Lc 4,1-13 – JESUS NÃO CAI NA TENTAÇÃO DA MÁGICA, NEM DO PODER E NEM DA IDOLATRIA. Por frei Gilvander Moreira[1]
Irmã Dorothy, mulher imprescindível, pois dedicou toda sua vida aos pobres e à defesa da Amazônia. Não caiu em nenhuma tentação. Reprodução Redes VirtuaisNo
Evangelho de Lucas, em Lc 4,1-13, está a narrativa das tentações de Jesus com
algumas diferenças em relação aos Evangelhos de Mateus (Mt 4,1-11) e de Marcos
(Mc 1,12-13). Que tipo de pessoa Jesus se torna para testemunhar um caminho de libertação
e salvação dos oprimidos?
Lucas
retoma a ordem do Evangelho de Marcos, interrompida para colocar a genealogia
de Jesus, mas conserva de Marcos somente "durante quarenta dias no
deserto" e "o tentava". Omite
os detalhes com que Marcos termina sua narração global das tentações de Jesus.
Em Marcos, a tentação é narrada de forma genérica e abstrata, enquanto que
Lucas utiliza materiais provenientes da Fonte "Q"[2]
para especificar a natureza concreta das tentações, igual a Mateus (cf. Mt
4,2b-10).
Talvez
alguém pudesse imaginar que, por se tratar de experiência tão íntima do próprio
Jesus, os discípulos e as discípulas podem ter sabido disso pelo próprio Jesus
que partilhou com eles e elas como foi importante para ele discernir qual a
vontade do Pai sobre sua missão e, portanto como ler e interpretar os textos
sagrados da Bíblia. De fato, o modo como Lucas conta as tentações as aproxima
do que Jesus vai sofrer no Horto das Oliveiras, na noite em que seria preso e
entregue aos tribunais para sofrer pena de morte. Lucas termina o seu relato
dizendo que o tentador se afastou dele ‘até o tempo oportuno”, que teria sido
no Getsemani.
Específicas
de Lucas são as seguintes expressões: "cheio do Espírito Santo",
"durante todo esse tempo", "poder", "em um
instante", o uso invariável do substantivo diabolos (= "diabo") em toda a narração, a motivação que
apresenta o diabo em Lc 4,6b e a conclusão do episódio (Lc 4,13). Lucas
transformou o plural "pedras", "pães" (Mt 4,3) para sua
forma singular; omitiu a "montanha altíssima" de que fala Mt 4,8[3].
A diferença
de ordem das tentações nas versões de Mateus e de Lucas nos leva a perguntar:
Qual teria sido a ordem original no Evangelho "Q"? Qual dos
evangelistas que alterou a ordem originária? O biblista K. H. Rengstorf[4]
sugere que Lucas segue a ordem dos três pedidos no Pai Nosso: 1)
"Proclamar que teu nome é santo"; 2) "Que chegue o teu
reino"; 3) "Dá-nos cada dia o pão para nossa subsistência". É
muito fecunda essa aproximação entre o relato das tentações e os pedidos que
Jesus propõe no Pai Nosso.
Mateus
teria colocado a tentação da "montanha" altíssima" na última
posição, porque o tema da "montanha" é particularmente significativo
na sua narração evangélica (por exemplo, o discurso da montanha: Mt 5-7; a
aparição final de Jesus ressuscitado no monte: Mt 28,16-20; todo o evangelho
que tenta apresentar Jesus como o novo Moisés) ou também porque, segundo
Mateus, o ponto culminante seria recusar todo culto a Satanás para dedicar-se
única e exclusivamente a serviço de Deus.
Mas Lucas
preferiu colocar a tentação do pináculo do templo como a última, porque para
ele o lugar mais importante está em Jerusalém. Segundo o biblista Bultmann, o
episódio é uma criação das primeiras comunidades cristãs para explicar de forma
apologética, porque Jesus não fez nenhum milagre/prodígio em proveito próprio
nem se acomodou às dominantes ideias messiânicas do seu tempo.
As
primeiras comunidades cristãs foram transmitindo diversos relatos de tentação,
mas é provável que o relato de Marcos, da tentação, no deserto, constitua a
base mais antiga do episódio, em Lucas. É absolutamente impossível provar a
realidade histórica destas cenas de tentação, já que não temos o menor
fundamento para emitir um juízo histórico. É mais provável que tenha
significado simbólico.
As três
cenas têm um denominador comum: todas corrigem uma idéia equivocada da missão
de Jesus como "Filho" de Deus. O número de "três" tentações
indica "toda a vida", “todas as tentações”. As três tentações de
Jesus são uma síntese de todas as tentações que Jesus sofreu ao longo de sua
missão libertadora.
