sexta-feira, 17 de abril de 2020

Prefeito de Ibirité, MG, veta Lei que cria Patrimônio Hídrico e da Biodiversidade: Injustiça que clama aos céus! – Nota Pública.

Prefeito de Ibirité, MG, veta Lei que cria Patrimônio Hídrico e da Biodiversidade: Injustiça que clama aos céus! – Nota Pública.



O Movimento Serra Sempre Viva, a Comissão Pastoral da Terra (CPT/MG) e o Centro de documentação Eloy Ferreira (CEDEFES) repudiam  a atitude deplorável do prefeito de Ibirité, William Parreira (AVANTE) por ter vetado lei justa e necessária no município. Após a aprovação por unanimidade do Projeto de Lei 058/2019 na câmara de vereadores de Ibirité, MG, estava nas mãos do prefeito sancionar a Lei aprovada, reafirmando seu compromisso feito diante mais de 400 centenas de pessoas em audiência pública realizada dia 25 março de 2019. Mas o prefeito William Parreira Duarte vetou totalmente o projeto de lei que institui Patrimônio Hídrico e da Biodiversidade de Ibirité. É com o propósito de defesa do patrimônio hídrico, histórico, paisagístico e de toda biodiversidade que o projeto de lei 058/2019 foi construído com participação popular, de forma democrática. O projeto é fruto de muita luta coletiva da população, que só foi possível juntamente com legislativo da cidade, fato até aqui considerado uma vitória. Desde o início de sua construção o executivo municipal foi convidado a participar das reuniões e contribuir para a elaboração do projeto, porém, não participaram.
O Parque Estadual da Serra do Rola Moça é o terceiro maior parque em área urbana do país, contempla mananciais que abastecem a cidade de Ibirité, parte de Belo Horizonte e parte da Região Metropolitana da capital mineira. A Serra do Rola Moça vem sofrendo ameaças de mineração na zona de amortecimento próximo ao manancial Taboões, local de captação de água da COPASA. Além disso, existe rica biodiversidade, importante para mais de 400 agricultores familiares localizados aos pés da serra. O veto do prefeito Wiliam Parreira é absurdo, injusto e inconstitucional. Outras cidades já aprovaram projetos parecidos, como por exemplo, o distrito de Belisário na zona de amortecimento do Parque Estadual Serra do Brigadeiro, foi reconhecido como “Patrimônio Hídrico do Município de Muriaé”, na zona da mata mineira. Em Muriaé, a Câmara Municipal acolheu reivindicação da CPT, da Cáritas, da Fraternidade Franciscana e de uma grande Rede de Movimentos Socioambientais e aprovou um Projeto de Lei transformando o distrito de Belizário como Patrimônio Hídrico e da Biodiversidade, isso como estratégia para impedir a gula da mineradora CBA que insiste em ampliar a mineração de bauxita inclusive para a zona de amortecimento do Parque Estadual Serra do Brigadeiro. O prefeito de Muriaé, ajoelhado diante dos interesses capitalistas da mineradora, vetou a Lei aprovada na Câmara. Entretanto, a Câmara de Vereadores de Muriaé derrubou o veto do prefeito e sancionou a lei. Apenas dois vereadores votaram contra o povo, contra o meio ambiente e a favor de mineração. Mas, por justiça socioambiental, no município de Muriaé, MG, está criado o distrito de Belizário como Patrimônio Hídrico e da Biodiversidade. Em Ibirité, MG, também é necessário conquistarmos lei nesse sentido. A proteção desta área vai beneficiar toda a região metropolitana de Belo Horizonte. Por isto a luta é de todos nos! Conclamamos a participação dos municípios vizinhos nesta justa e necessária luta.
Compreender toda a natureza como elemento fundamental à sobrevivência nossa é primordial para manter a nossa existência no planeta Terra, nossa única Casa Comum. Alterações na natureza provocadas pelo sistema capitalista e pelos capitalistas, em que o objetivo é degradar, explorar, tirar e vender, gerando assim diversos impactos, inclusive uma pandemia (COVID-19). Não é possível que arranque pedaços de nós mesmos para obter lucro, o que é tortura. A mineração dilacera nossa Casa Comum, destrói tudo aquilo que condição objetiva de vida. Nossa vida e a vida de todos os seres valem muito mais do que o minério. Lembremos, foi do outro lado desta localidade que lutamos para proteger que aconteceu o rompimento da barragem em Brumadinho - a tragédia/crime socioambiental da mineradora Vale e do Estado, no vale do rio Paraopeba.  

O prefeito de Ibirité, William Parreira, quer acabar com as águas do município? Ele está em conluio com a mineradora Santa Paulina? Ele quer devastar Ibirité assim como Brumadinho já está devastado pelas mineradoras?

Enfim, exigimos que a Câmara Municipal derrube o veto injusto e covarde do prefeito William Parreira e sancione a Lei que cria a região do manancial de Taboões como Patrimônio Hídrico e da Biodiversidade de município. Queremos Ibirité território livre de mineração!

Assinam esta Nota:
Movimento Serra Sempre Viva;
Comissão Pastoral da Terra (CPT/MG);
Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES).

Ibirité, MG, 16 de abril de 2020.

