terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Traduções da Bíblia da LXX para Línguas Antigas e o Latim. Por frei Gilvander

Traduções da Bíblia da LXX para Línguas Antigas e o Latim. Por frei Gilvander Moreira[1]



Ao longo da história, a Bíblia judaica e a cristã passaram por muitas traduções. Existem diversas traduções antigas da Bíblia da LXX, a Septuaginta, nas várias línguas faladas nas comunidades cristãs, sendo que as principais são: Vetus Latina; Copta; Armena; Siríaca Filossenianae Palestinense.

A tradução Vetus latina ou Antigo Latim foi feita para atender aos cristãos da parte Ocidental do Império Romano, que sentiam a necessidade de uma tradução da Bíblia grega para o latim. O problema é saber se a expressão ‘Vetus Latina’ refere-se às duas recensões, africana e Romana, da mesma tradução? Ou trata-se de duas traduções independentes? Pois, Cipriano, por volta do ano 258 da Era Cristã, cita a Bíblia da mesma forma, e o mesmo é feito por Novaciano, por volta do ano 257, mas não se trata da mesma tradução. Os beneditinos de Beuron estão trabalhando desde 1951 numa edição crítica, para saber o que resta da ‘Vetus Latina’.

A tradução Copta tem duas versões, uma do norte (setentrional) e outra do sul (meridional). Estas traduções tiveram seu início depois do ano 200 da Era Cristã e foram feitas em base ao texto da tradução da LXX. A tradução Armena segue a tradução Esapla, de Orígenes, levando também em conta a tradução Siríaca Peshita. A tradução Siríaca Filosseniana, do século VI, recebeu este nome por causa do bispo Filosseno, dela existem alguns fragmentos. A tradução Siríaca Palestinense surgiu por volta do ano 600 Era Cristã e segue o texto da tradução Esapla, de Orígenes, e, no século VII surgiu outra sob o mesmo nome. Todas estas versões da Bíblia cristã foram importantes para reconstruir o texto do Primeiro Testamento grego e, por meio dele o texto hebraico-aramaico.

E as traduções da Bíblia da LXX para o Latim? O latim[2] era a língua falada pelo povo no império romano. Por isso, era necessário que a Bíblia fosse traduzida para que o povo tivesse acesso para a sua leitura pessoal, bem como pudesse servir para a catequese e para a liturgia das pessoas cristãs. Foi, então, que a partir do II século da Era Cristã, quando também a religião cristã se propagava entre os povos de língua latina, houve um novo impulso para a sua tradução.

A tradução Vetus Latina é a forma genérica de falar de todas as traduções antigas que foram feitas tanto do Primeiro, quanto do Segundo Testamento bíblico, anteriores à tradução da Vulgata, que foi feita por São Jerônimo (nasceu em 342 e morreu no ano de 420). Para o Primeiro Testamento foi feita de uma versão da LXX e para o Segundo Testamento do grego. Ao longo dos anos houve muitas traduções da Bíblia para o latim, o que podemos deduzir pela variedade do vocabulário e estilo entre um livro e outro da Bíblia, ou ainda entre um conjunto de livros ou outro.

A importância da tradução Vetus Latina está na possibilidade de reconstrução crítica do Segundo Testamento do texto grego, e por ter servido para a formação da Vulgata. São Jerônimo não traduziu os livros deuterocanônicos do Primeiro Testamento[3], eles entraram na Vulgata pela Vetus Latina, bem como os Salmos e o Segundo Testamento que apenas foram revisados.

Há um número limitado de códices que conservam fragmentos parciais do texto da tradução Vetus Latina, do Segundo Testamento. Estes são indicados com as letras minúsculas do alfabeto latino. Os mais importantes são: o Códice k, do século V-VI que contém os Evangelhos Mateus e Marcos e é conservado em Turim na Itália; o Códice a do século IV e V, talvez o mais antigo manuscrito latino dos evangelhos; O Códice e Palatino do século V, Códice b Verona do século V e Códice f de Bescia do século VI. São muito importantes estes códices porque servem para reconstruir o texto da tradução Vetus Latina, também citações de Santos Padres como Cipriano e Ambrósio.

