quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

PESSOAS BEM-AVENTURADAS E AS "MALDITAS a partir de Lc 6,17.20-26 e Mt 5,1-12 - Por Frei Gilvander

PESSOAS BEM-AVENTURADAS E AS "MALDITAS a partir de Lc 6,17.20-26 e Mt 5,1-12 - Por Frei Gilvander Moreira[1]

Foto Reprodução: Canal Paz e Bem

O chamado "discurso da planície", no plano do povo, do Evangelho de Lucas (Lc 6,20-49) é paralelo ao "discurso da montanha" do Evangelho de Mateus (Mt 5-7). As indicações de lugar estão em Lc 6,12.17. Segundo Lucas, Jesus desce da montanha e na planície, no plano do povo, no mesmo nível, olho no olho, apresenta as bem-aventuranças. O "discurso da planície" de Lucas constitui a primeira parte da chamada "interpolação menor" de Lucas, que compreende os episódios exclusivos de Lucas que estão em Lc 6,20-8,3.

Temos em Lc 6,20-23 um texto das bem-aventuranças diferente de Mt 5,3-12. No entanto, há também várias semelhanças. Elas vêm do fato de que tanto as comunidades de Mateus como as de Lucas se serviram de um Evangelho, hoje perdido, que reunia palavras e ensinamentos de Jesus, que se costuma chamar de “Q” ou “Evangelho dos ditos de Jesus”.

Mas estas comunidades não copiaram literalmente no texto do Evangelho os ditos de Jesus. E isto explica a diferença entre os textos das bem-aventuranças no Evangelho das comunidades de Mateus e no Evangelho das comunidades de Lucas. O primeiro texto surgiu em função da experiência vivida pelas comunidades de Mateus, com seus valores, desafios, expectativas, a sua forma de entender o projeto de Jesus. As comunidades de Lucas tinham outros problemas e desafios, outra maneira de compreender e viver o seguimento e o projeto de Jesus!

Da fonte "Q" provém Lc 6,20b-23, que são semelhantes a Mt 5,3.4.6.11-12;[2] A Fonte “Q” refere-se a um evangelho perdido, composto por ditos, sentenças e “provérbios” que estão no Evangelho de Lucas e no Evangelho de Mateus, e não estão no Evangelho de Marcos. A origem de Lc 6,24-26, os quatro “ais”, é muito problemática. O biblista H. Frankemolle pensa que os "ais" (“as maldições”) formavam parte da fonte "Q"; sua omissão por Mateus se explicaria pelo fato de que não enquadram com a tonalidade de seu discurso. Já o biblista Dupont[3], defende que os "ais" constituem uma adição de Lucas, o que é mais provável pela grande incidência de vocabulário lucano.

O "discurso da planície" de Lucas (Lc 6,20-49) é muito mais breve do que o "discurso da montanha" de Mateus (Mt 5-7) com três capítulos. Apesar das múltiplas diferenças entre ambos, há uma grande coincidência básica, que faz pensar em um núcleo originário recolhido da fonte "Q" e elaborado pessoalmente por cada um dos dois evangelistas. O predomínio das semelhanças é tão evidente, que leva automaticamente a pensar que a tradição conservou extensos fragmentos de um grande discurso de Jesus, pronunciado, talvez, no princípio do seu ministério público.

Provavelmente não tenha nenhum texto da tradição evangélica que tenha sofrido, através dos séculos, tantas e tão variadas interpretações como o chamado "discurso da montanha" de Mt 5-7. O "discurso da planície" foi relegado benignamente a um segundo plano. Sobre Mt foram feitas leituras alegórica, escatológica, fundamentalista, sociológica e, naturalmente, teológica. A concepção patrística viu no "discurso da montanha" uma síntese da ética cristã, passando pela teologia medieval, que fundava nesse discurso a distinção entre preceitos e conselhos de perfeição, e continuando pela teoria da Reforma e sua doutrina dos dois reinos ou do ideal inatingível da ortodoxia luterana, até chegar às modernas interpretações, que deduzem desse discurso uma ética da provisoriedade ou uma política da não resistência ao mal.

Hoje em dia predomina uma tendência a interpretar este discurso dentro da globalidade do Evangelho de Mateus, o que nos faz pensar em uma observação atribuída a Mahatma Gandhi: "A mensagem de Jesus não se esgota na inviolada globalidade do discurso da montanha".

Ao endereçar seu "discurso da planície" aos discípulos e às discípulas, Lucas não pode ter outra intenção que não seja configurar a conduta e o comportamento desse grupo: as comunidades cristãs; é para qualificar a formação dos/as discípulos/as.

Na redação lucana do discurso, as palavras de Jesus se referem à existência normal e concreta de cada dia: pobreza, fome, sofrimento, ódio, ostracismo, que são preocupações diárias. A adição característica: "agora" (Lc 6,21ac.25ac) revela o interesse de Lucas pela vida concreta do cristão, com suas incidências específicas. O ponto de partida para o verdadeiro núcleo da mensagem, o amor, tem que dominar a existência do/a discípulo/a de Cristo. A exortação ao amor, em Lc 6,27-36, se move em um campo limitado: o amor aos inimigos, porém em Lc 6,37-45 se alarga os horizontes.

