quarta-feira, 8 de outubro de 2025

DOS TRABALHADORES O VINHO BOM, NO 6O DIA: CRIAÇÃO DA NOVA HUMANIDADE (Jo 2,1-11) - Por Gilvander

DOS TRABALHADORES O VINHO BOM, NO 6O DIA: CRIAÇÃO DA NOVA HUMANIDADE (Jo 2,1-11) - Por Gilvander Moreira[1]



No dia 12 de outubro de 2025, o Evangelho proposto para a celebração nas comunidades cristãs é Jo 2,1-11, “Bodas de Caná”, que integra a seção Livro dos Sinais (Jo 1,19-12,50), o primeiro dos sete sinais que estão no Evangelho de João dos capítulos dois ao onze. Sinais e não milagres. Nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas há relatos de muitos milagres, mas o Evangelho de João relata sete sinais, que é algo “como sinal de trânsito” que nos aponta para algo mais profundo.

Os sinais se manifestam em situações de carência – falta de vinho, falta de pão, falta de visão... – e devem ser compreendidos na perspectiva de encontrar respostas para aquelas perguntas sobre o contexto das comunidades do Quarto Evangelho. É possível que para escrever o Livro dos Sinais (Jo 1 –12) as comunidades cristãs do Quarto Evangelho tenham usado um “Evangelho dos sinais”, conhecido também por Marcos, mas perdido ao longo do tempo. Este “Evangelho dos sinais” conteria “milagres” de Jesus presentes nos dois evangelhos: a cura de um paralítico, a “multiplicação” dos pães, Jesus andando sobre as águas, a cura de um cego.

Conforme frei Carlos Mesters, “o Evangelho de João não tira fotografias, mas RAIO X com os olhos da fé, do coração: mostra os ossos invisíveis da fé que sustenta todos e tudo.” O Quarto Evangelho vê o mais profundo. “A essência é invisível aos olhos humanos”, já dizia o grande filósofo Aristóteles.

No Quarto Evangelho a liderança das mulheres se destaca (Cf. Jo 2,5: a mãe de Jesus; 11,20-29: Marta e Maria, irmãs de Lázaro; 12,3: Maria, irmã de Lázaro; 19,25-27: a mãe de Jesus, Maria, a mulher de Cléofas e Maria Madalena; 20,16-18: Maria Madalena). As comunidades do Quarto Evangelho mantinham o espaço para a importante participação das mulheres, característica respaldada também em Mc 15,40-41; At 16,11-15; Rm 16,1-16. Lugar onde se dá o encontro com Jesus, o poço é um ponto estratégico das aldeias na Palestina. Lugar de partilha dos recursos, do encontro entre as mulheres, das conversas matutinas.

Se no Evangelho de Mateus é o apóstolo Pedro que reconhece por primeiro Jesus como “o messias, o senhor, salvador”, no centro do Evangelho de João está a confissão messiânica de Marta (Jo 11,27: “Sim, Senhor. Eu acredito que tu és o Messias, o Filho de Deus que devia vir a este mundo.”), confissão igual à de Pedro em Mt 16,16.

Devemos enfatizar que para compreendermos Jo 2,1-11, “Bodas de Caná”, faz bem reconhecer a relevância das mulheres no Evangelho de João: Maria está no início e no fim. Em Jo 2,3 e 4 aparece claramente uma evolução na fé que vai desde a desconfiança de Jesus a respeito dos judeus (Jo 2,23-42). No centro da confrontação entre Jesus e os judeus aparece outra mulher, a que deve ser apedrejada por adultério. No centro de João está a confissão de Marta (Jo 11,27). No final do ministério público de Jesus, está outra mulher, Maria de Betânia. Com um gesto profético, ela unge os pés de Jesus (Jo 12,1-11). O seu gesto foi repetido pelo próprio Jesus na última ceia (Jo 13,1-16). Tem ainda outro grupo de mulheres (Jo 19,25-27). Maria Madalena é a mulher da busca incansável. A credencial para ser apóstolo é ter visto o Senhor ressuscitado e ter sido enviado a anunciá-lo (1 Cor 9,1-2; 15,8-11; Gl 1,11-16). Por isso, desde o começo da tradição apostólica, Maria Madalena recebeu o título de apóstola dos apóstolos. É bom conferir as diferenças entre as conversas de Jesus com Nicodemos e com a samaritana. Esta é mulher, anônima, desprezada socialmente e marginalizada. Ela não procura Jesus diretamente, mas é uma mulher com sede de vida, disposta a ter uma água que não seja a água parada no poço. Sente-se atraída pela proposta de Jesus, crendo, aceitando e reconhecendo nele o Messias. A conversa com a samaritana acontece em plena luz do dia.

Por que falta vinho na festa em CANÁ? (Cf. Jo 2,4) Por causa do vinho muito sangue foi derramado naquela região (cf. Jz 9,12-13; I Sam 8,14; I Rs 21) devido ao aprisionamento da terra nas mãos de poucos. A realidade é de escassez, de carência. A solução aparece a partir da intervenção de uma mulher, pelo trabalho dos servos (pequenos e insignificantes) e a solidariedade de Jesus. É na mão dos serventes que a água se torna vinho. Depois da festa em Caná, cidade da periferia da Palestina, Jesus vai à festa da Páscoa em Jerusalém e lá ele “estraga” a festa ao expulsar os vendilhões do Templo (cf. Jo 2,13-22). Este episódio, segundo os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, é o que precipita a decisão de assassinar Jesus. Mas já segundo Jo 11,45-54, o que precipitou a decisão de sacrificar Jesus foi a ressurreição de Lázaro, Jesus se revelando como fonte de vida. Quem gera vida deve ser assassinado, não pode ser tolerado, concluem os adversários “judeus”. Seis talhas de pedra significam as seis festas judaicas e recordam a Lei em “pedras”.