Os Beneditinos de Beuron na Alemanha fizeram uma edição completa da tradução Vetus Latina, sob o mesmo título. Recolheram todos os testemunhos dos Códices, lecionários litúrgicos e todas as citações dos antigos escritores eclesiásticos até Carlos Magno, no ano 800 da Era Cristã. A obra foi editada em dois Tomos. Ela contribuiu muito com os seus numerosos índices, que abriram possibilidade ao estudo de novos enfoques, novas ideias teológicas, a formação de uma terminologia eclesiástica, na construção de uma história do texto bíblico grego e também na formação da Vulgata.

Tradução da Vulgata, palavra que vem do latim e significa ‘aquilo que é do uso público’, muito divulgada. É assim conhecida a Bíblia que foi traduzida para o latim, em grande parte por São Jerônimo, dos textos massoréticos e partes da Vetus Latina. O latim era a língua falada e entendida pelo povo em geral. Mas, nos dois primeiros séculos da era cristã, o nome Vulgata ou Vetus Latina, indicava o texto da LXX, por ser muito difundida.

A Vulgata para o Primeiro Testamento integrou os cinco livros deuterocanônicos: Baruc, Eclesiastes, Sapienciais, I e II Macabeus mais os fragmentos dos livros de Ester 10,4-16,24 da Vetus Latina, corrigidos segundo o texto da LXX; e de Daniel 3,24-94; 13-14 que também é da Vetus Latina, mas corrigido segundo o texto de Teodozião.

O saltério vem da tradução Vetus Latina e foi corrigido por São Jerônimo segundo o texto grego da Esapla, de Orígenes. Os livros de Tobias e Judite foram traduzidos por São Jerônimo do aramaico; e todos os demais livros do Primeiro Testamento foram traduzidos igualmente por São Jerônimo do texto hebraico, e parte dos livros de Daniel 2,4b-7,28 e Ester 4,8-6,18; 7,12-26 do aramaico. Para o Segundo Testamento, tanto os Evangelhos como os demais escritos foram corrigidos provavelmente por São Jerônimo, da Vetus Latina, sobre o texto grego.

A Vulgata carrega uma dúplice autoridade: crítica porque de fato, é obra autêntica de São Jerônimo, reproduz com exatidão o sentido dos textos nas línguas originais. E a autoridade jurídica lhe advém das autoridades competentes que o aprovaram. O Concílio de Trento (de 1545 a 1563) reconheceu a sua autoridade[4]. Esta se difundiu na Igreja romana a partir do século VII. Em 1590, a Vulgata recebeu a sanção oficial do papa Sisto V. No final do papado de Paulo VI, foi elaborada uma nova tradução da Bíblia: a Neo-vulgata.

Conhecer um pouco da história das traduções da Bíblia ajuda-nos no processo de interpretação, pois leva-nos a perceber que “a Bíblia não foi ditada por Deus”, mas passou por um intenso e complexo processo de criação, de atualizações, teve e tem muitas versões. Isto nos leva à necessidade de descobrirmos a vontade de Deus não na letra fria, mas buscando o seu espírito e acreditando que o Deus da vida, o que foi testemunhado pelos profetas e profetisas, fala hoje a nós também na trama da história e dos acontecimentos, nas ondas das relações humanas, sociais e ecológicas. Portanto, interpretar os textos bíblicos de forma fundamentalística e literalista pode muitas vezes torturar os textos bíblicos para se tirar conclusões totalmente contraditórias com o que Deus quer para todos/as a partir dos injustiçados/as: vida e liberdade em abundância (Jo 10,10). Enfim, está completamente errado quem invoca versículos bíblicos isolados para discriminar pobres, pessoas LGBTQIA+, estrangeiros/as, negros/as etc. O Deus da vida não quer discriminação de ninguém. Aprendamos a respeitar, a amar e a admirar a dignidade de todas as pessoas e de todos os seres vivos da biodiversidade nos irmanando na luta pela construção de uma sociedade justa economicamente, solidária socialmente, responsável ecologicamente, democrática politicamente, com respeito à imensa pluralidade cultural e religiosa, garantindo, assim, um futuro menos difícil para as próximas gerações.

06/02/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Um Tom de resistência - Combatendo o fundamentalismo cristão na política

2 - Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética

3 - Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

4 - Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

5 - Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG - Set/2022

6 - Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

7 - Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

8 - Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

9 - Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! - Por frei Gilvander - Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023

10 - Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

11 - Contexto para o estudo do Livro de Josué - Mês da Bíblia 2022 - Por frei Gilvander - 30/8/2022

12 - CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

[2] É uma língua indo-européia, da qual se originaram: o português, espanhol, francês, italiano, romeno entre outras. O latim era inicialmente falado no Lascio, região da Itália, e gradativamente expandiu-se sendo falada em todo império romano, há documentos que o comprovam desde o século VII antes da Era Cristã.