Obs.: Assista ao vídeo, abaixo.

Nossa luta é por Ibirité, MG, território livre de mineração! Sanciona o PL 058/2019, Prefeito!




quinta-feira, 16 de abril de 2020

Contaminação e Guerra de Extermínio contra os Povos Indígenas - pestes, armas biológicas e o COVID-19. Por Alenice Baeta


Contaminação e Guerra de Extermínio contra os Povos Indígenas -
pestes, armas biológicas e o COVID-19. 
Por Alenice Baeta[1]
 
Ilustração de nativos com varíola, extraída da obra original: SAHAGÚN, Bernardino. “História General de las Cosas de Nueva Espana”, Códice Florentino (séc. XVI). Biblioteca Digital Mundial.
O fenômeno global do novo coronavírus, que causa a doença COVID-19, coloca em pauta a importância de se conhecer e de refletir sobre a história da imunologia dos diferentes povos e das armas biológicas no âmbito das relações neocoloniais e imperialistas em várias localidades do planeta. 
A revista científica Science Advances divulgou, em 2016, importantes informações sobre o passado dos povos nativos americanos. Trata-se de resultados de pesquisa de um grupo de cientistas[2] do Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana, Alemanha, que analisou amostras de cabelo, dentes e ossos de 92 restos mortais humanos encontrados em distintos sítios arqueológicos da América do Sul. Estes sequenciaram o genoma mitocondrial, ou melhor, a parte do DNA que passa de mães para os filhos e o compararam ao de populações atuais da América do Sul. Dentre outros resultados sobre seus modos de vida, foi indicado que parte expressiva de antigas populações indígenas teria sido aniquilada depois da chegada dos conquistadores espanhóis. Em entrevista ao jornal El Pais[3], o coautor do estudo Wolfgang Haak pondera o seguinte: “não determinamos qual porcentagem de população desapareceu, mas vimos que a conquista teve efeitos devastadores na população local já que, em alguns pontos da costa oeste da América do Sul, pelo menos metade desapareceu.
Guerras de extermínio, arsenal bélico, expulsão de territórios tradicionais, violência e escravização, perpetradas pelos colonizadores europeus contra os povos nativos, além de desmatamento, queimadas, secas, desnutrição, fome, contaminação das águas, do solo e abatimento psicológico foram eventos que propiciaram parte da dizimação da população nativa. Todavia, doenças infecciosas, muitas delas trazidas voluntária e involuntariamente pelos invasores europeus, se alastraram neste cenário socioambiental de caos e conflitos, tendo sido também uma importante causa na dramática mortandade de indígenas na América no período colonial, como também em períodos seguintes. Outros especialistas[4] em arqueogenética da universidade alemã Tubingen, associados a pesquisadores mexicanos, concluíram que quando os espanhóis pisaram em 1519 no que é hoje o território do México e parte da Guatemala, havia na região mesoamericana pelo menos 15 a 30 milhões de autóctones, todavia, ao final do século XVI, a estimativa se aproxima de dois milhões. Visando entender melhor elementos relativos ao decréscimo populacional ameríndio e o processo de extermínio dos mesmos associados a pestes e a doenças - no âmbito da imunologia, pesquisadores focalizaram seus estudos no sítio arqueológico de Yucundaa-Teposcolula. Buscaram entender qual teria sido o agente patogênico denominado “cocoliztli” (o mal ou pestilência, na língua nativa), que propiciou a mortalidade em massa naquela população em consecutivos períodos ao longo do século XVI, segundo a história oral e crônicas espanholas da época. Consideraram este sítio arqueológico ideal para este tipo de abordagem, pois o seu contexto histórico oferecia um ambiente peculiar para a descoberta do desconhecido agente microbiano responsável pela dizimação de sua população, tendo em vista que os sobreviventes migraram para outras localidades, fugindo do que os assolava. Isso fez com que as praças, ruas e também o cemitério da antiga cidade fossem conservados devido ao total abandono. Os arqueólogos encontraram na área da escavação centenas de corpos sepultados, muitos deles em grupos empilhados, fora dos padrões tradicionais mortuários, insinuando que teriam sido enterrados às pressas. Identificaram nos dentes dos indígenas exumados a presença de uma bactéria, a Salmonella enterica, conhecida por causar febre entérica, como a febre tifóide. Inferiram que este teria sido, provavelmente, um importante vetor da catastrófica hecatombe humana na região (WAIZBORT, 2019).    
Segundo Warren Dean (1996), de todas as armas transportadas nas embarcações dos europeus, nenhuma foi tão eficaz e funesta quanto os microparasitas disseminados sobre os povos nativos, considerando importante chave tal tema para se compreender o curso do imperialismo no Novo Mundo. 
Segundo Coimbra Jr. et al (2007), seria  incorreto afirmar que não existiam doenças no continente americano antes da invasão dos europeus. Por certo os nativos estavam expostos a muitos padecimentos e agravos, não obstante, houve a introdução de doenças potencialmente favorecedoras de epidemias e pestes, que tinham a capacidade de matar grandes contingentes populacionais em um curto período de tempo. Contrastando com as enfermidades consideradas autóctones, há evidências de que aquelas que ocasionaram elevados níveis de redução populacional com a morte de milhares de índios nos primeiros tempos de contato foram certamente introduzidas nas Américas a partir da colonização europeia, trazidas de outras partes do mundo. Os agentes patógenos, algumas vezes, passam despercebidos na análise dos processos de contato, colonização e seus desdobramentos históricos e socioambientais.