Na Bíblia casamento significa a realização do íntegro relacionamento entre Deus e o povo, as núpcias definitivas. Desde Oséias (Os 2,21-22). Jeremias também aponta para a esperança de um casamento íntegro (Jr 31,1-4) com esta novidade: será a mulher que seduzirá o marido (Jr 31,17-22). O casamento em Caná quer mostrar que Jesus é o verdadeiro noivo que veio para o tão esperado casamento, trazendo um vinho gostoso e abundante.

Numa Comunidade Eclesial de Base (CEB), alguém comentou: “Jesus transformou muito vinho. Foram 600 litros. Será que beberam tudo?” Uma mulher respondeu repentinamente: “O vinho novo é Jesus com seu projeto e nós continuamos tomando até hoje. É quem sustenta nossas vidas.”

Nas Bodas de Caná, Deus se faz presente no meio do povo e com esse povo celebra a vida, a partilha, suas alegrias e suas necessidades. E foi uma mulher, Maria, que, atenta, sensível e confiante na ação do filho, mostrou a Jesus a necessidade do momento: "Eles não têm mais vinho!" E disse ainda aos que estavam servindo: "Façam o que Ele mandar." 

Como Maria, estamos também atentos à realidade para reconhecer as necessidades do nosso tempo, de tantos irmãos e irmãs? Necessidades que podem ser supridas se colocarmos em ação o projeto de vida nova que Jesus propõe. Foi assim nas Bodas de Caná: Jesus inaugurou um tempo novo, tendo como protagonistas de transformação da realidade os pequenos. E houve abundância... "Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10).

 

08/10/25

 [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI e Ocupações Urbanas; autor de livros e artigos. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       Canal no You Tube: https://www.youtube.com/@freigilvander      –    No instagram: @gilvanderluismoreira – Facebook: Gilvander Moreira III – No https://www.tiktok.com/@frei.gilvander.moreira


terça-feira, 7 de outubro de 2025

ELOY FERREIRA DA SILVA: 41 ANOS DO SEU MARTÍRIO EM DEFESA DOS CAMPONESES POSSEIROS NA LUTA PELA TERRA - Por frei Gilvander

ELOY FERREIRA DA SILVA: 41 ANOS DO SEU MARTÍRIO EM DEFESA DOS CAMPONESES POSSEIROS NA LUTA PELA TERRA - Por frei Gilvander Moreira[1]

Eloy Ferreira da Silva, mártir da luta em defesa dos camponeses posseiros em Minas Gerais.


Dia 16 de dezembro de 2025, celebraremos 41 anos do martírio de Eloy Ferreira da Silva. Necessário se faz resgatarmos quem foi Eloy e continua sendo, agora em vida plena e em nós na luta pela terra, pela reforma agraria e pela demarcação dos territórios dos Povos Indígenas e Tradicionais.

Como dirigente sindical, viveu intensamente o apoio à luta de organização e resistência dos posseiros do município de São Francisco e da região norte e noroeste de Minas Gerais. Eleito Delegado Sindical do Distrito de Serra das Araras, em 1978, ele liderou a resistência dos posseiros contra os invasores e grileiros de terra. Presidente do Sindicato dos Trabalhadores/as Rurais de São Francisco, desde 1981, Eloy Ferreira da Silva era uma das lideranças mais combativas no norte e noroeste de Minas Gerais, conhecido e respeitado em todo o estado.


As ameaças de morte que Eloy sofreu foram muitas. Foram constantes por parte dos grileiros e até do Juiz de Direito da cidade, que várias vezes o ameaçou psicologicamente.

Trabalhador rural não é covarde”, dizia Eloy, que denunciava as pressões, os despejos e as queimas de casas a todas as entidades que podiam dar algum apoio. Combatia toda violência que recaia sobre os camponeses posseiros: “Nossa arma é união, organização e a verdade”, Eloy sempre dizia.

Praxedes Ferreira da Silva, posseiro sobrinho de Eloy Ferreira da Silva, assassinado no município de São Francisco, em 28 de outubro de 1978. Eloy sentia a dor pelo assassinato do seu sobrinho Praxedes. Eloy se indignava diante de toda e qualquer injustiça e violência. Eloy não arredava o pé da luta pelos direitos dos camponeses posseiros. As ameaças seguiam aumentando. Até que dia 16 de dezembro de 1984, Eloy Ferreira da Silva foi barbaramente assassinado e se tornou mais um mártir da luta pela terra e pela Reforma Agrária.


Este assassinato atingiu não só o Eloy, mas também a organização do povo camponês. Atingiu um líder que doou sua vida como Jesus Cristo para que os pobres deixem de ser escravizados pelos poderosos.

