quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Riqueza e luxo à custa de trabalho alheio? Por Frei Gilvander

  Riqueza e luxo à custa de trabalho alheio? Por Frei Gilvander Moreira[1]

Em contexto de superexploração da dignidade humana dos/as trabalhadores/as e dos camponeses e camponesas, não podemos abrir mão da utopia que é conquistar emancipação humana. Parece à primeira vista impossível, mas é possível, urgente e necessário, antes que a barbárie que o capitalismo e todos seus agentes e vassalos reproduzem cotidianamente levem à dizimação da humanidade por mudanças climáticas causadas pela destruição das condições materiais objetivas que garantam a vida dos humanos e de todos os seres vivos da biodiversidade. Refletindo sobre a emancipação humana, que precisa acontecer, Marx afirma na Crítica do programa de Gotha: “Quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!” (MARX, 2012, p. 33).

Ao tecer críticas ferrenhas ao programa de coalizão de dois partidos operários socialistas alemães, em 1875, tal como, programa “absolutamente nefasto e desmoralizador para o partido” (MARX, 2012, p. 22), Marx enfatiza a dimensão ecológica ao afirmar a natureza como a fonte primeira de toda riqueza, conditio sine qua non para o ser humano, através do trabalho gerar riqueza. “O trabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (e é em tais valores que consiste propriamente a riqueza material!), tanto quanto o é o trabalho, que é apenas a exteriorização de uma força natural, da força de trabalho humana” (MARX, 2012, p. 24).

Em sintonia com o que advoga o apóstolo Paulo, na Bíblia, na carta aos tessalonicenses – “Quem não quer trabalhar também não há de comer” (2 Tessalonicenses 3,10) -, Marx pondera que a emancipação humana passa necessariamente pela não apropriação de riqueza enquanto fruto de trabalho alheio. “Porque o trabalho é a fonte de toda a riqueza, ninguém na sociedade pode apropriar riqueza que não seja fruto do trabalho. Se, portanto, ele mesmo não trabalha, então vive do trabalho alheio e apropria sua cultura também à custa do trabalho alheio” (MARX, 2012, p. 25). Exceção óbvia às pessoas impossibilitadas de trabalhar por motivo de doença, deficiência ou por estar com idade avançada. A esses também segundo suas necessidades e segundo sua história de trabalho e/ou de alguma forma gerando sociabilidade justa. “O fruto do trabalho pertence inteiramente, com igual direito, a todos os membros da sociedade” (MARX, 2012, p. 28).

Os frutos do trabalho - o trabalho social integral - devem ser distribuídos a todos, com igual direito, após deduzir os recursos para a substituição dos meios de produção consumidos, a parte adicional para a expansão da produção, um fundo de reserva ou segurança contra acidentes, prejuízos causados por fenômenos naturais etc. Após essas deduções, a parte restante do produto total deve ser destinada ao consumo, sem esquecer o que serve à satisfação das necessidades coletivas, como escolas, serviços de saúde, etc. (Cf. MARX, 2012, p. 29). “É a ‘classe trabalhadora’ que tem de libertar – o quê? – ‘o trabalho’” (MARX, 2012, p. 34).

Se “a burguesia se desenvolveu dentro da ordem feudal, mas fora do eixo central da relação senhores feudais/servos dos quais a classe dominante extraía sua fonte principal de riqueza” (IASI, 2011, p. 97) – concordamos que provavelmente foi assim que se deu historicamente -, é provável que a classe revolucionária que guiará o processo de emancipação humana para uma sociedade para além do capitalismo e do capital, não será composta pelo proletariado, classe presa à própria relação fundamental do capital/trabalho - proprietários dos meios de produção/trabalhadores assalariados -, mas poderá ser a classe camponesa - o campesinato na sua imensa pluralidade de expressões - e todas as trabalhadoras e todos os trabalhadores que sobrevivem injustiçados à margem do eixo central do sistema do capital: indígenas, quilombolas, sem-teto e todos os injustiçados por motivos de gênero, etnia, orientação sexual etc.