Mateus mostra uma clara tendência a acrescentar diversos materiais às palavras de Jesus; a essa tendência se deve, indubitavelmente, o número de nove bem-aventuranças no Evangelho de Mateus ou oito, se Mt 5,5[4] for uma glosa[5] acrescentada posteriormente. Alguns biblistas defendem a existência somente de sete bem-aventuranças argumentando que Mt 5,11-12 não fazem parte das bem-aventuranças, pois há uma "inclusão" em Mt 5,3 e Mt 5,10. E também o paralelismo com as sete parábolas em Mt 13 e os sete "ais" de Mt 23.

Em Lc, as bem-aventuranças se dirigem aos "discípulos" como os verdadeiramente pobres, famintos, aflitos e proscritos na Palestina sob o imperialismo romano. Confira Lc 6,27: "Eu digo a vocês que me escutam”.

Em um Novo Testamento, que procura a correspondência mais exata do texto grego, o tradutor português Frederico Lourenço traduz assim Mateus 5,3: “Bem-aventurados os mendigos pelo Espírito”. Em nota, explica: “A palavra grega ptôkhós significa de forma inequívoca “mendigo”. Por isso, serve no Antigo Testamento grego (LXX) para traduzir a palavra hebraica ebyon, que significa “mendigo ou pedinte”. O fato da mesma palavra ptôkhós ter sido utilizada para traduzir também o hebraico onî (“pobre, dependente), no Antigo Testamento grego, justifica, no entender de alguns biblistas, a opção de se traduzir sempre ptôkhós por pobre no Novo Testamento, mas a meu ver, a palavra retém claramente a sua identidade semântica no texto dos Evangelhos e, por isso, opto na presente tradução, por respeitar o seu verdadeiro sentido...”[6].

Lucas não espiritualiza a condição dos seus discípulos, como faz Mateus; as prescrições que Mateus acrescenta - "pobres em espírito", fome e sede "de justiça" - obedecem à condição de diversos membros das comunidades cristãs mistas a quem é dirigida a narração evangélica. Outros acréscimos importantes: homem "sensato" (Mt 7,24), pensar "mal" (Mt 9,4), Pai "no céu" (Mt 6,9) etc. Para Mt, Jesus Cristo é novo Moisés; para Lc, o galileu é “o misericordioso” (Lc 6,36), concretização da profecia de Oseias (Os 6,6): “só quero misericórdia.”

O "discurso da planície" (Lc 6,20-49) se diferencia do "discurso da montanha" de Mt não somente por causa da geografia. Mateus apresenta Jesus como o novo Moisés, portador da nova Lei e da Justiça do Reino. Lucas preferiu apresentar Jesus como a expressão máxima da misericórdia divina: "Sejam misericordiosos, como também o Pai de vocês é misericordioso" (Lc 6,36). Lucas está preocupado com problemas internos da comunidade: pessoas que se julgam superiores às outras e, por isso, emitem juízos a respeito dos outros membros da comunidade, a questão das lideranças comunitárias, a correção fraterna. A religião não deve ser algo para ser ensinado "aos outros", mas para ter seus valores vivenciados e testemunhados. O "discurso da planície" mostra que a nova sociedade começa dentro da comunidade, transformando profundamente as relações humanas e sociais que a regem.

No Evangelho de Mateus e no Evangelho de João, os fariseus e religiosos do templo são comparados com cegos, porque optam por serem de linha conservadora e são fundamentalistas, moralistas, rigoristas (Cf. Jo 9). Já em Lucas, Jesus chega a considerar como cegos os próprios discípulos. Portanto, a melhor solução é a "cura do espelho": procurar seguir aquilo que de bom percebemos nos outros e corrigir em nós o que achamos que está errado em nossos semelhantes.

Em Lc, a pobreza, a fome, a aflição, o ódio, o ostracismo caracterizam a situação concreta e existencial dos discípulos de Jesus, que é quem é declarado "feliz". Nas quatro situações de felicidade e infelicidade que são apresentadas, as três primeiras se referem a realidades da vida concreta, cotidiana (pobreza, fome, sofrimento X riqueza, saciedade, alegria), enquanto a última se refere à situação específica de seguidores e seguidoras de Jesus (odiados X elogiados). Enquanto as três primeiras são feitas em frases curtas, a última é mais desenvolvida.

Como alguém pode ter a coragem de afirmar que pobres, aflitos e famintos são ou podem ser felizes, sem ser hipócrita ou cínico? A propaganda está a todo momento dizendo que felicidade é ter o carro do ano, uma mansão, fazer viagens etc. É preciso não entrar na lógica da sociedade de consumo como caminho único para a vida feliz (cf. Lc 12,22-31: “Observem os lírios do campo!”). A primeira coisa que importa é que os pobres não percam sua dignidade e autoestima, apesar de serem marginalizados pela sociedade!