Eloy era um homem de fé profunda. A todo momento ligava sua luta à libertação dos hebreus escravizados no Egito, sob o imperialismo dos faraós. “Deus está do nosso lado” era a fé que animava sua luta. Eloy buscava praticar a utopia cantada no Cântico de Maria no Evangelho de Lucas: “Os poderosos serão derrubados dos seus tronos e os pobres serão elevados. Os ricos serão despedidos de mãos vazias e os famintos serão saciados” (Lc 1,52-53).

Eloy Ferreira da Silva foi martirizado aos 54 anos, deixando a esposa e 10 filhos, também ameaçados pelos mesmos grileiros.


O norte e noroeste de Minas Gerais são territórios de ocupação muito antiga. Havia muitas áreas cheias de posseiros morando em terras devolutas. Nas décadas de 1970 e 1980, as grandes empresas e o latifundiário descobriram o norte e noroeste de Minas Gerais, regiões dos maiores latifúndios e dos maiores conflitos de terra do estado de Minas Gerais. A monocultura do eucalipto e a pecuária extensiva de gado cresceram muito sob o poder de fazendeiros e empresários mandando jagunços e capangas pisar em cima dos camponeses posseiros. Isso com a cumplicidade do Estado.

Na Fazenda Vereda Grande, no município de São Francisco, moravam 36 famílias de posseiros muito antigos. O maior latifundiário de Minas Gerais, Antônio Luciano, tentou se apoderar dessas terras, desviando o Rio Urucuia. Os posseiros impediram a entrada dos tratores e exigiram uma posição do Governo de Minas Gerais. O INCRA desapropriou a fazenda do pretenso dono em 1983. Mesmo com a desapropriação, o grileiro Antônio Luciano continuou a pressionar e ameaçar os posseiros.

Ao lado da posse da família de Eloy Ferreira da Silva, começa a fazenda Menino, megalatifúndio de 90 mil hectares, invadida por grileiros que ameaçavam a posse de 220 famílias camponesas posseiras. Junto com os posseiros, os sem-terra da região exigiram do governo que desarmasse os jagunços dos grileiros. Em vez disso, o delegado especial fiscalizava a organização dos posseiros e trabalhadores sem-terra. Os posseiros Januário Emídio dos Santos e José Natal Romão foram assassinados dia 14 de novembro de 1990, na Fazenda Menino, no município de Arinos, próximo de onde Eloy Ferreira tinha sido assassinado seis anos antes.

Exigir que na Fazenda Menino haja PAZ e TRABALHO para os Sem Terra da região é uma porção do legado extraordinário de luta pela terra que ELOY deixou para nós. Graças à luta de Eloy Ferreira da Silva na Fazenda Menino estão assentadas centenas de famílias de camponeses que estavam sem-terra.

A Comissão Pastoral da Terra (CPT/MG) divulgou um pequeno livro sobre a luta de Eloy Ferreira da Silva. ELOY: MORRE UMA VOZ, NASCE UM GRITO, livro lançado pela SEGRAC, de autoria de Luiz Chaves, Luiz Araújo e Jô Amado. Só em 1985 foram assassinados 16 lavradores na luta pela terra em Minas Gerais.

Dona Luzia, viúva de Eloy dizia; “Eloy vinha sempre lutando do lado dos pobres. Até deixou o que era dele mesmo mais afastado para se doar aos pobres. Ele ajudou, ajudou...”. E a batata quente da luta camponesa está em nossa mão. É dever ético continuarmos a luta pela terra, por reforma agrária, pela demarcação dos territórios dos Povos Indígenas de todas as Comunidades Tradicionais. Eloy Ferreira da Silva, presente em nós na luta por direitos, sempre!

É evidente o quanto é sofrida a luta pelo direito à terra, dom de Deus, direito de todos os camponeses e camponesas,  e o quanto é necessário intensificar a regularização fundiária e promover a Reforma Agrária, com desapropriação das terras ociosas, sem função social.

 

No vídeo “Assassinato de Eloy Ferreira da Silva - Tribunal Nacional dos Crimes do Latifúndio” está o relato do crime bárbaro que ceifou a vida de Eloy Ferreira da Silva, no link abaixo.



 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI e Ocupações Urbanas; autor de livros e artigos. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       Canal no You Tube: https://www.youtube.com/@freigilvander      –    No instagram: @gilvanderluismoreira – Facebook: Gilvander Moreira III – No https://www.tiktok.com/@frei.gilvander.moreira

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

COM DEUS, ABRAÃO E LÁZARO; O RICO, NÃO (Lc 16,19-31). Por Frei Gilvander

COM DEUS, ABRAÃO E LÁZARO; O RICO, NÃO (Lc 16,19-31). Por Frei Gilvander Moreira[1]

Reprodução Redes Virtuais.

A parábola do rico e de Lázaro (que com maior propriedade deveria ser chamada “a parábola dos seis irmãos ricos”) está no Evangelho de Lucas na seção que vai de Lc 9,51 a 19,27, que é a viagem de Jesus e seus discípulos/as a Jerusalém, e é exclusiva de Lucas, não está nos Evangelhos de Mateus, Marcos e nem de João. Nessa “viagem” teológico-catequética são apresentados os riscos e as exigências do ser cristão. A viagem de Jesus é, portanto, o caminho das comunidades, cujas opções e riscos são os mesmos do mestre galileu. A parábola é, pois, um convite ao discernimento e ao compromisso com o projeto libertador de Jesus Cristo. É uma provocação. É como um “flash” do final da caminhada. A viagem de Jesus culmina em Jerusalém, onde Jesus será condenado à pena de morte pelos poderes político-econômico-religioso, mas ressuscitará vitorioso no terceiro dia.