Muitos indígenas acreditavam inicialmente que as novas e desconhecidas enfermidades que os acometiam eram provenientes da punição de seres celestiais e naturais. Foram culpados de forma oportunista pelos colonizadores, pelos novos males que lhes grassavam, por serem politeístas ou pela dita "falta de alma", por não serem pessoas cristãs. As misteriosas pestes foram muito bem exploradas no processo de colonização e de diáspora. As doenças do além-mar provaram ser excepcionalmente mortíferas a partir do intercâmbio de micro-organismos e também de diferentes animais que ali aportaram trazidos nas caravelas.
Segundo o historiador A. Crosby, autor da obra: “Imperialismo Ecológico - a expansão biológica da Europa”[5], as doenças foram trazidas por uma “biota portátil” pelos vorazes colonizadores, responsáveis por expulsar e desencadear a eliminação de parte da flora, fauna e habitantes nativos de distintas regiões, não só da América, mas de outras partes do mundo. Nesta mesma esteira, o ecólogo e linguista J. Diamond, autor das obras “Armas, Germes e Aço” (2009) e “Colapso” (2005), discute a importância de dar luz à incidência de pestes no continente americano, o que ajudaria a compreender um suposto padrão histórico de contato e de expansão de fronteiras sobre as populações nativas[6].
“A importância dos micróbios letais na história humana é bem ilustrada pelas conquistas europeias e o despovoamento do Novo Mundo. Muito mais ameríndios morreram abatidos pelos germes eurasianos do que pelas armas e espadas europeias nos campos de batalha. Esses germes minavam a resistência indígena matando grande parte dos índios e seus líderes e abalando o moral dos sobreviventes” (DIAMOND, 2009: 77).
Fundamental, em contraponto, para não cairmos em um determinismo imunológico em contextos tão complexos e heterogêneos, considerar, sobretudo, os agentes políticos, econômicos e sociais presentes no processo de dominação colonial e neocolonial, as distintas conjunturas e temporalidades, como bem ponderado por Calahan (2005) e Livi-Bacci (2003; 2007). Imprescindível ainda considerar que a ecologia nativa foi severamente impactada tendo em vista que os indígenas tiveram seus territórios invadidos, impossibilitando o acesso livre a certos ambientes e biomas, fundamental para a sua medicina tradicional, manejo, dieta alimentar, práticas sociais, culturais, místicas e cosmológicas.
Segundo os especialistas em paleopatologia[7], a doença mais devastadora na América pós-desembarque dos europeus foi a varíola ou o “mal das bexigas”, mas houve outras imolações mortíferas tais como o sarampo, tifo, peste bubônica, febre amarela, rubéola, catapora, malária, pneumonia e gripes. As epidemias tiveram efeitos muito diferentes em distintas partes das Américas, e muitas vezes acometiam variadas comunidades nativas ou tradicionais em uma mesma ocasião. Não é o caso de ‘uma’ epidemia que chega ao território de uma população imunologicamente virgem, mas de populações expostas a muitos patógenos diferentes, às vezes, simultaneamente (WAIZBORT, 2019:931).
A médica brasileira C. Gurgel (2009) em sua tese de doutorado abordou a história das doenças contagiosas, dentre elas, a varíola (Mereba-ayba, na língua Tupi) no contexto do processo de colonização e os decorrentes colapsos populacionais das comunidades nativas no Brasil.
A varíola, provavelmente originária da Índia, chegou à Europa durante a Idade Média trazida pelos sarracenos, deixando um rastro de morte por onde passasse. Era uma velha inimiga na Ásia e África, cujas populações desde tempos imemoriais invocavam divindades protetoras como Sitala Mata (Índia), Ma-Chen e Pan-Chem (China) e Sopona (África – yorubás); no Brasil foi introduzido com os nomes de Omulu e Obaluaê), mas a moléstia era totalmente desconhecida nas Américas” (GURGEL, 2009: 123).
Gurgel (2009) destaca em sua pesquisa um importante registro etnográfico de uma epidemia de gripe no Brasil, possivelmente suína, vinda com as embarcações europeias que teria ocorrido no ano de 1554 na capitania de São Vicente, sendo que seus efeitos foram testemunhados e descritos pelo aventureiro e mercenário alemão Hans Staden na obra “Duas Viagens ao Brasil”, em 1557. Na ocasião, enquanto prisioneiro de uma tribo tupinambá, ele notou o adoecimento e a morte de famílias indígenas inteiras, sem que ele mesmo sequer adoecesse; quando relatou como o Deus cristão ganhou força e fama diante do desespero indígena, tanto entre os nativos quanto entre os colonos.
As reduções, as missões e os aldeamentos aglomeravam os indígenas, os expondo ainda mais ao fatal contágio de várias doenças, antigas e novas. A mais temida, a varíola podia manifestar-se sob uma forma fulminante, a “púrpura variolosa”, cuja vítima era rapidamente levada à morte sem que houvesse tempo para a erupção de lesões e pústulas - tendo matado milhares de nativos. No Brasil, as epidemias variólicas seguiram seu curso ao longo dos séculos, em sucessivos surtos e irromperam em diferentes regiões, todos iniciados a partir de portos, polos comerciais e econômicos da colônia e do império (GURGEL, 2009).