A forma como a sociedade em geral e a classe dominante, em particular, veem os Movimentos Populares, condiciona, pelo menos em parte, como os Movimentos Populares se veem. Parafraseando Arroyo, podemos dizer: para o êxito dos Movimentos Populares do campo e da cidade é imprescindível reconhecer a centralidade e a força matriz da luta pela terra, pelo território, com todas suas raízes culturais e religiosas. A terra, ao longo da história, tem sido âncora de sustentação dos movimentos de luta por emancipação. O trabalho coletivo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) irradia a centralidade da luta pela terra, que é disputada pelo poder do capital. Enquanto perdurar o cativeiro da terra na brutal injustiça agrária pautada no latifúndio, que viabiliza o agronegócio com uso indiscriminado de agrotóxicos, em latifúndios de monoculturas e muitas vezes com trabalho análogo à situação de escravidão, o trabalho alheio continuará sendo sugado para o enriquecimento da classe dominante.

Enfim, urge superarmos a lógica e as relações sociais que promovem riqueza e luxo para uma minoria à custa do trabalho alheio, ou seja, os/as trabalhadores/as trabalhando e produzindo não para si mesmos, mas para os patrões. Isto é a negação da utopia bíblica de “novos céus e nova terra” profetizada pelos discípulos e discípulas do grande profeta Isaías ao bradar: “Construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer, porque a vida do meu povo será longa como a das árvores, meus escolhidos poderão gastar o que suas mãos fabricarem ...” (Isaías 65,21-22). Que tenhamos a graça e a fibra de seguirmos lutando para a construção desta utopia: uma sociedade com pessoas livres, sem opressões, sem explorados e sem exploradores, respeitando os direitos da natureza, inclusive.

04/11/2021

Referências

IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.

 

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Frei Carlos Mesters, Paulo Freire da Bíblia - Por frei Gilvander - 1º/11/2021

2 - Mineradora Vale S/A insiste em obter Licenciamento para devastar a Serra da Gandarela tb. Por Teca

3 - Plano Urbanístico da Ocupação Cidade de Deus de Sete Lagoas, MG: UMA MARAVILHA! Vídeo 3 - 29/09/2021

4 - "Absurdo fábrica de cerveja Heineken em Pedro Leopoldo/MG, no Sítio Arqueológico da Luzia" (Alenice)

5 - Chaves de leitura do livro de Josué: Partilha da terra - Mês da Bíblia 2022. Por Ildo Bohn e CEBI/MG

6 - Noite Cultural 34ª Romaria de Canudos, BA: Viva Antônio Conselheiro e as lutas populares! - 23/10/21



 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

De cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo sua necessidade. Por Frei Gilvander

 De cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo sua necessidade. Por Frei Gilvander Moreira[1]



Segundo a mística e a espiritualidade bíblica, o ser humano é “imagem e semelhança de Deus” (Gênesis 1,26), é cocriador – tem um infinito potencial criativo -, “nosso corpo é templo do Espírito Santo” (I Cor 6,19), ou seja, pulsa em nós um infinito potencial de humanização, sede de emancipação humana que pressupõe a superação de toda e qualquer intermediação para o ser humano se realizar enquanto ser humano. Emancipar, dentre outras coisas, implica esclarecer-se, mas não apenas em sentido intelectual. O filósofo Kant ensina que “esclarecimento é a saída dos homens de sua autoinculpável menoridade” (KANT apud ADORNO, 1995, p. 169). Superar a “menoridade”, segundo Kant, exige a capacidade do ser humano de “fazer uso de seu próprio entendimento” e “servir-se de si mesmo sem a direção de outrem” (KANT, 1985, p. 100). Sem condições materiais históricas objetivas que questionem o sistema do capital, a ideologia dominante impera e sem o esclarecimento da vontade de cada pessoa qualquer sociabilidade fica fadada ao fracasso. O pensamento não é tudo o que garante uma práxis de emancipação humana, mas “sem o pensamento, e um pensamento insistente e rigoroso, não seria possível determinar o que seria bom a ser feito, uma prática correta” (ADORNO, 1995, p. 174). Por aqui vemos a necessidade de que a luta pela terra, por moradia e por todos os direitos, seja acompanhada de estudo, reflexão, busca de conhecimento que desenvolva a consciência crítica e criativa dos sujeitos. Isso aparece de forma muito incisiva nos depoimentos dos militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), como, por exemplo, “a troca de experiência e de aprendizados é muito mais enriquecedora do que o repasse de conhecimentos teóricos apreendidos em livros. Aprende-se fazendo e construindo juntos” (Michele Neves Capuchinho, Sem Terra do MST do sul de Minas). Ou: “Devagar a ignorância foi diminuindo. Foi evoluindo até começar a chegar notícias dizendo que tinha acontecido uma invasão de uma fazenda em um lugar, em outro. Aí foi tombando, tombando até que Deus ajudou e o conhecimento chegou aqui no Salto da Divisa, MG” (Aulerino Lopes Do Nascimento, Sem Terra do Assentamento Dom Luciano Mendes).