        Como agir para possuir essa vida em plenitude? Qual será o fim de quem não aceita viver e conviver partilhando, mas só acumulando bens, insistindo em se enriquecer? A parábola se divide em duas partes: Lc 16,19-22 e Lc 16,23-31.

Em Lc 16,19-22, se mostra que a opção de Deus é pelos pobres. Começa-se descrevendo duas situações contrastantes. De um lado, o rico (= plousios, em grego) que esbanja luxo e requinte nas roupas finas e elegantes (literalmente: púrpura e linho, que eram artigos de luxo importados da Fenícia e do Egito) e no teor de vida (banquetes diários). De outro lado, Lázaro, que tem seu ponto de mendicância junto à porta do rico. A situação do pobre é de total marginalidade: está coberto de feridas (considerado impuro, cf. Jó 2,7-8) e faminto. Tinha necessidade de matar a fome com o que caía da mesa do rico (Lc 16,21), isto é, “não as migalhas que caíam no chão, mas pedaços de pão que se usavam para limpar os pratos e enxugar as mãos e que depois se atiravam para debaixo da mesa. Como Lázaro queria saciar a fome com aquilo!”[2]  Lázaro é considerado um “cão”, impuro como os cães que vêm lamber-lhe as feridas (Lc 16,21).

         Ferido no corpo e na dignidade, brutalmente excluído, ele encontra solidariedade em Deus. De fato, é o único, em todas as parábolas, a ter nome. O nome Lázaro significa “Deus ajuda”. Deus optou por ele.

A morte nivela todos/as, mas o pós-morte é bem diferente: Lázaro é levado pelos anjos para junto de Abraão (Lc 16,22), isto é, torna-se íntimo daquele que foi solidário com o mais fraco (cf. Gn 13,5-12). Na parábola, Abraão representa Deus, pai e mãe de infinito amor, que acolhe os empobrecidos, por amor e porque se comove com o sofrimento deles (Ex 3,7-9).

Em Lc 16,23-31 nos é narrado que os ricos cavam para si um abismo intransponível. A situação se inverteu: o rico está em tormentos e Lázaro junto de Abraão, na glória. Inicia, então, um diálogo entre Abraão e o rico. Este, por três vezes, chama Abraão de pai (Lc 16,24.27.30) e Abraão o reconhece como filho (Lc 16,25). Contudo, a filiação não é suficiente para obter a salvação. Importa, antes, uma prática que espelhe a misericórdia e a solidariedade testemunhada por Abraão. Em Gen 18,1-15 narra-se Abraão sendo hospitaleiro com três homens, acolhendo-os e partilhando com eles o que tinha: acolhida, água e pão.

O rico faz dois pedidos. O primeiro é que Lázaro molhe a ponta do dedo para refrescar a língua do rico (Lc 16,24). Grande ironia: Para quem estava acostumado a grandes banquetes diários, basta agora uma gota d’água! O pedido é recusado porque “há um grande abismo entre nós: por mais que alguém desejasse, não poderia passar daqui para junto de vocês, e nem os daí poderiam atravessar até nós” (Lc 16,26). O único poder que Deus tem é o de amar. Não é Deus que cria o inferno. Ao se escravizar na lógica do enriquecimento, o rico mata em si a capacidade de amar.

Pergunta-se: quem construiu a impossibilidade de comunhão entre o rico e Lázaro, a não ser o próprio rico que o ignorou todos os dias? (cf. Lc 14,13-14: “Quando você der uma festa, convide os pobres, estropiados, coxos, cegos; você será feliz, então, porque eles não têm com que retribuir. Você, porém, será recompensado na ressurreição dos justos”). É oportuno lembrar que esse rico leva à radicalidade o sistema econômico das cidades subserviente aos interesses do império romano escravocrata, no tempo de Jesus. Baseado na concentração e na acumulação de bens, esse sistema gerava uma massa de excluídos: mendigos, prostitutas, desempregados, bandidos que saqueiam para não morrer de fome. Ao passo que o sistema econômico das aldeias, no campo, com origem ancestral de povos e comunidades tradicionais, baseado na solidariedade e na partilha, impedia que alguém caísse na marginalidade e exclusão. A economia de Francisco e Clara proposta por movimento criado pelo papa Francisco está em profunda sintonia com o modelo de economia proposto no Evangelho de Lucas: economia da partilha e da solidariedade, da cooperação e não da competição.

É muito importante perceber um detalhe na resposta de Abraão: ele se dirige ao rico na terceira pessoa do plural: vocês… não poderiam atravessar… Isso denota que o rico não está só. Outros o precederam no projeto de acumular bens gananciosamente. Além da acumulação de riqueza pela exploração da força de trabalho do trabalhador pagando salário injusto, do lucro exorbitante no comércio, o rico também, muitas vezes, herdou riqueza, que passa de pai para filho. Sempre houve ricos cujo caminho jamais cruzou com o dos pobres. Todos tiveram o mesmo destino!