O naturalista A. Saint-Hilaire (2002) relata em uma de suas viagens à região sul do Brasil imperial, em 1821, o abandono e o desamparo, certamente proposital e programado por parte dos administradores locais, dos enfermos indígenas nas missões, pois a varíola vinha sempre em nocivas ondas, sendo um grande flagelo na mesma.      
“Desde o tempo dos jesuítas, ela vem de três em três anos, arrebatando vidas. Sabe-se que essa moléstia, em geral, poupa menos os índios que os homens doutras raças. [...] O Marechal Chagas jamais procurou introduzi-la (vacina) entre os índios das Missões e mesmo após haver testemunhado o mal causado pela varíola não se preocupou em antecipar-se contra o retorno do flagelo” (SAINT-HILAIRE, 2002: 366).
Alguns colonos acharam na manipulação e disseminação de doenças um meio propício e eficaz para combaterem os índios que resistiam às investidas e às invasões de seus territórios, impedindo o domínio colonial e a submissão de seu povo e de seus aldeamentos. Deixavam perto das aldeias ou em seus caminhos tradicionais mudas de vestes, alimentos e objetos contaminados de pestes visando o padecimento de seus membros – tratava-se de uma mortífera arma biológica.     
Cientes que roupas de variólicos podiam transmitir o mal, os colonizadores propositadamente deixavam-nas próximo às aldeias cuja população queriam destruir. Deram origem a uma arma biológica das Américas e estas práticas nefastas, longe de serem exceções, perpetuaram-se nos séculos seguintes. Em 1799, um ofício do ouvidor de Ilhéus, Balthazar da Silva Lisboa, informava das doações destas vestimentas e suas fatais consequências aos índios” (GURGEL, 2009).
No início do século XIX, o médico e botânico Von Martius (1939) advertiu sobre peças do vestuário “inficionadas” ou infectadas propositalmente, deixadas por imigrantes europeus, colonos e portugueses nas matas e proximidades de aldeias e ranchos como forma “maliciosa” de revide por conta dos ataques dos índios - considerados obstáculos para a dita civilização. As pestes invertiam, muitas vezes, o resultado de muitas batalhas e combates cuja vitória nativa parecia de antemão certa (ALMEIDA & NOTZOLD, 2010: 3).
Já na porção norte do Brasil, no Maranhão, em 1815, há relatos que índios Canelas Finas foram atraídos pelas autoridades locais com o único intuito de lhes presentear com brindes e roupas previamente contaminadas por doenças e pragas (GOMES, 1988).
No século XX, há também denúncias da utilização de disseminação de agentes etiológicos contra diversas tribos indígenas mato-grossenses que habitavam áreas de extração de borracha, entre os anos 1957 e 1963, bem como de inseminação programada de tuberculose em aldeias do Norte da Bacia Amazônica, entre 1964 e 1965, já na ditadura empresarial-civil-militar (DAVIS, 1978). Poderia ser aqui listada uma série de situações de contágios propositais de povos indígenas, mas ainda cabe alertar sobre a incidência devastadora de atividades de mineração, desmatamento e implantação de projetos de desenvolvimento em territórios ou próximos a estes que são particularmente preocupantes, pois deixa a população indígena mais vulnerável. Nesses contextos, elevadas taxas de morbidade e mortalidade por causa de inúmeros tipos de doenças infecciosas, dentre elas a malária, têm sido observadas por agentes da área de saúde. Outro agravante ambiental com consequências dramáticas para a saúde indígena e de povos tradicionais decorre da contaminação pelo mercúrio utilizado em garimpos de ouro.
O caso dos Yanomami, em Roraima, ocorrido nos decênios 80 e 90 do século XX, segundo Coimbra Jr., especialista em antropologia médica, é ilustrativo de uma epidemia de malária causada pela invasão de garimpeiros, e consequente de degradação ambiental no território indígena, favorecendo a transmissão de malária e parasitas resistentes aos quimioterápicos usuais, levando muitos indígenas a óbito. Ainda alerta sobre a precariedade das condições de saneamento de muitas aldeias indígenas, pois raramente os postos indígenas, onde convivem funcionários administrativos, agentes de saúde, escolares e visitantes, dispõem de infraestrutura sanitária adequada. Tal cenário também apresenta condições favoráveis à transmissão de helmintos e protozoários intestinais que propiciam a contaminação da água de consumo e dos alimentos por enterobactérias e rotavírus (COIMBRA Jr. et. al., 2007). Atualmente, há denúncias que haja, somente nas terras dos Yanomami, aproximadamente 30 mil garimpeiros invasores.
No que se refere ao COVID-19, esta modalidade do novo coronavírus é certamente mais um grande risco infeccioso, mas como exposto, os povos indígenas são ameaçados constantemente por vírus, bactérias e outras tipos de enfermidades ao longo de sua história, e na grande maioria dos casos, com a conivência, negligência e interesse dos próprios governantes.  
É de conhecimento público que o atual presidente do Brasil é declaradamente contrário aos povos indígenas e tradicionais por meio de repetidos pronunciamentos que afrontam os seus direitos. Direitos previstos não somente na Constituição Brasileira de 1988, como também na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, e na Convenção sobre os Povos Indígenas e Tribais, de 1989, Organização Internacional do Trabalho (OIT) da ONU
