Os povos indígenas Kamakã Mongoió, Puri, Pataxó e os Kaxixó estavam presentes na festa de celebração dos três anos de Retomada, também professores e estudantes de várias universidades, CIMI[4], CPT[5], e aliados/as, de perto e até do México e da Guatemala.

Com o Povo Xukuru-Kariri na celebração dos três anos de luta pelo território, estava também uma representação do povo negro organizado, que sob a liderança de dois mestres de capoeira, partilhou axé, energia de vida, tocou o berimbau, cantou e dançou Capoeira alegrando a todos/as e revelando a presença da ancestralidade e dos bons espíritos que nos guiam. Toca no mais profundo do nosso ser uma roda de Capoeira jogando e cantando: “Abençoa esta aldeia e todo o povo presente... na roda de Capoeira. Abolição custou sangue. Viva Zumbi que foi herói lá em Palmares. O negro se transformou em luta cansado de ser infeliz...” E ver na camiseta a inscrição: “Sou capoeira. Quando o berimbau me chama eu vou...” “A Capoeira foi e continuará sempre sendo resistência a vários tipos de escravidão. Repudiamos a intolerância religiosa que ataca impiedosamente nossos espaços sagrados violando nossa espiritualidade”, disse um veterano mestre de capoeira.

Enfim, a união e o entrosamento dos Povos nas lutas por terra, território e por todos os direitos é o que garantirá que a humanidade tenha futuro. Feliz quem se torna aprendiz dos Povos Indígenas, do Povo Negro e dos Sem-Terra que testemunham pelo seu jeito de lutar o caminho para a construção de uma sociedade justa economicamente, democrática politicamente, socialmente solidária e com responsabilidade socioambiental e geracional. Gratidão aos Povos que caminham coletivamente, esperançando, verdadeiramente, com resiliência, resistência e união! Só assim para alcançar a "terra prometida", direito de todos e todas. 
Viva a luta justa e necessária dos Povos por terra, território e todos seus direitos! 

25/02/2025

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - MST NO SUL DE MG, QUILOMBO CAMPO GRANDE: 11 ACAMPAMENTOS, + d 500 FAMÍLIAS, 17.000 SACOS DE CAFÉ/ANO


2 - Três anos da Retomada Xukuru-Kariri, Brumadinho/M: Festa, 25 famílias, Escola e Território no anzol


 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; assessor da CPT, CEBI, Movimentos Sociais e Ocupações. E-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.freigilvander.blogspot.com.br             www.gilvander.org.br - www.twitter.com/gilvanderluis             Face book: Gilvander Moreira III – Canal no You Tube: Frei Gilvander luta pela terra e por direitos – No Instagram: @gilvanderluismoreira

[2] Movimento dos Trabalhaores/as Rurais Sem-Terra – www.mst.org.br

[3] Os 11 acampamentos que constituem o Quilombo Campo Grande são: Tiradentes, Vitória da Conquista, Rosa Luxemburgo, Sidney Dias, Girassol, Fome Zero, Resistência, Betim, Chico Mendes, Irmã Dorothy e Campos das Flores.

[4] Conselho Indigenista Missionário (CIMI) – www.cimi.org.br

[5] Comissão Pastoral da Terra (CPT) – www.cptmg.org.br

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

PESSOAS BEM-AVENTURADAS E AS "MALDITAS a partir de Lc 6,17.20-26 e Mt 5,1-12 - Por Frei Gilvander

PESSOAS BEM-AVENTURADAS E AS "MALDITAS a partir de Lc 6,17.20-26 e Mt 5,1-12 - Por Frei Gilvander Moreira[1]

Foto Reprodução: Canal Paz e Bem

O chamado "discurso da planície", no plano do povo, do Evangelho de Lucas (Lc 6,20-49) é paralelo ao "discurso da montanha" do Evangelho de Mateus (Mt 5-7). As indicações de lugar estão em Lc 6,12.17. Segundo Lucas, Jesus desce da montanha e na planície, no plano do povo, no mesmo nível, olho no olho, apresenta as bem-aventuranças. O "discurso da planície" de Lucas constitui a primeira parte da chamada "interpolação menor" de Lucas, que compreende os episódios exclusivos de Lucas que estão em Lc 6,20-8,3.

Temos em Lc 6,20-23 um texto das bem-aventuranças diferente de Mt 5,3-12. No entanto, há também várias semelhanças. Elas vêm do fato de que tanto as comunidades de Mateus como as de Lucas se serviram de um Evangelho, hoje perdido, que reunia palavras e ensinamentos de Jesus, que se costuma chamar de “Q” ou “Evangelho dos ditos de Jesus”.