O segundo pedido é que Lázaro seja enviado aos cinco irmãos do rico como testemunho, para que não tenham o mesmo fim (Lc 16,28). Abraão responde dizendo que a Lei e os Profetas são suficientes para convencê-los (Lc 16,29). De fato, a Lei e os Profetas (isto é, todo o Antigo Testamento) exigiam igualdade e fraternidade entre todos/as. E Lázaro não era certamente o único pobre a aguçar-lhes a consciência (cf. Dt 15,11: “Abra a mão em favor do seu irmão, do seu indigente e do seu pobre na terra onde você mora”. Portanto, os cinco irmãos não têm desculpas.

O rico não se convence. Crê sejam necessários sinais extraordinários, como a ressurreição de um morto, para que os irmãos se convertam (Lc 16,30). A resposta de Abraão é taxativa: a ressurreição de um morto não será capaz de sensibilizar os ricos, se não forem sensíveis aos apelos de Moisés e dos Profetas. A afirmação insinua que a própria ressurreição de Jesus será para eles inútil, caso não abram a mão e o coração ao necessitado. É bom recordar que parte dos fariseus acreditavam na ressurreição, mas os saduceus não acreditavam na ressurreição. Por isso se empanturravam acumulando bens e poder, gozando vida no luxo à custa da exploração do povo. A Teologia da Prosperidade e do Domínio contam essa parábola ao inverso. Diz que havia o rico e o pobre. E Deus abençoava e fazia festa com o rico e desconhecia e ignorava Lázaro. Dizer isso não é fazer teologia, mas reproduzir ideologia que mascara a realidade de exploração envolta nas relações sociais entre ricos e pobres. Que Deus seria esse? Um ídolo. De que lado a Igreja e todos nós devemos nos colocar? Obviamente, ao lado de quem defende a construção de uma sociedade com justiça econômica que viabilize condições de vida digna para todas as pessoas e para todos os seres vivos, sem relações de opressão e exploração.

Estarão, portanto, os hodiernos irmãos do rico irremediavelmente perdidos? Eis, então, que voltamos ao tema da viagem de Jesus a Jerusalém, que nos diz que é necessário discernimento. De fato, permanecendo insensíveis, como os gananciosos fariseus, “amigos do dinheiro” (cf. Lc 16,14), seu caminho jamais se identificará com o de Jesus, e não participarão do Reino divino. Mas se assumirem as opções de Jesus, partilhando seus bens, como fez o administrador que se tornou justo, o da parábola de Lc 16,1-13, possuirão a vida (cf. o ideal da comunidade cristã em At 2,42-47: a partilha de bens leva à vida para todos/as; At 5,1-11: ambição e acúmulo geram morte). É preciso discernir e se posicionar no acolhimento e defesa dos empobrecidos, já, antes que seja tarde.

Atualizando esta parábola para nossa realidade atual, observamos que o sistema capitalista induz, seduz e atrai como imã as pessoas para absolutizarem a propriedade privada capitalista e viver correndo atrás de acumular riqueza e poder, o que exige explorar a classe trabalhadora e camponesa pagando salários injustos, comercializando com preços exorbitantes, sonegando impostos e naturalizando o direito de herança, tudo isso como mecanismos que reproduzem as brutais desigualdades socioeconômica levando à concentração de riqueza e poder em 1% da população e deixando 99% cada vez mais injustiçado e excluído. O rico da parábola integra esta lógica que desumaniza as pessoas e cria um abismo intransponível entre os pobres e ricos. A parábola de Lc 16,19-31 diz nas entrelinhas que acumulação de bens não tem a bênção de Deus, é algo totalmente contraditório com o projeto de Evangelho de Jesus Cristo. Por isso com Deus estão Abraão e Lázaro; o rico, não.

É preciso abrir os olhos para ver a realidade que nos cerca, e os nossos ouvidos para ouvir o clamor de tantos "Lázaros" feridos, sofredores, excluídos, injustiçados, humilhados, superexplorados! É isto que Deus, mistério de infinito amor, espera de nós, como exigência da fé: a opção pelos pobres, a luta pela vida com dignidade para todas as pessoas, assim como fez Jesus. 

24/09/25.

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI e Ocupações Urbanas; autor de livros e artigos. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       Canal no you tube: https://www.youtube.com/@freigilvander      –    No instagram: @gilvanderluismoreira - Facebook: Gilvander Moreira III – No https://www.tiktok.com/@frei.gilvander.moreira

[2] J. Jeremias, As parábolas de Jesus, Paulus, São Paulo, 5ª ed., 1986, p. 185.

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

BASES NECESSÁRIAS PARA SE DISCUTIR ANISTIA - Por Gilvander Moreira e Marcelo Barros

BASES NECESSÁRIAS PARA SE DISCUTIR ANISTIA - Por Gilvander Moreira[1] e Marcelo Barros

Reprodução Redes Virtuais

Enquanto no Supremo Tribunal Federal (STF) segue o julgamento do “núcleo crucial” da trama golpista que culminou na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em Brasília, dia 8 de janeiro de 2023, com oito pessoas, entre elas, Jair Bolsonaro e generais no banco dos réus, nessa semana, de 8 a 14 de setembro de 2025, muita gente no Brasil debate sobre anistia. As pessoas que defendem o ex-presidente golpista e seus aliados pedem anistia com argumentos inimagináveis. Todas as pessoas e grupos que defendem a Constituição Cidadã de 1988 e a Democracia dizem: “Não! Anistia, nunca mais!”