O biblista Dupont diz que "Jesus fala de
uma experiência por ele vivenciada, porém a expressa em linguagem simbólica,
perfeitamente apta para impressionar os seus ouvintes[5]".
O biblista R. E. Brown chega à seguinte conclusão: "Mateus e Lucas, ou a
fonte comum a ambos, não fazem injustiça aos fatos históricos ao concentrar o
dramatismo destas cenas em um só episódio e ao desmascarar o verdadeiro autor
das tentações, pondo nos seus lábios toda esta carga de sedução[6]".
Seja linguagem figurativa ou "dramatismo", o que não pode ser é
ingênuo literalismo. Mais do que se tratar de um fato histórico ou não, o
sentido teológico é o mais importante.
A narração
evangélica apresenta as tentações de Jesus como fenômenos que procedem de
fontes externas; não há o mínimo de indício de que provenham de um conflito
interior, mas são um símbolo da sedução contida na hostilidade, na oposição e
inclusive na recusa ao projeto de Jesus.
As três
cenas da tentação descrevem Jesus como Filho de Deus, obediente à vontade do
Pai; por isso não cede à sedução de usar seus poderes ou sua autoridade de
Filho para uma finalidade distinta da que constitui sua missão. Ao citar três
tentações do povo no deserto, conforme o livro do Deuteronômio, faz-se um
paralelo entre Jesus e os povos escravizados que se libertaram da escravidão no
Egito sob o imperialismo dos faraós. Onde os povos do Primeiro Testamento
falharam, Jesus sai vitorioso. E nós podemos vencer as tentações de hoje.
Observe o
contexto literário: Lucas inseriu a narrativa das tentações depois da
genealogia de Jesus para mostrar que Jesus é humano como qualquer pessoa e,
enquanto ser humano, vem de Deus. Lucas tem uma visão dialética da história e trabalha muito
com contrastes. Após ter superado as
tentações, Lucas mostra Jesus iniciando sua missão pública e apresentando seu
programa de libertação integral (Lc 4,16-19) na pequena sinagoga de Nazaré.
Como irá colocar em prática esse programa? As tentações são propostas que Jesus
rejeitou, porque por meio delas não é possível libertar os oprimidos, pois
mágica, poder e idolatria não criam condições de vida e liberdade para todos e
todas.
Segundo
Lucas, Jesus foi tentado durante quarenta dias, número simbólico que lembra o
tempo em que Moisés ficou na montanha (Ex 34,28), sem comer nem beber, a fim de
escrever, na intimidade com Deus, o Decálogo da aliança para a nova sociedade.
Lembra também o tempo em que o profeta Elias permaneceu no monte Horeb, depois
do qual desceu para superar a idolatria imposta pelo rei Acab e pela rainha Jezabel
e transformar completamente a sociedade do ponto de vista político e religioso
(cf. 1Rs 19,8). Lembra, ainda, os quarenta anos dos hebreus no deserto, com
suas tentações de voltar ao Egito, mesmo que fosse para sobreviver como escravo,
desde que de barriga cheia, mas sob o imperialismo que massacre de inúmeras
formas.
Na Primeira
tentação (Lc 4,3-4) - “Se és Filho de
Deus, mande que esta pedra se transforme em pão” -, Jesus não aceita se
tornar o Messias da acumulação. O diabo é aquele que tem um projeto capaz de
perverter o projeto de Deus e de Jesus. Ele quer um deus que seja garantia de
prosperidade para uma minoria, um deus de palanque e de status. Jesus recusa
ser o messias da abundância porque o projeto de Deus vai além de promessas
eleitoreiras: "Não só de pão vive a pessoa humana" (Lc 4,4; cf. Dt
8,3). O texto do Deuteronômio fala do tempo em que o povo vivia no deserto e se
contentava em sobreviver assim desde que tivesse pão para comer. A palavra de
Javé, porém, tinha objetivos mais amplos: conduzir todos os povos escravizados
à plena posse da terra para terem vida e dignidade. Jesus recusa-se a ser o
messias da abundância para si, pois sua proposta é a partilha (Lc 11,41) e pão
para todos (Lc 9,12-17). Dt 8,3 faz parte de Dt 8,1-6; recorda quando os povos
oprimidos, ao marchar no deserto, murmuravam contra Moisés e Arão (Ex 16; Nm
11,7-8). A tentação de abrir mão da caminhada libertadora precisa ser superada.
