A Perseguição A CARLOS MARIGHELLA continua: agora à
sua memória
Por Alenice Baeta[1]
“Não tive tempo de ter medo” (Carlos Marighella)
Legenda: Reprodução parcial da Carteira de Carlos Marighella no Comitê Nacional do Partido Comunista do Brasil (PCB). Fonte: Centro de Memória do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia. |
Nascido em 1911, em Salvador, BA, Carlos Marighella herdou do pai e da
mãe a combatividade - um imigrante italiano operário metalúrgico e uma negra,
filha de escravos trazidos do Sudão, os haussás; casal conhecido por participar
de sublevações nas ladeiras do Pelourinho em Salvador contra a escravidão e
exploração dos trabalhadores. Muito afeito aos estudos e leituras, Marighella entrou para a faculdade aos 18 anos no curso de
Engenharia Civil, na Escola Politécnica da Bahia. Foi preso, pela
primeira vez, aos 23 anos por publicar um poema que fazia críticas a um interventor
opressor na Bahia, indicado por Getúlio Vargas durante o denominado “Governo Provisório” (MAGALHÃES, 2012). Escrevia ainda versos libertários, líricos e satíricos, sob forte influência dos
conterrâneos Gregório de Matos (considerado um dos melhores poetas barrocos do
período colonial brasileiro) e Castro Alves (poeta humanista e abolicionista
dos oitocentos).
Camarada de Jorge Amado, o também professor, escritor e poeta Carlos Marighella
foi líder e militante do Partido Comunista do Brasil (PCB), tendo sido
encarcerado e torturado ao longo de seis anos durante a ditadura imposta pelo Estado
Novo (1937- 1945).
“Não ficarei tão só no campo da arte,
e anônimo e firme sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio a própria sorte”.
Trecho do poema “Liberdade” de Carlos Marighella.
São Paulo, Presídio Especial, em 1939.
Após ser anistiado, Carlos Marighella foi eleito deputado federal,
devido ao seu prestígio e alta capacidade de organização popular e
sensibilidade social, juntamente com Luiz Carlos Prestes e outros militantes do
seu partido. Apesar de minoritária, a bancada comunista fazia duras intervenções
e críticas à elaboração da Constituição de 1946, sendo que um dos principais
pontos de atrito no parlamento predominantemente conservador era a necessidade
da reforma agrária, a supressão da censura e o fortalecimento dos direitos
trabalhistas no campo e na cidade. A reação política autoritária no bojo do
governo do general Eurico Gaspar Dutra culminou com a cassação sumária do PCB em maio de 1947, bem como dos mandatos de seus
parlamentares comunistas ocorrida em janeiro de 1948, perseguição aos
sindicatos, movimentos organizados e aos militantes de oposição.
O inquieto e
aguerrido Carlos Marighella aceitou o convite do Comitê Central do Partido
Comunista e viajou para a China com o intuito de estudar e acompanhar de perto
a situação política daquele país, onde ficou por dois anos. Retornou ao Brasil,
assumindo várias funções na direção de seu partido, na clandestinidade, quando produziu
inúmeros manuais, textos e poemas que entraram para a história documental da
organização dos movimentos de resistência popular e de luta de classes de sua
época, boa parte divulgados nos idiomas espanhol, francês e inglês, mas que no
Brasil só foram publicados oficialmente após dez anos da sua morte, tais como:
“Se fores preso, camarada”; “Por que resisti à prisão”; “Ecletismo e Marxismo”;
“Chamamento ao Povo Brasileiro”. “A
Crise Brasileira”, escrito em 1966 (portanto, após o golpe militar/civil/empresarial
de 1964), tem sido considerada a melhor produção teórica de Carlos Marighella, onde
tece contundente crítica à política de alianças com a burguesia por parte da
esquerda, reforçando a importância do fortalecimento e da autonomia dos
movimentos operários e camponeses em busca de um governo popular revolucionário
(MARIGHELLA, 1979).