Há quem acuse de revanchismo e de vingança quem se posiciona contra a anistia, mas absolutamente não se trata disso. Não anistiar quem atentou contra o Estado Democrático é acima de tudo uma questão de Justiça e da possibilidade do povo brasileiro viver um caminho novo e soberano. Quem pisou na Constituição para tentar dar mais um golpe de Estado, não pode fazer a mesma coisa e passar por cima do artigo 5º da Constituição Federal que prescreve claramente que não pode haver anistia para quem atenta contra as instituições democráticas. “Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” (CF/1988, Art. 5, inciso XLIV). O brutal processo de tentativa de golpe está recheado de provas inquestionáveis.

As organizações sociais e os movimentos populares que dizem Não à anistia para golpistas são favoráveis à Justiça restaurativa e antiprisional. Sonhamos com um mundo sem prisões, com pessoas livres, com direitos humanos respeitados, com condições objetivas que viabilizem o respeito à dignidade humana, com relações humanas e sociais justas, não escravocratas.



As pastorais sociais das Igrejas cristãs trabalham a partir da proposta de Jesus de Nazaré que descreveu a sua missão ao afirmar que o Espírito Divino desceu sobre ele e o enviou para libertar todas as pessoas cativas (Lc 4,14-19), não apenas as inocentes. Todas. No entanto, isso não pode se realizar magicamente e de forma inconsequente. Assumimos como proposta de nossa ação coletiva a justiça não violenta e nos propomos amar até aos inimigos, mas não confundindo-os com os amigos. Isso seria contraditoriamente lhes dar força e possibilidade para continuarem a fazer o mal ao nosso povo. Defender essa irresponsabilidade nada teria de evangélico ou espiritual. No evangelho, Jesus nos manda ser simples como pombas e espertos como serpentes (Mt 10,16). O pedagogo da libertação Paulo Freire diz que devemos amar todas as pessoas, mas não do mesmo jeito. Devemos amar as pessoas oprimidas e exploradas nos colocando ao lado delas para solidariamente a partir delas empreender lutas pelos seus direitos e devemos amar os inimigos retirando das mãos deles as armas da opressão.

Ao longo da história brasileira, toda vez que golpistas foram anistiados, logo depois, os anistiados tentaram novamente golpes e implantaram ditaduras sanguinárias. Anistia como amnésia, feita no Brasil várias vezes tem pavimentado o terreno para a repetição de golpes que não podemos mais tolerar. Frei Betto nos recorda: “A anistia de 1979 - aberração jurídica que tornou imunes e impunes os carrascos da ditadura -, foi o ovo da serpente que, chocado em 8 de janeiro de 2023, gorou,” graças à luta aguerrida de autoridades que acreditam na democracia e agiram em tempo de sufocar a tentativa brutal antes que fosse consumado o golpe.



O Brasil ainda não julgou criminalmente torturadores do período ditatorial. Argentina, Chile, Uruguai e Peru julgaram, seguindo as justas reivindicações das Mães da Praça de Maio e dos Movimentos Sociais que sabem que a paz verdadeira só se constrói com justiça. Que junto com o STF e todas as pessoas democráticas tenhamos a coragem e a sabedoria de fortalecer a democracia e jamais deixar que algozes a aniquilem!

Digamos que fosse possível contornar a impossibilidade constitucional. Imaginemos, por um instante, que o Congresso Nacional, com a chancela do Presidente da República, de modo equivocado e ambíguo, resolvesse conceder anistia aos réus de tentativa de golpe de Estado. De todo modo, seria preciso recordar que anistia supõe perdão de uma culpa assumida. Não tem sentido alguém afirmar: eu sou inocente e não fiz nada de errado, mas peço que me perdoe. Perdoar de que se você não assume que errou e cometeu um crime passível de condenação? Só tem sentido falar de anistia para quem se reconhece culpado, confessa sua culpa e demonstra postura de mudança que exclua reprodução da violência antes praticada. Se os culpados pela tentativa de golpe de Estado vierem a público para confessar que são realmente culpados, descreverem o que fizeram contra a Democracia, assumirem que desdenharam da Constituição desde que se sentiram donos do poder e fosse possível acreditar que estariam sendo sinceros, essa discussão sobre anistia teria ao menos uma base para ser discutida.

Como desfecho de um longo processo de tentativa de golpe, o que ocorreu no dia 8 de janeiro de 2023 foi apenas uma demonstração na mesma linha de quem nunca perdeu ocasião para elogiar o Golpe que instaurou a ditadura no Brasil a partir de 31 de março de 1964 e enalteceu figuras de torturadores que para eles são heróis. A relação dessas pessoas com a extrema-direita internacional e com o facínora que se julga imperador do mundo mostra que não mudaram de posição, nem estão arrependidos e dispostos a mudar de projeto e de forma de agir. Insistem em defender privilégios de alguns empresários do grande capital e religiosos mercenários, em conluio com criminosos reincidentes que, por estarem enrolados em vários crimes, terão que prestar contas ao STF. Querem o pretenso direito de continuar cometendo crimes e não serem responsabilizados. Além disso, não estão nem aí para os direitos dos povos e da natureza. Recusam a votar projetos de leis que beneficiariam o povo, tais como isenção de imposto de renda para quem ganha até cinco salários-mínimos, fim da jornada 6 X 1, ou seja, trabalhar seis dias e folgar apenas 1. Recusam a taxar os super-ricos e são os primeiros a flexibilizarem as leis ambientais para deixar os tratores seguirem devastando a Amazônia, o Cerrado, a Mata Atlântica, a Caatinga, o Pantanal e os Pampas, biomas imprescindíveis para garantir condições de vida para os povos e para toda a biodiversidade.