Se parar de caminhar e só pensar em comer, a escravidão volta. Padre
Alfredinho, da Fraternidade do Servo Sofredor, gostava de dizer: “Os ricos se
salvarão quando aprenderem a passar fome”.
Na segunda tentação (Lc 4,5-8) - “Eu te darei todo esse poder com glória..., se te prostrares diante de
mim” -, Jesus não aceita se tornar o Messias do poder. Jesus é tentado a resolver o problema dos oprimidos tornando-se
chefe político de estruturas injustas. Refutou com veemência Jesus: “Adorarás ao Senhor teu Deus, e só a Ele
prestarás culto” (Lc 4,8 cita Dt 6,13)[7]. Todo tipo
de idolatria oprime e mata de muitas formas.
O diabo faz exegese no seu modo de ler a Bíblia: descobrir
nela a motivação para o poder e o sucesso messiânico. O evangelho diz que Jesus
responde ao diabo com outro modo de ler a Bíblia e a experiência histórica dos
povos que lutam por libertação, e esse é o da inserção amorosa e do serviço
despojado do Servo Sofredor que vai até a cruz, doando a vida a todos/as, primordialmente
aos injustiçados/as. A citação completa deste versículo do Deuteronômio mostra
claramente que absolutizar-se no poder é repetir ação opressora dos faraós.
São dois
modos de ler e interpretar a Bíblia que até hoje existem entre nós nas próprias
Igrejas cristãs. Quem lê a Bíblia ou os evangelhos para legitimar pretensões de
poder eclesiástico, sagrado e/ou político, faz o mesmo tipo de exegese do diabo
no relato das tentações de Jesus.
A mosca azul do poder corrompe muitas pessoas. Jesus tem
outros projetos mediante os quais testemunhará um caminho de libertação dos
oprimidos. No Evangelho de Lucas, uma de suas principais características é o
poder serviço (cf. Lc 22,27).
Na terceira tentação (Lc 4,9-12) - Em Jerusalém, no
pináculo do Templo, “Se és Filho de Deus,
atira-te para baixo ...” -, Jesus não aceitou se tornar o Messias do
prestígio, do status. O diabo quer livrar Jesus da morte. Desta vez cita a
Bíblia (Sl 91,11-12). Mas ser messias do prestígio constitui idolatria. "O diabo afastou-se para voltar no
tempo oportuno" (Lc 4,13). Este "tempo oportuno" é o final
da prática libertadora de Jesus, onde ele vai enfrentar os chefes dos
sacerdotes, doutores da Lei e anciãos (cf. Lc 20,1). Eles personificam as
tentações que Jesus venceu: crêem que Deus lhes garante a prosperidade. Acham
que é o suporte político para as estruturas injustas que defendem e promovem;
vivem envolvidos pela busca do prestígio. Jesus vai enfrentá-los. É sua última
tentação. Eles o matam, mas a ressurreição é a prova de que o projeto de Deus, mistério
de infinito amor, é mais forte que as forças de morte.
Em Lc
22,31-32 Jesus fala aos discípulos que Satanás o instigava para peneirar os
discípulos como trigo. Lc 22,31-32 mais Lc 4,13 ("para voltar em tempo
oportuno") nos dão elementos textuais para respaldar a tese de que Jesus
foi tentado durante toda sua vida (principalmente no seu ministério público)
até no momento da morte, e não somente em "40 dias" antes de entrar
em campo para a missão. Para sermos filhos de Deus precisamos doar nossa vida aos
injustiçados/as de ponta a ponta, a vida inteira.
As tentativas de estabelecer uma conexão entre a
narração das tentações de Jesus, de Lucas, com 1 Jo 2,16, onde se menciona
"a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e o orgulho da
vida", são simplesmente erradas. Também é equivocada a interpretação de
que a vitória de Jesus se deve à sua condição de "sumo-sacerdote".
Jesus vence com a ferramenta "da palavra de
Deus" (Ef 6,17), pois cita sempre uma passagem do Primeiro Testamento para
inspirar um projeto genuinamente humano-divino.
Lucas
apresenta as três tentações em uma ordem diferente do Evangelho de Mateus.
Este inicia apresentando a tentação da transformação de pedras em pão (primeira
tentação), do jogar-se do pináculo do templo e ser salvo pelos anjos (segunda
tentação) e a tentação de contemplar em uma alta montanha os reinos com todo o
esplendor (terceira tentação) (Mt 4,1-11 e Lc 4,1-13).