O desaparelhamento que se arraigou em 2019 da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA),  da Agência Nacional de Mineração (ANM) e a redução dos controles por parte da polícia federal e do exército, permitiram o aumento de garimpos ilegais, grilagem de terras e exploração ilegal de madeira na região amazônica, sendo que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) aponta que as áreas desmatadas praticamente dobraram na Amazônia, saltando de 2.649 quilômetros quadrados, para 5.076 quilômetros quadrados.
A saída inaceitável dos médicos cubanos do Programa Mais Médicos gerou, em 2019, uma deficiência ainda maior no atendimento aos indígenas, tendo em vista que parte dos profissionais atuava em comunidades indígenas, o que já teria causado o aumento em 12% da mortalidade de crianças, associada ao desmonte dos programas de saúde indígena, tendo ainda aumentado a dificuldade de acesso à medicação e exames, em geral. Importante reiterar que as doenças do aparelho respiratório ainda continuam sendo a principal causa de mortalidade infantil na população indígena, acendendo um sinal vermelho com relação ao COVID-19. As comunidades indígenas, tanto na Amazônia como no restante do país, contam basicamente com o trabalho incessante de suas lideranças, de entidades indigenistas e ambientalistas, bem como, de alguns profissionais de saúde comprometidos em travar esta guerra contra mais esse inimigo invisível, entretanto, faltam equipamentos de proteção individual (EPIs), vacinas contra a gripe H1N1 e material para testagem do novo coronavírus em pessoas que apresentam sintomas de contaminação.
Mais uma prova cabal deste quadro alarmante de desmantelamento programático da política indigenista foi a publicação da Portaria nº 419/PRES, de 17 de março de 2020, que estabelece medidas temporárias de prevenção à infecção e à propagação do novo coronavírus (COVID-19) no âmbito da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Chamou a atenção de indígenas e indigenistas, artigo que trata especialmente sobre as comunidades isoladas, certamente as mais vulneráveis nesta situação de pandemia. O artigo 4º suspende todas as atividades que “impliquem em contato com comunidades indígenas isoladas”. Porém, o parágrafo único abre uma exceção: “caso a atividade seja essencial à sobrevivência do grupo isolado, deve ser autorizada pela CR por ato justificado”. Em reação a esta portaria foi divulgada uma nota[8] de repúdio pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), de 19 de março de 2020, onde se destaca o seguinte trecho:
Sob o governo de Jair Bolsonaro, a atuação da FUNAI tem destoado totalmente da sua missão, na contramão do que é seu papel institucional como órgão indigenista, voltando-se, contraditória e criminosamente, aos interesses anti-indígenas do agronegócio, do capital predador e do fundamentalismo religioso. Distancia-se, assim, dos interesses e da proteção das populações indígenas, de suas aspirações e de seus direitos, conquistados com muita luta e muito sangue derramado. Nesse período de profunda crise de saúde pública, não podemos permitir que outros interesses sejam facilitados para adentrar os territórios, colocando em risco de vida toda a população indígena. Portanto, nos somamos a outras instituições na recomendação e exigência da retirada de toda e qualquer possibilidade de entrada nos territórios dos povos isolados e de contato com essas populações (...)”.
Frente a este cenário de necropolítica, as entidades e associações dos povos indígenas estão se mobilizando como podem no sentido de proteger e informar as comunidades indígenas e suas aldeias, visando seguir as orientações de isolamento físico e de quarentena dada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A principal reivindicação é a formação de um comitê específico participativo de crise interinstitucional para a proteção das vidas dos indígenas, sob direção do Ministério Público Federal (MPF). A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)[9], inclusive, informou o adiamento presencial do Acampamento Terra Livre (ATL) de 2020, em Brasília, que ocorreria dentro da programação do Abril Indígena, importante evento de mobilização e articulação política panindígena realizada no Brasil há quinze anos, que costuma reunir milhares de lideranças e indígenas de distintas regiões do país, como também do exterior. Está sendo proposto em substituição, o virtual “Abril Vermelho”, mobilização em rede dos povos e entidades comprometidas com a pauta e luta indígena. Foi ainda criada pela ONG Instituto Socioambiental (ISA) uma plataforma[10] de monitoramento e de consulta a respeito da situação indígena junto à pandemia do COVID-19 no Brasil. Tais informações e dados vêm sendo divulgados com base nos boletins emitidos pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI-MS).
Recentemente, as lideranças e “guardiões” indígenas vêm se empenhando heroicamente em várias localidades do país em realizar um plano de contenção e de barreiras visando monitorar o isolamento das aldeias e expulsar os invasores de seus territórios, impedindo o avanço de atividades clandestinas e da degradação ambiental, o que vem agravando ainda mais os conflitos, violência, falta de suprimentos e insumos, fome, morte e diversos tipos de contaminação.[11]