[3] Sãos os livros da Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, I e II Macabeus.

[4] A Vulgata foi aprovada na IV seção do Concílio de Trento, 8 de abril de 1546 com o Decretum de Editione et usu Sacrorum Librorum.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Edições críticas da Bíblia da Septuaginta, a LXX. Por frei Gilvander

Edições críticas da Bíblia da Septuaginta, a LXX. Por frei Gilvander Moreira[1]



Partilhamos aqui mais “argumentos” indiretos que demonstram que a interpretação liberal e fundamentalista da Biblia, a que faz “os catadores de versículos bíblicos”, “não tem pé nem cabeça”, não passa de projeção de pré-compreensões de quem busca ser referendado nas suas opiniões de senso comum preconceituoso e contaminado pela ideologia dominante, por textos bíblicos, considerados inspirados.  

Os manuscritos originais da Biblia se perderam. Temos uma série de manuscritos posteriores aos manuscritos originais. Primeiro, a Bíblia Hebraica foi traduzida para o Grego, na tradução chamada Setenta (LXX). Em seguida, foram feitas várias edições críticas da Bíblia da Septuaginta (Setenta, LXX), baseadas em manuscritos mais importantes como o Alexandrino, o Vaticano e o Sinaítico.

Existem conservados Códigos maiúsculos mais importantes do Texto Bíblico grego. Os manuscritos dos textos bíblicos antigos receberam o nome de Código, ou Códigos no plural. Códigos são escritos em pergaminho, em letras maiúsculas. Eles são feitos de pele de animais. A partir do século IV da Era Cristã se difunde sempre mais o uso do pergaminho. São escritos tanto em grego quanto em latim e datam do século IV ao XII da Era Cristã. Os que eram destinados a servirem como modelos para serem copiados eram escritos em letra maiúscula.

          Os Códigos maiúsculos mais importantes[2] que trazem todo o Primeiro Testamento Bíblico com a tradução da Setenta (LXX) e o Segundo Testamento com algumas lacunas são: 1) O Código do Vaticano (B=03), identificado também com a letra maiúscula B e o número 03. Leva esse nome porque se encontra na Biblioteca do Vaticano. Ele é do século IV da E.C. Aparece no inventário do Vaticano desde 1475. Este é o Código mais importante; 2) O Código Sinaítico (S=01) - pode ser identificado também pela letra S maiúscula ou a letra alef (= a do alfabeto hebraico) e o número 01. Foi descoberto em 1859 por Constantin von Tischendorf, no Mosteiro de Santa Catarina, no deserto do Sinai. Contém toda a Bíblia. Ele é do século IV da E.C. e, atualmente, encontra-se no British Museum de Londres; 3) O Código Alexandrino (A=02) é identificado com a letra A maiúscula e o número 02. Traz o Primeiro e o Segundo Testamentos. É do V século da Era Cristã. É conservado no British Museu de Londres; 4) O Código de Efrém (C=04) reescrito é identificado com a letra C maiúscula e o número 04. Contém o Primeiro e o Segundo Testamentos. É do século V da Era Cristã. Recebe este nome porque no século XII o texto bíblico foi raspado e em seu lugar escreveu-se em grego, as obras de Santo Efrém. Traz o Primeiro e o Segundo Testamentos com lacunas. Hoje se encontra na Biblioteca Nacional de Paris.

Códigos importantes que trazem parte dos escritos bíblicos: 1) O Código de Beza (D=06) é identificado com a letra D maiúsculo e o número 05. Beza é o nome de quem doou o Código para a biblioteca da Universidade de Cambrige, em 1581, motivo pelo qual é conhecido também por Cantabrigiensis. Contém os Evangelhos, os Atos dos Apóstolos nesta disposição: em latim na página esquerda, e em grego na página direita. Este Código é do século V da Era Cristã; 2) O Código Claromontano (D=06) é igualmente identificado com a letra D maiúscula e o número 06. Chama-se assim porque permaneceu por muito tempo no Mosteiro de Clermont. Traz as Cartas de Paulo na versão grega e latina. É do século V da Era Cristã. Encontra-se na Biblioteca Nacional de Paris; 3) O Código de Washington (W=032) é identificado com a letra maiúscula W e o número 032. O Códice é do século VI da Era Cristã. Contém os Evangelhos na ordem preferida pelos antigos do Ocidente: Mt, Jo, Lc, Mc. Encontra-se em Washington, nos Estados Unidos; 4) O Código de Koridethi (T=038) é identificado com o Teta grego maiúsculo e os números 038. Leva este nome por causa do nome do Mosteiro, situado sobre o mar Negro e conservado em Tíflis, capital da Geórgia. Traz os Evangelhos com lacunas. É do século VIII da Era Cristã.