Mas estas comunidades não copiaram literalmente no texto do Evangelho os ditos de Jesus. E isto explica a diferença entre os textos das bem-aventuranças no Evangelho das comunidades de Mateus e no Evangelho das comunidades de Lucas. O primeiro texto surgiu em função da experiência vivida pelas comunidades de Mateus, com seus valores, desafios, expectativas, a sua forma de entender o projeto de Jesus. As comunidades de Lucas tinham outros problemas e desafios, outra maneira de compreender e viver o seguimento e o projeto de Jesus!

Da fonte "Q" provém Lc 6,20b-23, que são semelhantes a Mt 5,3.4.6.11-12;[2] A Fonte “Q” refere-se a um evangelho perdido, composto por ditos, sentenças e “provérbios” que estão no Evangelho de Lucas e no Evangelho de Mateus, e não estão no Evangelho de Marcos. A origem de Lc 6,24-26, os quatro “ais”, é muito problemática. O biblista H. Frankemolle pensa que os "ais" (“as maldições”) formavam parte da fonte "Q"; sua omissão por Mateus se explicaria pelo fato de que não enquadram com a tonalidade de seu discurso. Já o biblista Dupont[3], defende que os "ais" constituem uma adição de Lucas, o que é mais provável pela grande incidência de vocabulário lucano.

O "discurso da planície" de Lucas (Lc 6,20-49) é muito mais breve do que o "discurso da montanha" de Mateus (Mt 5-7) com três capítulos. Apesar das múltiplas diferenças entre ambos, há uma grande coincidência básica, que faz pensar em um núcleo originário recolhido da fonte "Q" e elaborado pessoalmente por cada um dos dois evangelistas. O predomínio das semelhanças é tão evidente, que leva automaticamente a pensar que a tradição conservou extensos fragmentos de um grande discurso de Jesus, pronunciado, talvez, no princípio do seu ministério público.

Provavelmente não tenha nenhum texto da tradição evangélica que tenha sofrido, através dos séculos, tantas e tão variadas interpretações como o chamado "discurso da montanha" de Mt 5-7. O "discurso da planície" foi relegado benignamente a um segundo plano. Sobre Mt foram feitas leituras alegórica, escatológica, fundamentalista, sociológica e, naturalmente, teológica. A concepção patrística viu no "discurso da montanha" uma síntese da ética cristã, passando pela teologia medieval, que fundava nesse discurso a distinção entre preceitos e conselhos de perfeição, e continuando pela teoria da Reforma e sua doutrina dos dois reinos ou do ideal inatingível da ortodoxia luterana, até chegar às modernas interpretações, que deduzem desse discurso uma ética da provisoriedade ou uma política da não resistência ao mal.

Hoje em dia predomina uma tendência a interpretar este discurso dentro da globalidade do Evangelho de Mateus, o que nos faz pensar em uma observação atribuída a Mahatma Gandhi: "A mensagem de Jesus não se esgota na inviolada globalidade do discurso da montanha".

Ao endereçar seu "discurso da planície" aos discípulos e às discípulas, Lucas não pode ter outra intenção que não seja configurar a conduta e o comportamento desse grupo: as comunidades cristãs; é para qualificar a formação dos/as discípulos/as.

Na redação lucana do discurso, as palavras de Jesus se referem à existência normal e concreta de cada dia: pobreza, fome, sofrimento, ódio, ostracismo, que são preocupações diárias. A adição característica: "agora" (Lc 6,21ac.25ac) revela o interesse de Lucas pela vida concreta do cristão, com suas incidências específicas. O ponto de partida para o verdadeiro núcleo da mensagem, o amor, tem que dominar a existência do/a discípulo/a de Cristo. A exortação ao amor, em Lc 6,27-36, se move em um campo limitado: o amor aos inimigos, porém em Lc 6,37-45 se alarga os horizontes.

Mateus mostra uma clara tendência a acrescentar diversos materiais às palavras de Jesus; a essa tendência se deve, indubitavelmente, o número de nove bem-aventuranças no Evangelho de Mateus ou oito, se Mt 5,5[4] for uma glosa[5] acrescentada posteriormente. Alguns biblistas defendem a existência somente de sete bem-aventuranças argumentando que Mt 5,11-12 não fazem parte das bem-aventuranças, pois há uma "inclusão" em Mt 5,3 e Mt 5,10. E também o paralelismo com as sete parábolas em Mt 13 e os sete "ais" de Mt 23.