Enfrentando conflitos e divergências estruturais em seu
partido, Marighella descumpriu as ordens do PCB e foi participar em 1967 em
Cuba da “Primeira Conferência da Organização Latino Americana de
Solidariedade (OLAS)”, motivo da sua expulsão do partido. Fora do PCB Carlos Marighella, ainda em Havana (dias
após a morte do líder revolucionário Che Guevara na Bolívia), escreve o
opúsculo: “Algumas Questões Sobre a Guerrilha no Brasil”, publicado no ano
seguinte pelo Jornal do Brasil, chamando a atenção dos repressores para a sua
produção intelectual e revolucionária posição política. No Brasil, Carlos Marighella e Câmara Ferreira anunciaram a criação de uma organização de
esquerda que ficou conhecida como Aliança Libertadora Nacional (ALN), que propunha
a utilização de armas para resistir à ditadura e à tirania, dando início às
primeiras operações de guerrilhas urbanas.
“De algum lugar do
Brasil me dirijo à opinião pública,
especialmente aos operários, agricultores pobres,
estudantes, professores, jornalistas e intelectuais, padres e bispos, aos
jovens e à mulher brasileira”.
Trecho do texto: “Chamamento ao Povo Brasileiro”, de CarlosMarighella,
em 1968.
Em 1969 Marighella escreve o “Manual
do Guerrilheiro Urbano” (MARIGHELLA, 2003) visando estabelecer diretrizes e
táticas de resistência do movimento popular armado em contexto urbano frente à
ditadura militar/civil/empresarial e às perseguições de suas lideranças. Considerado o “inimigo
número um” e “terrorista” pelo regime ditatorial de 1964, Marighella foi implacavelmente
perseguido pelo serviço de inteligência, provavelmente com a ajuda da CIA (Central Intelligence Agency, dos Estados
Unidos), sendo brutalmente assassinado em uma emboscada composta por agentes fortemente armados do Departamento de Ordem
Política e Social (DOPS), na Alameda Casa Branca, na capital
de São Paulo. Seu assassinato completa 50 anos no dia 04 de novembro de 2019. Seu
túmulo em Salvador, no cemitério Quinta dos Lázaros, para onde foi transladado
dez anos depois, é uma obra prima do também comunista Oscar Niemeyer. Mas nota-se ainda um grande preconceito das
alas conservadoras e retrógradas do país com relação à memória deste pujante líder
revolucionário brasileiro.
Em 2014, por exemplo, causou grande consternação
aos profissionais da área de história, intelectuais e militantes de esquerda
quando houve negação do pedido de tombamento em âmbito estadual por parte do
Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC) da Bahia da
casa de Carlos Marighella, situada na Baixa dos Sapateiros, em Salvador. Grandes
conhecedores da biografia de Marighella, Márcio Ferraz e Mário Magalhães, este último,
autor da célebre obra: “Marighella –
O guerrilheiro que incendiou o mundo”, entraram com o justo pedido de
tombamento do bem imóvel. Saber que nele o emblemático revolucionário Carlos
Marighella passou parte de sua infância e juventude com sua família, e que este
mesmo sítio histórico e seu logradouro teria inspirado e sido palco de múltiplos
significados da luta popular baiana. A reação foi firme com relação a esta
negativa de proteção patrimonial, tanto, que em 2016 após a cobrança e pressão
de grupos que defendem a memória das Comunidades Tradicionais Afrodescendentes
ou que denunciam os perseguidos pela ditadura, como o Movimento “Tortura Nunca
Mais”, foi informado aos familiares de Marighella o interesse por parte do
governo em fazer desta casa, finalmente, um ponto cultural e imaterial,
componente de um roteiro relativo à memória de resistência do povo baiano.