Há ainda os códigos menores que não têm o valor que é atribuído aos Códigos maiores mencionados acima, mas contribuem muito para os estudos bíblicos: 1) O Código Freer de Washington, que traz os livros do Deuteronômio e Josué do séc. V da E.C.; 2) O Código Marchaliano Q, que traz os livros dos profetas. É do século VII da Era Cristã, e é conservado na Biblioteca do Vaticano, em Roma. Ele é importante pelo grande número de notas marginais que ele traz da Esapla de Orígenes; 3) O Código Chisiano 88. É do século X da Era Cristã, também é conservado na Biblioteca do Vaticano. Apresenta o texto dos profetas da Esapla, com os sinais diacríticos de Orígenes.

 

Referências

ASSOCIAÇÃO LAICAL DE CULTURA BÍBLICA. Vademecum para o Estudo da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 173-174.

24/01/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Um Tom de resistência - Combatendo o fundamentalismo cristão na política

2 - Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética

3 - Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

4 - Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

5 - Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG - Set/2022

6 - Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

7 - Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

8 - Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

9 - Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! - Por frei Gilvander - Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023

10 - Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

11 - Contexto para o estudo do Livro de Josué - Mês da Bíblia 2022 - Por frei Gilvander - 30/8/2022

12 - CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres




[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

[2] ASSOCIAÇÃO LAICAL DE CULTURA BÍBLICA. Vademecum para o Estudo da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 173-174.

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Tradução da Bíblia Hebraica para o Grego: a LXX - Por frei Gilvander

Tradução da Bíblia Hebraica para o Grego: a LXX - Por frei Gilvander Moreira[1]


A tradução da Bíblia Hebraica para o Grego, a chamada Tradução da LXX, foi iniciada no III século antes da Era Cristã (a.E.C.) e foi a primeira que aconteceu do texto bíblico hebraico e aramaico do Primeiro Testamento. Esta tradução é identificada por diversos nomes referindo-se ao mesmo texto: a LXX; a Septuaginta; a Setenta; a tradução Alexandrina, cidade do Egito onde teria sido feita esta tradução.

A Tradução da LXX recebeu o seu nome da Pseudo Carta de Aristea, do II século da Era Cristã (E.C.), que narra na forma de uma Carta como teria sido a origem da tradução grega da Bíblia hebraica. Ele afirma que o rei do Egito Ptolomeu Filadelfo (285-247 da a.E.C.) desejava ter na famosa Biblioteca de Alexandria um exemplar da Lei Mosaica. Para realizar este seu desejo teria convidado 72 sábios judeus de Jerusalém para Alexandria, que em 72 dias teriam terminado a incumbência dada pelo rei para traduzir o Primeiro Testamento da Bíblia judaico-cristã. Se esta Carta é verdadeira ou não, não sabemos, mas foi no III século a.E.C., no tempo do rei Filadelfo, que iniciou-se a tradução do Primeiro Testamento da Bíblia Hebraica para o grego.

De fato, em Alexandria havia uma colônia numerosa de judeus da diáspora, que distantes de sua terra de origem, filhos e netos pouco a pouco não falavam e nem liam mais o hebraico. A tradução para o grego era uma forma de possibilitar o acesso aos textos sagrados aos descendentes judeus. O término da tradução da LXX provavelmente se deu por volta do ano 100 a.E.C., pois o autor do livro hebraico Qohelet, em grego Eclesiastes, afirma ter chegado ao Egito no tempo de Ptolomeu Evergete II (170-116), por volta do ano 132, e que, depois de um tempo, teria escrito o livro Qohelet/Eclesiastes, em que o autor deixa a entender que a tradução grega do Primeiro Testamento da Bíblia Hebraica já era conhecida nesta época. 