Em Lc, as bem-aventuranças se dirigem aos "discípulos" como os verdadeiramente pobres, famintos, aflitos e proscritos na Palestina sob o imperialismo romano. Confira Lc 6,27: "Eu digo a vocês que me escutam”.

Em um Novo Testamento, que procura a correspondência mais exata do texto grego, o tradutor português Frederico Lourenço traduz assim Mateus 5,3: “Bem-aventurados os mendigos pelo Espírito”. Em nota, explica: “A palavra grega ptôkhós significa de forma inequívoca “mendigo”. Por isso, serve no Antigo Testamento grego (LXX) para traduzir a palavra hebraica ebyon, que significa “mendigo ou pedinte”. O fato da mesma palavra ptôkhós ter sido utilizada para traduzir também o hebraico onî (“pobre, dependente), no Antigo Testamento grego, justifica, no entender de alguns biblistas, a opção de se traduzir sempre ptôkhós por pobre no Novo Testamento, mas a meu ver, a palavra retém claramente a sua identidade semântica no texto dos Evangelhos e, por isso, opto na presente tradução, por respeitar o seu verdadeiro sentido...”[6].

Lucas não espiritualiza a condição dos seus discípulos, como faz Mateus; as prescrições que Mateus acrescenta - "pobres em espírito", fome e sede "de justiça" - obedecem à condição de diversos membros das comunidades cristãs mistas a quem é dirigida a narração evangélica. Outros acréscimos importantes: homem "sensato" (Mt 7,24), pensar "mal" (Mt 9,4), Pai "no céu" (Mt 6,9) etc. Para Mt, Jesus Cristo é novo Moisés; para Lc, o galileu é “o misericordioso” (Lc 6,36), concretização da profecia de Oseias (Os 6,6): “só quero misericórdia.”

O "discurso da planície" (Lc 6,20-49) se diferencia do "discurso da montanha" de Mt não somente por causa da geografia. Mateus apresenta Jesus como o novo Moisés, portador da nova Lei e da Justiça do Reino. Lucas preferiu apresentar Jesus como a expressão máxima da misericórdia divina: "Sejam misericordiosos, como também o Pai de vocês é misericordioso" (Lc 6,36). Lucas está preocupado com problemas internos da comunidade: pessoas que se julgam superiores às outras e, por isso, emitem juízos a respeito dos outros membros da comunidade, a questão das lideranças comunitárias, a correção fraterna. A religião não deve ser algo para ser ensinado "aos outros", mas para ter seus valores vivenciados e testemunhados. O "discurso da planície" mostra que a nova sociedade começa dentro da comunidade, transformando profundamente as relações humanas e sociais que a regem.

No Evangelho de Mateus e no Evangelho de João, os fariseus e religiosos do templo são comparados com cegos, porque optam por serem de linha conservadora e são fundamentalistas, moralistas, rigoristas (Cf. Jo 9). Já em Lucas, Jesus chega a considerar como cegos os próprios discípulos. Portanto, a melhor solução é a "cura do espelho": procurar seguir aquilo que de bom percebemos nos outros e corrigir em nós o que achamos que está errado em nossos semelhantes.

Em Lc, a pobreza, a fome, a aflição, o ódio, o ostracismo caracterizam a situação concreta e existencial dos discípulos de Jesus, que é quem é declarado "feliz". Nas quatro situações de felicidade e infelicidade que são apresentadas, as três primeiras se referem a realidades da vida concreta, cotidiana (pobreza, fome, sofrimento X riqueza, saciedade, alegria), enquanto a última se refere à situação específica de seguidores e seguidoras de Jesus (odiados X elogiados). Enquanto as três primeiras são feitas em frases curtas, a última é mais desenvolvida.

Como alguém pode ter a coragem de afirmar que pobres, aflitos e famintos são ou podem ser felizes, sem ser hipócrita ou cínico? A propaganda está a todo momento dizendo que felicidade é ter o carro do ano, uma mansão, fazer viagens etc. É preciso não entrar na lógica da sociedade de consumo como caminho único para a vida feliz (cf. Lc 12,22-31: “Observem os lírios do campo!”). A primeira coisa que importa é que os pobres não percam sua dignidade e autoestima, apesar de serem marginalizados pela sociedade!

As bem-aventuranças concretizam e radicalizam aquilo que foi proclamado por Jesus na sinagoga de Nazaré (Lc 4,18). Um dos problemas dos ricos é que vivem de forma autossuficiente. Para se tornarem ricos tiveram que acumular explorando de alguma forma e, assim, se negaram a viver a vida partilhando, sendo solidário.