No
evangelho de Lucas, a primeira tentação se dá no deserto,
onde Jesus é tentado a transformar pedra em pão. A segunda acontece
na montanha, em que contempla os reinos. A terceira, no pináculo do templo,
onde Jesus é tentado a saltar dali para ser salvo pelos anjos. Há uma
progressão nas tentações. O clímax do confronto entre Satanás
e Jesus aconteceu precisamente em Jerusalém, onde acontecerá a
execução do Justo e Inocente com a pena de morte, a pena capital. Assim, a cena
na qual Jesus se encontra sobre o pináculo da “casa de seu Pai” se torna muito eloquente,
porque no Evangelho de Lucas, “Jerusalém” é o ponto de chegada de Jesus para
realizar a missão (Lc 17,11; Lc 19,28-38).
Para
as primeiras comunidades cristãs, “Jerusalém” é o ponto de partida para a
missão (Lc 24,52). Jerusalém tem uma importância particular, pois é a
cidade do “destino” final de Jesus e de onde se irradia a libertação-salvação
para todo o gênero humano e toda a Criação. Jesus caminha para Jerusalém como
se buscasse alcançar uma meta (Lc 13,22). Lucas valoriza “Jerusalém” não
somente como lugar físico, mas primordialmente como lugar teológico que
representa a “cidade de Davi”, o monte Sião, de onde o Deus da vida
legisla. Lucas se refere a “Jerusalém” com o termo grego Ierousalëm, designação de Jerusalém não como lugar geográfico, mas
de lugar sagrado do judaísmo e, talvez, como retornando a compreensão de que
Jerusalém simboliza a aliança de Deus com os povos oprimidos, (a nova Jerusalém
do Apocalipse 21 e 22). Aliança agora estendida e oferecida a toda a humanidade
e até a todo o universo, onde se pode ouvir a voz divina que diz “Faço novas
todas as coisas” (Ap 21,5).
Enfim,
Jesus não caiu nas tentações da mágica, nem do poder e nem da idolatria.
Atualmente, em muitos países a tentação do fascismo, da extrema-direita, com
projetos neonazistas, tenta seduzir a maioria do povo insuflando a ilusão de
que por meio de ditadura militar-civil-empresarial será possível superar as
injustiças socioambientais, políticas e econômicas que se abatem sobre os povos.
Ledo engano! Feliz quem não cair na tentação do fascismo, nem do neonazismo da
extrema-direita que ronda o mundo!
03/03/2025.
Obs.: As
videorreportagens nos links, abaixo, ATUALIZAM o assunto tratado, acima.
1 - “POVO DEU UM PASSO À FRENTE E O MAR
VERMELHO SE ABRIU”, Frei GILVANDER, NO QUILOMBO CAMPO GRANDE/MST
2 - PREFEITO DE ARAÇUAÍ/MG com PL PARA AMPUTAR
APA CHAPADA DO LAGOÃO PARA ABRIR ESPAÇO PARA MINERADORAS
3 - INJUSTIÇAS SOCIOAMBIENTAIS BRUTAS EM MINAS
GERAIS: Frei Gilvander entrevista Dr. Elcio Pacheco, adv
[1] [1] Frei e
padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR;
bacharel em Teologia pelo ITESP/SP;
mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália;
doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, Movimentos Sociais e
Ocupações.
E-mail:
gilvanderlm@gmail.com – www.freigilvander.blogspot.com.br –
www.gilvander.org.br
www.twitter.com/gilvanderluis –
Face book: Gilvander Moreira III – Canal no You Tube: Frei Gilvander
luta pela terra e por direitos
[2]
Fonte “Q” é um Evangelho perdido com ditos e sentenças proferidas por Jesus.
Conclui-se a existência deste Evangelho pela existência de passagens
semelhantes nos evangelhos de Mateus e Lucas, mas que não existem no Evangelho
de Marcos.
[3]
Cf. J.DUPONT, Les tentations de Jésus au
désert, pp. 43-72.
[4] Das
evangelium nack Lukas, p. 63.
[5]
Cf. J.DUPONT, Les tentations de Jésus au
désert, pp. 113-115.
[6] Cf. R. E. BROWN, CBQ 23 (1961), p. 155.
[7] Dt 6,13 faz parte de Dt
6,1-15 e recorda os riscos que exercem os cultos cananeus (cf. Dt 12,30-31; Ex
23,23-33). As rebeliões do povo contra Moisés (e Deus) é um dos temas fortes do
Primeiro Testamento: cf. 2Rs 16,3-4; 21,5-6; Jr 7,31; Sal 106 e etc.).
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