O valor crítico e literário da tradução da LXX estaria no fato de ter sido feita por um grande número de estudiosos que tinham um bom conhecimento das duas línguas – o hebraico e o grego - e com habilidades para esse empreendimento, embora nem todas as partes da tradução tenham o mesmo valor crítico e literário. Quanto ao valor crítico da tradução, alguns livros trazem bem o sentido original do texto hebraico, outros, menos. Há indícios de que alguns textos foram parafraseados, outros ampliados na parte doutrinal (MARTINI; BONATI, 1990, p. 187). Nenhum tradutor é neutro.

A importância histórica e ética da tradução da LXX está no fato de ter sido o texto oficial por muito tempo para os judeus helenistas ou vindos da cultura helênica. A partir do Egito esta Bíblia na língua grega se espalhou rapidamente por toda a bacia do Mediterrâneo oriental, de modo especial onde havia comunidades judaicas de língua grega. No seu conjunto a LXX tem o seu merecimento, pois os seus tradutores não tinham os recursos necessários de filologia e de exemplos anteriores; eles foram os pioneiros.

A versão dos Setenta foi utilizada nos primeiros séculos da Igreja como verdadeiro texto bíblico. No entanto, nem todos os livros que contém acabaram sendo admitidos no cânon da Igreja Católica. Cinco deles foram rejeitados como apócrifos, não inspirados: 1Esdras (mas foi admitido 2Esdras, que contém nossos livros de Esdras e Neemias), 3 e 4 Macabeus, Odes e Salmos de Salomão (TOSAUS ABADIA, 2000, p. 54).

A maioria das citações da Bíblia cristã no Segundo Testamento é tomada da versão grega e não do original hebraico. Por exemplo, nos evangelhos de Mateus e Lucas se diz que Jesus nasceu de Maria, uma mulher virgem (Mt 1,23; Lc 1,27). Entretanto, segundo vários evangelhos e textos do Novo Testamento (Mc 6,3; Mt 12,46-49; 13,55-56; Jo 2,12; 7.3.5.10; Ato 1,14; Gal 1,19; I Cor 9,5 e o apócrifo História de José o carpinteiro II, 3, se diz que Jesus teve irmãos e irmãs. Chegam a dizer que os irmãos e irmãs de Jesus seriam seis: Judas, José, Tiago, Simão, Lísia e Lídia.

Qual o sentido da “virgindade” de Maria? Qual a etimologia da palavra virgem? Ouvimos falar em "mulher virgem", "mata virgem", "terra virgem". Em Lc 1:27 diz: "uma virgem desposada com um varão cujo nome era José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria". Em Mt 1,23 diz: "Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de EMANUEL".

Para ajudar a José (e principalmente a/s comunidade/s de Mateus) a entender e assumir uma criança que nasce em situação fora do previsto pela Lei de Moisés (de fora e antes do casamento), e a reconhecer que ela vem de Deus e de seu Espírito (Mt 1,18-25), a uma certa altura no evangelho de Mateus aparece uma citação do profeta Isaías, no contexto da fala do anjo a José no meio de um sonho. Confira em Mt 1,22-23: “Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta”. E depois vem a citação de Is 7,14.

Notamos que entre o texto de Isaías e a citação no evangelho de Mateus há algumas diferenças. O texto de Isaías diz o seguinte: “Eis que a jovem (hayalemah, em hebraico) concebeu e dará à luz um filho, e o chamará com o nome de Emanuel” (Is 7,14). O texto de Mt prescreve: “Eis que a virgem (parthenos, em grego) conceberá, e dará à luz um filho, e o chamarão com o nome Emanuel” (Mt 1,23). Mateus usa a versão da LXX que usa a palavra parthenos, que significa virgem, mas no hebraico, em Is 7,14, está a palavra hayalemah, que significa jovem. Uma jovem conceber e dar à luz uma criança está de acordo com as leis da natureza, mas uma virgem conceber, não. Como explicar a diferença?

Por enquanto, duas diferenças chamam a nossa atenção. Em primeiro lugar, o texto de Isaías fala de uma gravidez que já está acontecendo (“a jovem concebeu”); ou seja, só pode estar falando de uma jovem que vivia no tempo em que Isaías pronunciou este oráculo, mais de 700 anos antes de Jesus, no contexto da história de Judá sob domínio do rei Acaz e sob a ameaça do império assírio. Essa criança que está para nascer é sinal de Javé para o rei, por ela e seu nome a profecia deixa claro o lugar de Javé e sua distância dos projetos do rei e sua corte (leia o conjunto de Is 7,1-17).