As bem-aventuranças concretizam e radicalizam aquilo que foi proclamado por Jesus na sinagoga de Nazaré (Lc 4,18). Um dos problemas dos ricos é que vivem de forma autossuficiente. Para se tornarem ricos tiveram que acumular explorando de alguma forma e, assim, se negaram a viver a vida partilhando, sendo solidário.

A quarta bem-aventurança tem características diferentes: “Felizes de vocês se os homens os odeiam, se os expulsam, os insultam e amaldiçoam o nome de vocês, por causa do Filho do Homem” (Lc 6,22). Esta bem-aventurança diz respeito a hostilidades que os discípulos e as discípulas sofrem por causa do seguimento do Filho do Homem. Atualizando, poderíamos dizer que sem terra em si mesmo não é problema para os ricaços, mas Sem Terra em movimento, unidos e organizados, transformam-se em um grande problema para os poderosos.

Fala-se nos tais “pobres em espírito” muitas vezes para se referir a pessoas que possuem muitos bens e riquezas, mas seriam desapegadas delas. E com isso se justifica tanto a riqueza quanto a pobreza, porque então haveria também os pobres com coração de rico. Ou seja, segundo essa compreensão a bem-aventurança não está enfocando a riqueza ou a pobreza, mas o apego ou desapego. A questão residiria no interior da pessoa, no seu coração, no seu espírito; inclusive existem Bíblias que traduzem “felizes os que têm coração de pobre ...”, o que é uma traição ao sentido original da bem-aventurança. No entanto, não parece ser disso que a comunidade de Mateus está falando. Quando no seu evangelho aparece a palavra “espírito” ela nunca está se referindo ao interior das pessoas, à sua alma ou a seu coração. Ou ela se refere ao Espírito de Deus, que age nas pessoas e particularmente em Jesus (cf. Mt 4,1; 12,18.28.31; 22,43) ou aos espíritos maus (Mt 8,16; 10,1; 12,43.45). Para se referir ao interior das pessoas as palavras são outras (veja a bem-aventurança de Mt 5,8: “Felizes os de coração puro, ...”). Com certeza as comunidades de Mateus não estão querendo desviar a atenção da pobreza material para a espiritual, como tantas vezes se tem dito por aí. Basta ver para quem Jesus dirige as bem-aventuranças, segundo o Evangelho das comunidades de Mateus: “aos pobres adoecidos, epiléticos, paralíticos, oprimidos, em multidões” (Cf. Mt 4,23-5,2! As comunidades do Evangelho de Mateus falam muito mais dos pobres que encontram sua força no Espírito de Deus para lutar e construir o Reino!

Ao nos aprofundarmos nessas passagens bíblicas, considerando seu contexto e atentos aos acontecimentos do nosso tempo,  vale ressaltar que é preciso voltar a Jesus e à sua proposta para a implantação do reinado divino aqui e agora.

Enfim, bem-aventuradas são todas as pessoas empobrecidas, marginalizadas, excluídas, que não se entregam ao sistema opressor, não introjetam a ideologia dominante, e todas as pessoas de boa vontade que a elas se unem, com fé, coragem e esperança,  em marcha coletiva, no caminho em luta por justiça, por vida digna e em defesa da nossa Casa Comum. 

13/02/2025

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Mt 5,1-12: FELIZES OS SANTOS/AS DE DEUS. ANEL DE TUCUM, SANTIDADE NOSSA DE CADA DIA. Evangelho para Além dos templos


2 - "Plantando hortaliças, felizes por produzir alimentos, mas estamos ameaçados/Ibirité/MG." 27/06/16

3 - "Bom samaritano" (Lc 10,25 37): Características Teológicas do Evangelho de Lucas. Vídeo 2 – Por frei Gilvander



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; assessor da CPT, CEBI, Movimentos Sociais e Ocupações. E-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.freigilvander.blogspot.com.br             www.gilvander.org.br - www.twitter.com/gilvanderluis             Face book: Gilvander Moreira III – Canal no You Tube: Frei Gilvander luta pela terra e por direitos

[2] Lc 27-33.35b-36 = Mt 5,39-42.44-48; 7,12; Lc 37a.38b.39bc.40-42 = Mt 7,1-5; 10,24-25; 15,14; Lc 43-45 = Mt 7,16-20; cf. Mt 12,33-35; Lc 46-49 = Mt 7,21.24-27.

[3] No livro Les béatitudes I, pp. 299-342.

[4] “Bem-aventurados os humildes porque conquistarão a terra.”

[5] Anotação em um texto para explicar o sentido de uma palavra ou esclarecer uma passagem.

[6] - Cf. Bíblia – Novo TestamentoOs quatro Evangelhos. Traduzido do grego por FREDERICO LOURENÇO. Companhia das Letras, 2017, pp.91-92.



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