Referências
ALMEIDA, C. & NÖTZOLD, A. O Impacto da Colonização e Imigração no Brasil Meridional: contágios, doenças e ecologia humana dos povos indígenas. Tempos Acadêmicos, [S.l.], n. 6, dez. 2010.
BLACK, Francis L. Infecção, mortalidade e populações indígenas: homogeneidade biológica como possível razão para tantas mortes. In: SANTOS, Ricardo V.; COIMBRA JR., Carlos E. A. (Orgs.) Saúde & povos indígenas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994. p. 63 - 87.
CALAHAN, Gene. The Diamond fallacy. Mises Institute, Alabama, p. 1-9, Mar., 2005.
COIMBRA JR., C. E. A., SANTOS, R. V., and CARDOSO, A. M. Processo saúde–doença. In: BARROS, D. C., SILVA, D. O., and GUGELMIN, S. Â., (Orgs.) Vigilância alimentar e nutricional para a saúde Indígena. Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2007, pp. 47-74.
CROSBY, Alfred W. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa, 900-1900. Tradução: José A. Ribeiro, Carlos A. Malferrari. São Paulo: Companhia da Letras, 2011.
DAVIS, S. Vítimas do Milagre. O desenvolvimento e os índios no Brasil.  Rio de Janeiro: Zahar, 1978
DEAN, Warren. A ferro e fogo. A história e a devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
DIAMOND, Jared. Armas, Germes e Aço. Tradução de Silvia de Souza Costa, Cynthia Cortes e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 2009.
DIAMOND, Jared. Colapso- como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Rio de Janeiro: Record, 2013.
Fehren-Schmitz L,  Haak W. et al. Mudanças climáticas estão subjacentes às transições demográficas, genéticas e culturais globais. Sul pré-colombiano do Peru. PNAS  111: 9443-9448, 2014.
GOMES, Mércio P. Os Índios e o Brasil: ensaio sobre um holocausto e sobre uma nova possibilidade de convivência. Petrópolis: Vozes, 1988.
GURGEL, Cristina B. Índios, Jesuítas e Bandeirantes - Medicinas e Doenças no Brasil dos séculos XVI e XVII. (Tese de Doutorado) Fac. de Medicina da Univ. Estadual de Campinas. Campinas, 2009.   
LLAMAS, B. et al. Ancient mitochondrial DNA provides high-resolution time scale of the peopling of the Americas. Sci. Adv. 2, e1501385, 2016.
LIVI-BACCI, Massimo. Las múltiples causas de la catástrofe: consideraciones teóricas y empíricas. Revista de Indias, Madrid, v. 63, n. 227, p. 31-48, 2003.
LIVI-BACCI, Massimo. Conquista: a destruição dos índios americanos. Lisboa: Edições 70, 2007.
MARTIUS, K.F.P. Von. Natureza, Doenças, Medicina e Remédios dos índios Brasileiros. São Paulo; Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1939.
PEREIRA, S. Pragas e tráfico de material biológico em debate. Revista do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia da Bahia, Salvador, v.16, n.1, 2006, p.14-16.
RAMBAUSQUE, D. et al. Bioterrorismo, riscos biológicos e as medidas de biossegurança aplicáveis ao Brasil. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 24 [ 4 ]: 1181-1205, 2014.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.
VÅGENE, Åshild J.et al.  Johannes. Salmonella enterica genomes from victims of a major sixteenth-century epidemic in Mexico. Nature Ecology & Evolution, London, v. 2, p. 520-528, Jan. 2018.
WAIZBORT, Ricardo. O debate inesgotável: causas sociais e biológicas do colapso demográfico de populações ameríndias no século XVI. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 14, n. 3, p. 921-941, set.-dez., 2019.