Segundo
reportagem do jornal BBC, ainda há muito preconceito à pedra monumental, com os
seguintes dizeres: "Aqui tombou Carlos Marighella, em 4/11/1969. Assassinado pela ditadura
militar", instalada em 1999 a pedido de intelectuais
brasileiros que indicaram o local do assassinato de Marighella, na Alameda Casa
Branca, na região do Jardim Paulista, zona nobre de São Paulo. Todos os anos, grupos de estudantes e admiradores desse
revolucionário se reúnem no local para gritar o nome de Marighella e bater
palmas. Em 2013, a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo e a viúva do
guerrilheiro, Clara Charf, fizeram um grande ato junto ao marco. Com menos
regularidade, outras pessoas aparecem para vandalizar e menosprezar a
importância do monumento. Clara Charf, companheira de Marighela por 21 anos, até
a sua execução pelos militares, conta em suas entrevistas que ele era um homem
sábio, à frente de seu tempo, pois era extremamente
"anti-racista e feminista",
"quando ainda não se usava essa
palavra". O sociólogo e
crítico literário Antônio Candido comenta o seguinte sobre Carlos Marighella:
"Ele pagou o tributo mais alto e
mais nobre que um homem pode pagar, que é dar a própria vida por seus ideais.
De maneira, que é justo que ele tenha se tornado um grande símbolo coletivo".
Em tempos também obscuros,
tenebrosos e destoantes, já em 2019, um filme ou cinebiografia que conta a
história deste comunista marxista-leninista vem sofrendo severas retaliações
por parte deste desgoverno Bolsonaro, que dificulta a sua divulgação no Brasil
e no exterior. Esse filme destinado a relatar o
contexto em que viveu o deputado Marighella explicita que o Brasil sofreu um
golpe militar/civil/empresarial em 1964, com a tomada de poder pelos militares,
ajudados pelo governo norte-americano, sob pretexto de “prevenir” o avanço do comunismo.
Os militares, como se sabe, ficaram durante 21 anos no poder, tendo perseguido
e assassinado inúmeros estudantes, operários, camponeses, artistas,
pesquisadores, intelectuais e militantes em geral, dentre eles, Carlos
Marighella, que foi um mártir revolucionário de seu tempo. Figura histórica
marcante e inconteste.
O roteirista Rogério Faria possui um
projeto ilustrativo muito instigante, que conta com os desenhos
de Ricardo Sousa e
arte da capa de Phill Zr, sobre a história de Marighella e de seus companheiros, não
obstante, em entrevista recente ao site “Quadrinheiros” ele relata que o seu
quadrinho sequer foi lançado e que já estaria causando uma alta polarização (mensagens
elogiosas e outras, com insultos e agressões) nas redes digitais, somente com a
divulgação do financiamento da obra no coletivo “Catarse”. A publicação aborda ainda a fibra de Marighella, que, mesmo sob tortura,
jamais delatou seus companheiros, surpreendendo até mesmo os seus captores e
algozes, tendo se tornado desde então o maior guerrilheiro brasileiro do século
XX. De fato, Carlos Marighella não teve tempo de ter medo, nos deixando um
legado imprescindível.
Publicações:
MARIGHELLA, Carlos. Escritos de Carlos Marighela. São
Paulo: Ed. Livramento, 1979.
MARIGHELLA, Carlos. Manual do Guerrilheiro Urbano. São
Paulo: Ed. Sabotagem, 2003.
MAGALHÃES,
Mário. Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
MAGALHÃES, Mário. Estado da Bahia se nega a tombar casa onde
Carlos Marighella cresceu, em 11 de setembro de 2014.
Sites:
Filmes:
-“Batismo de Sangue” - filme brasileiro lançado em 2007,
dirigido pelo cineasta Helvécio Ratton. Baseado no livro homônimo
de Frei Betto, que foi lançado originalmente
no ano de 1983; vencedor do prêmio Jabuti.
-“Marighella”
- filme brasileiro lançado em 2019, dirigido por Wagner Moura, produtora O2.
[1]
Doutora em Arqueologia pelo
MAE/USP; Pós-Doutorado Arqueologia/Antropologia-FAFICH/UFMG; Mestre em Educação
pela FAE/UFMG; Historiadora e Membro do CEDEFES (Centro de Documentação Eloy
Ferreira da Silva - www.cedefes.org.br - : e-mail: alenicebaeta@yahoo.com.br
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