Em segundo lugar, a citação desse texto no evangelho das comunidades de Mateus tem outro objetivo. A criança de que se está falando é Jesus, que vai nascer muito tempo depois do tempo de Isaías. Por isso, a gravidez aparece anunciada, apontada para o futuro (“a virgem conceberá”). Em outros termos, as comunidades de Mateus releem com liberdade a profecia de Isaías e a projeta no futuro, ao invés de copiá-la simplesmente mantendo o tempo presente. Por isso, diz "conceberá"; e não diz "concebeu". Foi a meditação, a experiência de fé da comunidade que tornou possível fazer a junção entre a história de uma criança do tempo de Isaías, que foi sinal de Javé para o povo, e a história de Jesus, com certeza um grande sinal de Deus para as comunidades de fé. Também dizer que Jesus Cristo é filho de uma “virgem” é um jeito de dizer que Jesus Cristo é divino, filho Deus, messias, salvador. Não é um simples homem. Na Bíblia há várias passagens que mostram mulheres virgens e estéreis dando à luz. Por exemplo, Sara, a esposa de Abraão, concebe Isaac na sua velhice e esterilidade (Gn 24,36). Isabel, prima de Maria, concebe João, o Batista, na sua velhice estéril (Lc 1,7). Isso como um jeito bíblico de dizer que “para Deus nada é impossível” (Lc 1,37), ou seja, nas entranhas da história e do humano, o divino pode brilhar de forma inesperada.

A Tradução da LXX é de grande importância na crítica textual, já que ela é a tradução mais antiga e, junto com os manuscritos do Mar Morto, nos proporciona acesso ao tipo de texto hebraico antigo que se diferenciava do texto proto-massorético. O texto grego da LXX foi retomado pelos autores do Segundo Testamento cristão em cerca de 300 citações do Primeiro Testamento, de um total de 350. O Segundo Testamento cristão da Bíblia traz também as citações da LXX quando o sentido do texto é diverso do texto hebraico. A Igreja, na verdade, considerou como seu texto oficial para o Primeiro Testamento a tradução da LXX, excluindo apenas a tradução do livro de Daniel, e em seu lugar inseriu a tradução de Daniel do Teodozião. A Bíblia grega era usada pelos padres gregos nas homilias, nos comentários, na catequese e nas assembleias litúrgicas.

Referências

MARTINI C. M; BONATI D. P. Il Messaggio della Salvezza, v.1. Torino: Elle Di Ci, 1990, p. 187.

TOSAUS ABADIA, J. P. A Bíblia como literatura. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 54.

16/01/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Um Tom de resistência - Combatendo o fundamentalismo cristão na política


2 - Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética

3 - Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

4 - Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

5 - Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG - Set/2022

6 - Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

7 - Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

8 - Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

9 - Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! - Por frei Gilvander - Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023

10 - Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

11 - Contexto para o estudo do Livro de Josué - Mês da Bíblia 2022 - Por frei Gilvander - 30/8/2022

12 - CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres




 

 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

sábado, 6 de janeiro de 2024

Quem persegue padre Júlio Lancellotti persegue Jesus Cristo e seu Evangelho de libertação integral - Por frei Gilvander

Quem persegue padre Júlio Lancellotti persegue Jesus Cristo e seu Evangelho de libertação integral - Por frei Gilvander Moreira[1]

Defender o padre Júlio Lancellotti é dever de toda pessoa cristã e de quem dedica a vida a lutar pela construção de uma sociedade justa

 


Escrevo este texto para manifestar nosso irrestrito apoio ao nosso querido, admirado e respeitado padre Júlio Lancellotti, que há várias décadas vem sendo outro Cristo no nosso meio, especialmente no meio da População em situação de Rua da capital de São Paulo. Repudiamos com veemência a CPI na Câmara de Vereadores de São Paulo contra as ONGs que prestam apoio às pessoas em situação de rua e contra a atuação do padre Júlio Lancellotti.

É politica fascista e nazista “proibir dar comida às pessoas em situação de rua”, como vereadores de direita e de extrema-direita querem proibir na capital de São Paulo ou “internar de forma compulsória as pessoas em situação de rua”, “multar as famílias que têm pessoas em situação de rua”, “confiscar/roubar seus pertences” e “castrar as mulheres em situação de rua”, como foi aprovado em 1º turno na Câmara de vereadores de Belo Horizonte, MG, por vereadores de centro e de extrema direita. Este Projeto de Lei fascista não se tornou Lei em Belo Horizonte graças à luta do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, da Pastoral de Rua e dos muitos Movimentos Sociais que aderiram à luta para barrar este brutal PL. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal obrigando os estados e municípios a implementarem Políticas Públicas de apoio às pessoas em situação de rua inviabilizou a votação em 2º turno do PL racista em BH.