Sites Consultados








[1] Doutora em Arqueologia pelo MAE/USP; Pós-Doutorado Arqueologia e Antropologia-FAFICH/UFMG; Mestre em Educação pela FAE/UFMG; Historiadora e Membro da ONG CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva – www.cedefes.org.br – : e-mail: alenicebaeta@yahoo.com.br
[2] LLAMAS, B. et al. (2016)
[4] VAGENE, A. et al. (2018).
[5] CROSBY, A. W. (2011).
[6] Argumenta, como exemplo, que a vitória do explorador espanhol F. Pizarro em Cajamarca em 1532 sobre os Povos Incas teria sido também precipitada por uma epidemia de varíola e desunião de suas lideranças, quando foram mortos somente em uma batalha pelo menos cinco mil guerreiros incas (DIAMOND, 2009: 77). 

[7] Ramo da Ciência que estuda as doenças pré-coloniais e ancestrais por meio de ossos, múmias e vestígios arqueológicos.
[9] A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil é uma associação nacional de entidades que representam os povos indígenas do Brasil.
[11] Gratidão a Gilvander Luís Moreira (graduado em Filosofia e Teologia, mestre em Ciências Bíblicas e Doutor em Educação pela UFMG), que fez a revisão deste texto.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Salvar vidas agora, antes que seja tarde. Por Frei Gilvander

Salvar vidas agora, antes que seja tarde
Por Gilvander Moreira[1]



O balanço do Ministério da Saúde do dia 14 de abril de 2020 sobre a COVID-19 no Brasil apontou que o país agora tem mais de 25 mil casos confirmados da doença, mais de 1.500 mortes – 204 mortos apenas no dia de hoje -, sendo 26% dos mortos fora do grupo de risco, 25% com idade abaixo de 60 anos e, pior, com taxa de letalidade bem maior do que a média registrada em outros países. Importante recordar que o número de mortos e de pessoas com a COVID-19 no Brasil deve ser muito maior do que os dados oficiais. A Organização Mundial de Saúde (OMS) alertou que ainda não há comprovação científica sobre se ficará imunizado quem contraiu o novo coronavírus e sobreviveu. Ademais, no Brasil, a falta de testes para constatar se as pessoas estão com a doença COVID-19 é criminosa.
Considerando que o crescimento do contágio comunitário pelo novo coronavírus acontece, não apenas em progressão aritmética (1, 2, 4, 6, 8, 10 ...), mas em progressão geométrica (1, 2, 4, 8, 16, 32, 64, 128, 256, 512, 1024 ...) ou seja, de forma exponencial, se quisermos salvar vidas, temos que agir rápido, antes que aumente muito o número de pessoas infectadas. Essa ação tem componentes individuais que dependem da nossa adesão e consiste em colocar em prática todas as medidas que evitam o contágio: ficar em casa, em quarentena, lavar as mãos com frequência, usar máscara quando tiver que sair de casa, e também componentes coletivos que, infelizmente, dependem dos poderes públicos nos vários níveis para sua implementação. Se o contágio não for barrado logo no início, se for disseminado, será quase impossível impedir que todas as pessoas sejam infectadas e milhares de nossos irmãos e irmãs perderão a vida, momento em que a espada de dor transpassará o coração de milhões de brasileiros/as.
O Brasil é o país que menos tem aplicado testes para detectar a presença do COVI-19, o que equivale a estarmos no meio de uma pandemia, sem avistar qualquer luz no fim do túnel. Estamos no escuro.  O desgoverno brasileiro está lavando as mãos, como Pilatos, e entrará para a história como cúmplice da morte de milhares de pessoas. O Brasil testa apenas 296 pessoas por milhão; os Estados Unidos testam mais de 7 mil por milhão e, a Alemanha, 15 mil pessoas por milhão. Parece que nos bastidores o Ministro da Saúde e o antipresidente estão combinados para enganar o povo. Mandetta diz para se fazer ‘isolamento social’ – isolamento físico, sim; social, não! - e o antipresidente desdenha das orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Será essa tática para no futuro o desgoverno federal tirar o corpo fora das responsabilidades sobre os milhares de vidas que serão ceifadas? O Ministro da Saúde se reduz a ser um conselheiro do povo, a ficar orientando: ‘Fique em casa, senão no futuro vocês se arrependerão.’ Caso ele fosse  sério e responsável, estaria anunciando providências para construir estruturas e equipamentos necessários, com pessoal capaz, para salvaguardar todas as pessoas em caso de doença. Cadê o cancelamento da PEC[2] 95 que cortou por 20 anos os investimentos em saúde? Cadê a ampliação do SUS? Cadê pelo menos 50 milhões de testes para pelo menos 25% da população? Cadê a produção e compra de respiradores artificiais em número necessário para não deixar os hospitais entrarem em colapso?  A falta de respiradores é um dos tendões de Aquiles no enfrentamento da pandemia. Cadê compromisso do desgoverno federal com a distribuição de recursos para sustentar todas as pessoas em tempo de pandemia? Só R$600,00 é migalha e, ainda com o efeito colateral de causar aglomeração nas filas em agências da CEF[3] e da Receita Federal para a atualização de CPFs. Cadê aprovação no Congresso Nacional de medidas para obrigar os banqueiros a bancar o custo da pandemia? Cadê a paralisação no pagamento de juros e amortização da dívida pública que está sugando mais de 38% do orçamento do Brasil?