Se o ex-presidente e seus auxiliares mais diretos não aparecem em cadeia nacional de televisão e não assumem que cometeram um crime contra as instituições oficiais do país e contra o povo brasileiro e assim mesmo recebem anistia, as pessoas que aprovarem essa anistia injusta estariam apenas chancelando a possibilidade deles armarem novas tentativas de golpe com a possível derrota do seu grupo nas eleições de 2026.

A proposta cristã de perdão incondicional não pode fazer de conta que a justiça não existe. Se operários são explorados, se pequenos lavradores sofrem perseguição, não basta dizer ao opressor que o perdoa. É necessário fazer tudo o que for necessário para que ele não continue oprimindo. No tempo do nazismo, Dietrich Bonhoeffer afirmava: “Quem é cristão não pode apenas fugir do mal. É preciso combatê-lo”.  Que haja justiça! "Sem anistia para golpistas, fascistas!" 


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI e Ocupações Urbanas; autor de livros e artigos. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       Canal no you tube: https://www.youtube.com/@freigilvander      –    No instagram: @gilvanderluismoreira - Facebook: Gilvander Moreira III – No https://www.tiktok.com/@frei.gilvander.moreira

 

terça-feira, 26 de agosto de 2025

PAULO NA CARTA AOS ROMANOS: VIVER NO AMOR MÚTUO (Rm 13,8-14)? Por Frei Gilvander

PAULO NA CARTA AOS ROMANOS: VIVER NO AMOR MÚTUO (Rm 13,8-14)? Por Frei Gilvander Moreira1


Capa do livro do TEXTO-BASE do CEBI-MG sobre Carta aos Romanos para mês da Bíblia de 2025

A Carta do apóstolo Paulo aos Romanos foi escolhida para ser assunto de reflexão nas Comunidades Cristãs em setembro, mês da Bíblia, de 2025. Organizada em 16 capítulos, inserido no Novo Testamento Bíblico entre os livros de Atos dos Apóstolos e I Coríntios, a Carta aos Romanos, inspirado texto bíblico, é endereçada, provavelmente, a Comunidades Cristãs da periferia de Roma, a capital do império, e, por extensão, também endereçada a nós das comunidades cristãs atuais. Como 4º pequeno texto sobre a Carta aos Romanos, aqui nos dedicamos a analisar Rm 13,8-14.

 O amor ao próximo, amor mútuo, garante o cumprimento de toda a lei” (Rm 13,8), alega o apóstolo Paulo. Ou seja, nenhum legalismo irá nos salvar. Não basta construir leis e exigir o respeito a elas. É preciso adesão pessoal ao projeto de Jesus Cristo, prática de amor mútuo, o que inclui respeito à dignidade humana de toda e qualquer pessoa, sem exceção. 

Em profunda sintonia com o Evangelho de Jesus Cristo, Paulo comenta que os mandamentos que se referem à relação com o próximo – “não matar, não roubar, não cobiçar ...” estão sintetizados em “amar o próximo como si mesmo” (Rm 13,9). “Quem ama não pratica o mal contra o próximo” (Rm 13,10). Paulo está dando dicas de como fortalecer as relações de fraternidade nas comunidades, o que lhes dará mais força para enfrentar as autoridades opressoras. Em outras palavras, Paulo alerta a todos(as) de que o caminho para frear a violência e as injustiças das autoridades escravocratas e tirânicas passa, necessariamente, pelo reconhecimento e fortalecimento de “autoridades constituídas” pelo povo, autoridades democráticas e éticas.  

Paulo sente a necessidade de construir pessoas novas que coloquem em prática a vivência do amor ao próximo e o cultivo de relações humanas e sociais que sejam “alavancas” para a superação das violências e das injustiças sofridas pelas comunidades, sob as agruras do império romano escravocrata. Muitas vezes, quando o marasmo social é grande e a desesperança se instala ofuscando a utopia e a esperança de que um projeto justo e bom possa ser construído, é preciso avivar a esperança e “chacoalhar” as pessoas, injetando ânimo e avivando a utopia de que a libertação está próxima. Paulo faz isto com maestria. Diz ele: “Acordem! Está chegando a nossa salvação!” (Rm 13,11). Há momentos em que não devemos buscar luzes apenas no fim do túnel, mas dentro do próprio túnel.  

Nova aurora está nascendo. Deixemos as obras das trevas e revistamo-nos de obras da luz!” (Rm 13,12), reflete Paulo, carinhosamente, tentando levantar o ânimo das comunidades. Paulo é tão pedagógico que ele também se inclui e exorta na 1ª pessoa do plural (“Deixemos e revistamo-nos...!”) e não se coloca como superior (e, por isso,), logo, não diz: Deixem... Revistam...! Provavelmente, no meio do povo, muitos se referiam às ações brutais do império romano escravocrata como “obras das trevas”. E para quem se apaixonou por Jesus Cristo e sua mensagem, no Ressuscitado experimentavam as “obras de luz”, caminho de vida.