A quarta bem-aventurança tem características diferentes: “Felizes de vocês se os homens os odeiam, se os expulsam, os insultam e amaldiçoam o nome de vocês, por causa do Filho do Homem” (Lc 6,22). Esta bem-aventurança diz respeito a hostilidades que os discípulos e as discípulas sofrem por causa do seguimento do Filho do Homem. Atualizando, poderíamos dizer que sem terra em si mesmo não é problema para os ricaços, mas Sem Terra em movimento, unidos e organizados, transformam-se em um grande problema para os poderosos.

Fala-se nos tais “pobres em espírito” muitas vezes para se referir a pessoas que possuem muitos bens e riquezas, mas seriam desapegadas delas. E com isso se justifica tanto a riqueza quanto a pobreza, porque então haveria também os pobres com coração de rico. Ou seja, segundo essa compreensão a bem-aventurança não está enfocando a riqueza ou a pobreza, mas o apego ou desapego. A questão residiria no interior da pessoa, no seu coração, no seu espírito; inclusive existem Bíblias que traduzem “felizes os que têm coração de pobre ...”, o que é uma traição ao sentido original da bem-aventurança. No entanto, não parece ser disso que a comunidade de Mateus está falando. Quando no seu evangelho aparece a palavra “espírito” ela nunca está se referindo ao interior das pessoas, à sua alma ou a seu coração. Ou ela se refere ao Espírito de Deus, que age nas pessoas e particularmente em Jesus (cf. Mt 4,1; 12,18.28.31; 22,43) ou aos espíritos maus (Mt 8,16; 10,1; 12,43.45). Para se referir ao interior das pessoas as palavras são outras (veja a bem-aventurança de Mt 5,8: “Felizes os de coração puro, ...”). Com certeza as comunidades de Mateus não estão querendo desviar a atenção da pobreza material para a espiritual, como tantas vezes se tem dito por aí. Basta ver para quem Jesus dirige as bem-aventuranças, segundo o Evangelho das comunidades de Mateus: “aos pobres adoecidos, epiléticos, paralíticos, oprimidos, em multidões” (Cf. Mt 4,23-5,2! As comunidades do Evangelho de Mateus falam muito mais dos pobres que encontram sua força no Espírito de Deus para lutar e construir o Reino!

Ao nos aprofundarmos nessas passagens bíblicas, considerando seu contexto e atentos aos acontecimentos do nosso tempo,  vale ressaltar que é preciso voltar a Jesus e à sua proposta para a implantação do reinado divino aqui e agora.

Enfim, bem-aventuradas são todas as pessoas empobrecidas, marginalizadas, excluídas, que não se entregam ao sistema opressor, não introjetam a ideologia dominante, e todas as pessoas de boa vontade que a elas se unem, com fé, coragem e esperança,  em marcha coletiva, no caminho em luta por justiça, por vida digna e em defesa da nossa Casa Comum. 

13/02/2025

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Mt 5,1-12: FELIZES OS SANTOS/AS DE DEUS. ANEL DE TUCUM, SANTIDADE NOSSA DE CADA DIA. Evangelho para Além dos templos


2 - "Plantando hortaliças, felizes por produzir alimentos, mas estamos ameaçados/Ibirité/MG." 27/06/16

3 - "Bom samaritano" (Lc 10,25 37): Características Teológicas do Evangelho de Lucas. Vídeo 2 – Por frei Gilvander



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; assessor da CPT, CEBI, Movimentos Sociais e Ocupações. E-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.freigilvander.blogspot.com.br             www.gilvander.org.br - www.twitter.com/gilvanderluis             Face book: Gilvander Moreira III – Canal no You Tube: Frei Gilvander luta pela terra e por direitos

[2] Lc 27-33.35b-36 = Mt 5,39-42.44-48; 7,12; Lc 37a.38b.39bc.40-42 = Mt 7,1-5; 10,24-25; 15,14; Lc 43-45 = Mt 7,16-20; cf. Mt 12,33-35; Lc 46-49 = Mt 7,21.24-27.

[3] No livro Les béatitudes I, pp. 299-342.

[4] “Bem-aventurados os humildes porque conquistarão a terra.”

[5] Anotação em um texto para explicar o sentido de uma palavra ou esclarecer uma passagem.

[6] - Cf. Bíblia – Novo TestamentoOs quatro Evangelhos. Traduzido do grego por FREDERICO LOURENÇO. Companhia das Letras, 2017, pp.91-92.