O antipresidente brasileiro, que me nego a citar o nome, lança sempre uma cortina de fumaça como uma tática para ocultar as piores ações ou omissões do seu desgoverno, pois coloca parte da imprensa e do povo para ficar discutindo idiotices intermináveis e, pior, com isso não se discutem questões centrais e imprescindíveis tais como: repasse de mais de 38% do orçamento nacional para pagar juros e amortizações da dívida pública, a devastação ambiental, o envenenamento dos alimentos pelo uso indiscriminado de agrotóxicos, a latifundiarização do país, a desigualdade social crescente e absurda, a falta de moradia adequada para milhões de brasileiros, o racismo, a homofobia, o feminicídio etc. A jornalista Eliane Brum desmascara esta tática macabra do antipresidente: “Cada vez que se comporta como um maníaco, faz figuras – da política profissional - que até ontem causariam arrepios despontarem como estadistas.”
Grande parte dos milhares de mortos pela pandemia do novo coronavírus terão no seu atestado de óbito “causa mortis: pneumonia ...”, um número menor “causa mortis: COVID-19 por coronavírus”, mas, na realidade, deveria ter “causa mortis: sucateamento e aniquilamento do SUS pela PEC-95, 38% do orçamento do país sequestrado para pagar juros e amortização da famigerada dívida pública, ausência de políticas públicas que garantam acesso à terra, a moradia adequada e ao saneamento básico para todos/as.”
E se os governos de outros países do mundo não tivessem, mesmo com atraso, tomado as medidas orientadas pela OMS para enfrentar a pandemia do novo coronavírus? Morreriam quantos por cento da população mundial, que é 7,7 bilhões de pessoas? Os governos não estão se vergando à implementação de medidas para barrar ou pelo menos diminuir o contágio comunitário do novo coronavírus porque são defensores da vida, mas porque se a maioria dos trabalhadores morrerem, não terão mão de obra barata para trabalhar e produzir para eles.
Bruno Latour assim define a lição posta pelo novo coronavírus: “A primeira lição do coronavírus é também a mais espantosa. De fato, ficou provado que é possível, em questão de semanas, suspender, em todo o mundo e ao mesmo tempo, um sistema econômico que até agora nos diziam ser impossível desacelerar ou redirecionar. A todos os argumentos apresentados pelos ecologistas sobre a necessidade de alterarmos nosso modo de vida, sempre se opunha o argumento da força irreversível do ‘trem do progresso’, que nada era capaz de tirar dos trilhos, ‘em virtude’, dizia-se, da ‘globalização’”[4].
Como crescer infinitamente em um planeta finito? Como é possível tornar sustentável o que, em sua estrutura, é insustentável? Os arautos do capitalismo estão mudos diante dessas perguntas, não têm argumentos sensatos. É óbvio que enquanto houver capitalismo, haverá novos colonialismos, a reprodução do patriarcado e, pior, estaremos correndo, em meio à barbárie, rumo à extinção da espécie humana, pois estará sendo construída a escandalosa concentração de riqueza e poder, uma extrema desigualdade social, a destruição das condições objetivas de vida no planeta Terra e a fatal e iminente catástrofe ecológica final. 
A humanidade encontra-se em uma encruzilhada decisiva, provavelmente a última: ou mudamos nossa forma de nos relacionar com a natureza e entre nós desenvolvendo plenamente nossa humanidade, agindo com base na solidariedade e na preservação da vida em todas as suas formas ou seremos extintos do planeta Terra. Como um grande ser vivo, Gaia, o planeta Terra está submetido a queimaduras muito graves. O cerrado, a caatinga, a mata atlântica, o pantanal, a Amazônia e os pampas são os biomas brasileiros que constituem a pele da mãe Terra, mas, covardemente, estão sendo devastados impiedosamente.
Eliane Brum recorda uma estratégia básica da elite dominante: “Conceder um pouco para garantir que nada mude no essencial é um truque antigo. [...] O pior que pode nos acontecer depois da pandemia será justamente voltar à “normalidade[5]. Se voltarmos à normalidade anormal, criada para manter os interesses do capital, “o mundo pós-coronavírus será ainda mais brutal e o colapso climático se aprofundará”, nos alerta Brum. Noam Chomsky nos dá uma dica vital: “Para aqueles preocupados em reconstruir uma sociedade viável dos destroços que restarão da crise em andamento, é bom atender ao chamado de Vijay Prashad: "Não voltaremos à normalidade, porque o problema era a normalidade"[6]. Foi essa ‘normalidade do caos’ que criou as condições para que o novo coronavírus se alastrasse por todo o planeta.
Não, senhores poderosos, não estamos todos no mesmo barco. A maioria da população é formada pelos/as empobrecidos/as e estes/as estão fora do barco, em meio à tempestade. Essa parcela da população que é mais vulnerável não tem condições de manter o isolamento físico e será exposta a essa gravíssima doença: COVID-19. A desobediência civil é e será cada vez mais um instrumento necessário capaz de desarmar a engrenagem de morte em andamento e reconstruir uma sociedade justa economicamente, solidária socialmente, plural culturalmente, sustentável ecologicamente, sem machismo, sem racismo, com vida e liberdade para todos/as[7].
14/4/2020

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Coronavírus: como vencer o capitalismo de desastre?



2 - CORONAVÍRUS, CLIMA E CAPITAL: a irracionalidade destrutiva do capitalismo



3 - PANDEMIA: ESTE SERÁ O FIM DO CAPITALISMO?!!!




[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Proposta de Emenda à Constituição aprovada no Congresso Nacional e sancionada pelo presidente.
[3] Caixa Econômica Federal.
[4] Cf. Texto citado por Eliane Brum no artigo “O futuro pós-coronavírus já está em disputa”, para El País, republicado em https://racismoambiental.net.br/2020/04/08/o-futuro-pos-coronavirus-ja-esta-em-disputa-por-eliane-brum/
[5] Cf. Eliane Brum no artigo “O futuro pós-coronavírus já está em disputa”, em El País, republicado também em https://racismoambiental.net.br/2020/04/08/o-futuro-pos-coronavirus-ja-esta-em-disputa-por-eliane-brum/

[7] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.