COM DEUS, ABRAÃO E LÁZARO; O RICO, NÃO (Lc 16,19-31). Por Frei Gilvander Moreira[1]
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parábola do rico e de Lázaro (que com maior propriedade deveria ser chamada “a
parábola dos seis irmãos ricos”) está no Evangelho de Lucas na seção que vai de
Lc 9,51 a 19,27, que é a viagem de Jesus e seus discípulos/as a Jerusalém, e é exclusiva
de Lucas, não está nos Evangelhos de Mateus, Marcos e nem de João. Nessa
“viagem” teológico-catequética são apresentados os riscos e as exigências do
ser cristão. A viagem de Jesus é, portanto, o caminho das comunidades, cujas
opções e riscos são os mesmos do mestre galileu. A parábola é, pois, um convite
ao discernimento e ao compromisso com o projeto libertador de Jesus Cristo. É
uma provocação. É como um “flash” do final da caminhada. A viagem de Jesus
culmina em Jerusalém, onde Jesus será condenado à pena de morte pelos poderes
político-econômico-religioso, mas ressuscitará vitorioso no terceiro dia.
Como agir para possuir essa vida em
plenitude? Qual será o fim de quem não aceita viver e conviver partilhando, mas
só acumulando bens, insistindo em se enriquecer? A parábola se divide em duas
partes: Lc 16,19-22 e Lc 16,23-31.
Em Lc
16,19-22, se mostra que a opção de Deus
é pelos pobres. Começa-se descrevendo duas situações
contrastantes. De um lado, o rico (= plousios, em grego) que esbanja
luxo e requinte nas roupas finas e elegantes (literalmente: púrpura e linho,
que eram artigos de luxo importados da Fenícia e do Egito) e no teor de vida
(banquetes diários). De outro lado, Lázaro, que tem seu ponto de mendicância
junto à porta do rico. A situação do pobre é de total marginalidade: está
coberto de feridas (considerado impuro, cf. Jó 2,7-8) e faminto. Tinha
necessidade de matar a fome com o que caía da mesa do rico (Lc 16,21), isto é, “não as migalhas que caíam no chão, mas
pedaços de pão que se usavam para limpar os pratos e enxugar as mãos e que
depois se atiravam para debaixo da mesa. Como Lázaro queria saciar a fome com
aquilo!”[2] Lázaro é considerado um “cão”, impuro como os
cães que vêm lamber-lhe as feridas (Lc 16,21).
Ferido no corpo e na dignidade, brutalmente
excluído, ele encontra solidariedade em Deus. De fato, é o único, em todas as
parábolas, a ter nome. O nome Lázaro significa “Deus ajuda”. Deus optou por
ele.
A morte
nivela todos/as, mas o pós-morte é bem diferente: Lázaro é levado pelos anjos para
junto de Abraão (Lc 16,22), isto é, torna-se íntimo daquele que foi solidário
com o mais fraco (cf. Gn 13,5-12). Na parábola, Abraão representa Deus, pai e
mãe de infinito amor, que acolhe os empobrecidos, por amor e porque se comove
com o sofrimento deles (Ex 3,7-9).
Em Lc 16,23-31 nos é narrado que os ricos cavam para si
um abismo intransponível. A situação se inverteu: o rico está em
tormentos e Lázaro junto de Abraão, na glória. Inicia, então, um diálogo entre
Abraão e o rico. Este, por três vezes, chama Abraão de pai (Lc 16,24.27.30) e Abraão
o reconhece como filho (Lc 16,25). Contudo, a filiação não é suficiente para
obter a salvação. Importa, antes, uma prática que espelhe a misericórdia e a
solidariedade testemunhada por Abraão. Em Gen 18,1-15 narra-se Abraão sendo
hospitaleiro com três homens, acolhendo-os e partilhando com eles o que tinha:
acolhida, água e pão.
O rico
faz dois pedidos. O primeiro é que Lázaro molhe a ponta do dedo para refrescar
a língua do rico (Lc 16,24). Grande ironia: Para quem estava acostumado a
grandes banquetes diários, basta agora uma gota d’água! O pedido é recusado
porque “há um grande abismo entre nós:
por mais que alguém desejasse, não poderia passar daqui para junto de vocês, e
nem os daí poderiam atravessar até nós” (Lc 16,26). O único poder que Deus
tem é o de amar. Não é Deus que cria o inferno. Ao se escravizar na lógica do
enriquecimento, o rico mata em si a capacidade de amar.
Pergunta-se:
quem construiu a impossibilidade de comunhão entre o rico e Lázaro, a não ser o
próprio rico que o ignorou todos os dias? (cf. Lc 14,13-14: “Quando você der uma festa, convide os
pobres, estropiados, coxos, cegos; você será feliz, então, porque eles não têm
com que retribuir. Você, porém, será recompensado na ressurreição dos justos”).
É oportuno lembrar que esse rico leva à radicalidade o sistema econômico das
cidades subserviente aos interesses do império romano escravocrata, no tempo de
Jesus. Baseado na concentração e na acumulação de bens, esse sistema gerava uma
massa de excluídos: mendigos, prostitutas, desempregados, bandidos que saqueiam
para não morrer de fome. Ao passo que o sistema econômico das aldeias, no
campo, com origem ancestral de povos e comunidades tradicionais, baseado na
solidariedade e na partilha, impedia que alguém caísse na marginalidade e
exclusão. A economia de Francisco e Clara proposta por movimento criado pelo
papa Francisco está em profunda sintonia com o modelo de economia proposto no
Evangelho de Lucas: economia da partilha e da solidariedade, da cooperação e
não da competição.