Paulo exorta, amorosamente, às pessoas das comunidades cristãs: “Vivamos eticamente como em pleno dia” (Rm 13,13). Libertemo-nos dos vícios que as autoridades imperiais incutem no povo: “orgias, bebedeira, prostituição, libertinagem, brigas e ciúmes!” (Rm 13,13). Paulo reflete com as pessoas das comunidades que o “estilhaçamento” das pessoas é provocado, propositalmente, pelas autoridades imperiais, pois quanto mais desunido o povo, quanto mais drogado, mais imoral e sem ética, mais as autoridades imperiais terão motivos para justificar medidas repressivas, que são impostas como se fossem medidas salvadoras. Quanto mais violência social, mais as autoridades políticas, de forma eleitoreira, defendem leis e medidas repressoras, o que não resolvem de forma justa a violência social, mas angariam um “caminhão” de votos para políticos profissionais. 

Em linguagem em tom apocalíptico, Paulo exorta às pessoas das comunidades que ele deseja, ardentemente, visitar em breve: “Vistam-se do Senhor Jesus Cristo e não sigam os desejos dos instintos egoístas!” (Rm 13,14). Em outras palavras, assimilem em vocês a identidade de Jesus Cristo, o que Paulo já revelou na Carta aos Gálatas: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gal 2,20). Paulo busca ajudar as comunidades cristãs a perceber que ‘Senhor” (Kyrios) é Jesus Cristo e não o imperador, idolatricamente, divinizado. E Jesus é o Cristo, o Salvador. O imperador não é Senhor e nem Salvador. Eis aqui mensagem revolucionária e subversiva do apóstolo Paulo que, segundo a Tradição, foi martirizado em Roma, a mando de autoridades imperiais.  

Paulo propõe subversão na relação com o Império Romano. Concluímos que, em Rm 13,1-14, o apóstolo Paulo não exorta a uma ingênua subserviência diante de toda e qualquer autoridade. Respeitar, sim, apenas às “autoridades constituídas”, legítimas, as que agem em sintonia com o projeto de Deus. 

Enfrentar o império era necessário para quem aderia ao evangelho de Jesus Cristo, porém, para enfrentar o império, não basta enfrentar as autoridades, denunciando suas injustiças e arbitrariedades, envolve também se desvencilhar do estilo de vida imperial, da religião imperial, das instituições imperiais, da ideologia imperial, enfim, de tudo o que sustenta o sistema imperial. Em linguagem de hoje, podemos dizer que não basta enfrentar os exploradores exigindo justiça, mas é necessário ser pessoa justa, ética e solidária que viva, na prática, o amor ao próximo como Jesus amou e viveu. 

Paulo não condena as boas obras que devem ser praticadas como fruto da fé em Jesus Cristo. Ele denuncia, apenas, o apego às obras farisaicas e legalistas como se fossem tábuas de salvação. Vangloriar-se diante de “boas obras” praticadas pode ser tão antievangélico quanto o aprisionamento em preceitos legais, doutrinários e litúrgicos. Paulo orienta que a fé em Jesus Cristo Ressuscitado implica em amar como Jesus amava, sentir como Jesus sentia, conviver como Jesus convivia e lutar pela fraternidade como Jesus lutava.  

26/08/25

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – VEM AÍ O MÊS DA BÍBLIA, EM 2025, COM A CARTA AOS ROMANOS. - Por frei Gilvander Moreira - Vídeo 1

https://www.youtube.com/watch?v=LU7E6zD59zA

2 - ELSA TAMEZ: CARTA AOS ROMANOS É FASCINANTE, MAS DIFÍCIL DE SER COMPREENDIDA. URGE HISTORICIZAR PAULO

https://www.youtube.com/watch?v=AsbFBunrz5s

3 - CARTA AOS ROMANOS: LEITURA ECOFEMINISTA de Rm 8. IVONI RICHTER REIMER-EQUIPE DE PUBLICAÇÕES/ CEBI-MG

https://www.youtube.com/watch?v=cMA5VG4SiTk

4 - CARTA AOS ROMANOS: CONTEXTO, CHAVES DE LEITURA, LIBERTAR PAULO. Por Prof. Dr. PEDRO LIMA VASCONCELOS

https://www.youtube.com/watch?v=Ll7QeihPLHc

5 - CARTA AOS ROMANOS - parte 1

https://www.youtube.com/watch?v=lgk-RQBgjZo

6 - Reflexão sobre a Carta de São Paulo aos Romanos - Parte 1

https://www.youtube.com/watch?v=uwEQticYUGI

7 - Mês da Bíblia 2025 - Carta aos Romanos

https://www.youtube.com/watch?v=jER9qOBGgs0

8 - Carta de Paulo aos Romanos 01/06

https://www.youtube.com/watch?v=ZoavOOHyqdo

9 - Carta de Paulo aos Romanos 02/06

https://www.youtube.com/watch?v=LJEbJwe7P8w

10 - Carta de Paulo aos Romanos 03/06

https://www.youtube.com/watch?v=yP6iOaLVePc

11 - Carta de Paulo aos Romanos 04/06

https://www.youtube.com/watch?v=EYssnHh0YKE

12 - Carta de Paulo aos Romanos 05/06

https://www.youtube.com/watch?v=-5ajXfb-mco

13 - Carta de Paulo aos Romanos 06/06

https://www.youtube.com/watch?v=Z-m1zDx0iJc