Se prestarmos atenção ao que defendem os políticos de centro, de direita e principalmente de extrema-direita, veremos que são egoístas, defendem privilégios para uma minoria, defendem políticas de morte para a maioria e a reprodução da desigualdade social cada vez mais brutal. Quem vota em políticos de centro, de direita e de extrema-direita está entregando a chibata na mão de capitães do mato para chibatar a classe trabalhadora e camponesa. A esquerda não é perfeita, mas tem senso de humanidade, de empatia, de amor ao próximo e luta pela superação das desigualdades sociais e injustiças agrária, urbana e ambiental.

Assim como Jesus Cristo, Gandhi, Martin Luther King, Che Guevara, Zumbi, Dandara, Antônio Conselheiro, camponeses do Contestado, dom Pedro Casaldáliga, Dom Hélder Câmara, irmã Dorothy Stang, Chico Mendes, padre Josimo Tavares, padre Ezequiel Ramin, os Sem Terra massacrados em Corumbiara, em Eldorado dos Carajás, em Felisburgo, o líder indígena Sepé Tiaraju, cacique Chicão e uma multidão de indígenas massacrados por capitalistas, colonialistas, fazendeiros, grileiros, empresários do agronegócio, desmatadores, políticos de direita e de extrema-direita, padre Júlio Lancellotti vem sendo há décadas perseguido por filhos das trevas, por quem insiste em reproduzir a brutal desigualdade socioeconômica que campeia no Brasil. Padre Júlio consola de forma libertadora os violentados por uma sociedade capitalista e incomoda os opressores e exploradores, pois “põe o dedo na ferida”, aponta as causas da injustiça social e as soluções que passam necessariamente por políticas públicas que precisam ser implementadas para resolver de forma justa as injustiças que abatem sobre o povo marginalizado.

Padre Júlio combina duas características imprescindíveis do jeito de agir e ensinar de Jesus Cristo: solidariedade e luta por justiça. Com uma mão, padre Júlio é solidário com os violentados em situação de rua, com as mulheres vítimas do machismo, do patriarcalismo, do feminicídio; é solidário com o povo negro vítima das relações sociais escravocratas, o que reproduz o racismo; é solidário com o povo LGBTQIA+ na luta pela superação da homofobia para que toda pessoa, sem exceção, seja respeitada na sua dignidade; é solidário com os sem-terra e sem-teto que lutam por um pedaço de chão, por teto, pão e liberdade para se libertar da pesadíssima cruz do aluguel, ou humilhação que é sobreviver de favor nas costas de parentes ou nas intempéries das ruas; é solidário com os Povos Indígenas submetidos a genocídio há mais de cinco séculos; enfim, padre Júlio é solidário com todas as pessoas que são injustiçadas e violentadas na sua dignidade. E com outra mão, padre Júlio luta por justiça no seu sentido profundo, pois denuncia as causas e os causadores das injustiças. Padre Júlio não aceita paliativos para a injustiça que campeia nas ruas de São Paulo e nem que se rotulem as vítimas das injustiças como se fossem elas as causadoras da violência. Padre Júlio incomoda, porque denuncia políticos que representam os interesses do grande capital e as políticas asquerosas e brutais.

Feliz padre Júlio, que é perseguido por lutar por justiça para os irmãos e irmãs em situação de rua! Feliz padre Júlio, que, pelo seu jeito humilde de agir, constrói caminhos para a paz como fruto da justiça!

Padre Júlio, estamos com você, o Deus da vida está com você. Você, padre Júlio, testemunha a presença de Jesus Cristo no nosso meio. Mexeu com padre Júlio, mexeu conosco e com milhões de pessoas que buscam amar o próximo. Enfim, perseguir o padre Júlio Lancellotti é perseguir Jesus Cristo e seu Evangelho de libertação integral.

06/01/24

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - FREI GILVANDER APÓIA PADRE JÚLIO LANCELLOTTI: "Apoiá-lo, dever de quem luta por justiça social!"



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III