É muito
importante perceber um detalhe na resposta de Abraão: ele se dirige ao rico na
terceira pessoa do plural: vocês… não poderiam atravessar… Isso denota que o
rico não está só. Outros o precederam no projeto de acumular bens gananciosamente.
Além da acumulação de riqueza pela exploração da força de trabalho do
trabalhador pagando salário injusto, do lucro exorbitante no comércio, o rico
também, muitas vezes, herdou riqueza, que passa de pai para filho. Sempre houve
ricos cujo caminho jamais cruzou com o dos pobres. Todos tiveram o mesmo destino!
O segundo
pedido é que Lázaro seja enviado aos cinco irmãos do rico como testemunho, para
que não tenham o mesmo fim (Lc 16,28). Abraão responde dizendo que a Lei e os
Profetas são suficientes para convencê-los (Lc 16,29). De fato, a Lei e os
Profetas (isto é, todo o Antigo Testamento) exigiam igualdade e fraternidade
entre todos/as. E Lázaro não era certamente o único pobre a aguçar-lhes a
consciência (cf. Dt 15,11: “Abra a mão em
favor do seu irmão, do seu indigente e do seu pobre na terra onde você mora”.
Portanto, os cinco irmãos não têm desculpas.
O rico
não se convence. Crê sejam necessários sinais extraordinários, como a
ressurreição de um morto, para que os irmãos se convertam (Lc 16,30). A
resposta de Abraão é taxativa: a ressurreição de um morto não será capaz de
sensibilizar os ricos, se não forem sensíveis aos apelos de Moisés e dos
Profetas. A afirmação insinua que a própria ressurreição de Jesus será para
eles inútil, caso não abram a mão e o coração ao necessitado. É bom recordar
que parte dos fariseus acreditavam na ressurreição, mas os saduceus não
acreditavam na ressurreição. Por isso se empanturravam acumulando bens e poder,
gozando vida no luxo à custa da exploração do povo. A Teologia da
Prosperidade e do Domínio contam essa parábola ao inverso. Diz que havia o rico
e o pobre. E Deus abençoava e fazia festa com o rico e desconhecia e ignorava
Lázaro. Dizer isso não é fazer teologia, mas reproduzir ideologia que mascara a
realidade de exploração envolta nas relações sociais entre ricos e pobres. Que
Deus seria esse? Um ídolo. De que lado a Igreja e todos nós devemos nos
colocar? Obviamente, ao lado de quem defende a construção de uma sociedade com
justiça econômica que viabilize condições de vida digna para todas as pessoas e
para todos os seres vivos, sem relações de opressão e exploração.
Estarão,
portanto, os hodiernos irmãos do rico irremediavelmente perdidos? Eis, então,
que voltamos ao tema da viagem de Jesus a Jerusalém, que nos diz que é
necessário discernimento. De fato, permanecendo insensíveis, como os
gananciosos fariseus, “amigos do dinheiro” (cf. Lc 16,14), seu caminho jamais
se identificará com o de Jesus, e não participarão do Reino divino. Mas se
assumirem as opções de Jesus, partilhando seus bens, como fez o administrador que
se tornou justo, o da parábola de Lc 16,1-13, possuirão a vida (cf. o ideal da
comunidade cristã em At 2,42-47: a partilha de bens leva à vida para todos/as;
At 5,1-11: ambição e acúmulo geram morte). É preciso discernir e se posicionar no
acolhimento e defesa dos empobrecidos, já, antes que seja tarde.
Atualizando
esta parábola para nossa realidade atual, observamos que o sistema capitalista
induz, seduz e atrai como imã as pessoas para absolutizarem a propriedade
privada capitalista e viver correndo atrás de acumular riqueza e poder, o que
exige explorar a classe trabalhadora e camponesa pagando salários injustos,
comercializando com preços exorbitantes, sonegando impostos e naturalizando o
direito de herança, tudo isso como mecanismos que reproduzem as brutais
desigualdades socioeconômica levando à concentração de riqueza e poder em 1% da
população e deixando 99% cada vez mais injustiçado e excluído. O rico da
parábola integra esta lógica que desumaniza as pessoas e cria um abismo
intransponível entre os pobres e ricos. A parábola de Lc 16,19-31 diz nas entrelinhas
que acumulação de bens não tem a bênção de Deus, é algo totalmente
contraditório com o projeto de Evangelho de Jesus Cristo. Por isso com Deus
estão Abraão e Lázaro; o rico, não.
É
preciso abrir os olhos para ver a realidade que nos cerca, e os nossos ouvidos
para ouvir o clamor de tantos "Lázaros" feridos, sofredores,
excluídos, injustiçados, humilhados, superexplorados! É isto que Deus, mistério
de infinito amor, espera de nós, como exigência da fé: a opção pelos
pobres, a luta pela vida com dignidade para todas as pessoas, assim como fez
Jesus.
24/09/25.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação
pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em
Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto
Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI e Ocupações Urbanas; autor de
livros e artigos. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– Canal no you tube: https://www.youtube.com/@freigilvander – No instagram:
@gilvanderluismoreira - Facebook: Gilvander Moreira III – No https://www.tiktok.com/@frei.gilvander.moreira
[2] J.
Jeremias, As parábolas de Jesus, Paulus, São Paulo, 5ª ed., 1986, p.
185.
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