O filósofo Kant percebia a tendência das pessoas a permanecer ou se refugiar na ‘menoridade’. Além disso, a liberdade individual tem sempre restrições impostas por hábitos culturais veiculados na sociedade do capital. Por exemplo: “O hábito espalhado por toda a parte de impor certos limites à prática da razão, como o oficial que diz: raciocinai, mas mantenha a disciplina dos exercícios! Do financista que afirma: raciocinai, mas pagai! Do sacerdote que afirma: raciocinai, mas crede! E, por fim, do soberano que proclama: “raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei” (KANT, 1985, p. 104). Mais do que limites à ‘prática da razão’, as relações sociais do capital impõem limites a práticas para além do capital, por exemplo: não faça greve, senão você será desempregado; não ocupe terra, senão você será considerado um invasor e poderá inclusive ser assassinado. Não advogamos uma liberdade irresponsável e sem limites, pois “a liberdade sem limite é tão negada quanto a liberdade asfixiada ou castrada” (FREIRE, 2015, p. 103).

Educação por uma emancipação humana exige exercício de pedagogias com práticas não autoritárias, ou seja, em clima de liberdade. Isso é conditio sine qua non para animar processos emancipatórios dos sujeitos. Solapa também a emancipação dos sujeitos e da sociedade o endeusamento da heteronomia, que é a crença de que é sempre outro - fora de mim e superior a mim – que legisla sobre mim, determinando o que é permitido ou proibido, certo ou errado, o que se deve fazer ou não, como viver, comportar e conviver. Emancipar-se humanamente não é apenas se tornar rebelde e protestar contra todo e qualquer tipo de autoridade. “O modo pelo qual – falando psicologicamente – nos convertemos em um ser humano autônomo, e, portanto, emancipado não reside simplesmente no protesto contra qualquer tipo de autoridade” (ADORNO, 1995, p. 176). Segundo Freud, primeiro as crianças interiorizam a autoridade do pai, assimilando-a, mas somente através de um processo doloroso e indelével descobrem que a figura paterna não corresponde ao eu ideal que aprenderam dele, “libertando-se assim do mesmo e tornando-se, precisamente por essa via, pessoas emancipadas” (ADORNO, 1995, p. 177).

Há uma tendência nas pessoas a aceitar aquilo que é padrão social dominante na sociedade e para quem não aceita existem esquemas de força ou de sedução para inculcar o que é hegemônico. Nesse sentido, Adorno diz: “As pessoas aceitam com maior ou menor resistência aquilo que a existência dominante apresenta à sua vista e ainda por cima lhes inculca à força, como se aquilo que existe precisasse existir dessa forma” (ADORNO, 1995, p. 178). “A emancipação precisa ser acompanhada de uma certa firmeza do eu” (ADORNO, 1995, p. 180), mas isso é um desafio em situações de constantes mudanças e de inúmeras inseguranças decorrentes do processo de exploração e expropriação perpetrado pelo capital. Enfatizamos que emancipação não se trata de uma categoria estática, mas é uma categoria dinâmica, um vir-a-ser, não um ser que é, mas pode tornar-se. Portanto, não podemos falar de pessoas ou sociedades emancipadas ou não emancipadas, mas podemos falar de pessoas ou povos em processo e movimento de emancipação humana ou não.

Os seres humanos, em processo de emancipação humana, pela ação concreta seguem por um caminho de envolvimento histórico, asfixiando, assim, o desenvolvimento histórico que aparenta ser inexorável. Ao tirar o oxigênio do metabolismo do capital, negando-o, lutando pelo fim da propriedade privada dos meios de produção e inaugurando outra relação social de produção para além do capital, na qual o valor de uso seja critério entre os intercâmbios humanos e que se respeite a equação: de cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo sua necessidade. “A emancipação humana segue em sua ação prática uma rota oposta ao desenvolvimento histórico. Ao realizar uma revolução e quebrar o metabolismo do capital (ou iniciar sua negação) pela negação da propriedade privada dos meios de produção e a negação da força de trabalho como mercadoria, não se quebra a produção de mercadorias, prevalecendo ainda o critério do valor como medida do intercâmbio entre o trabalho oferecido e os produtos retirados por cada um do fundo social. Para superar a lógica da mercadoria é necessário reestabelecer a determinância do valor de uso, chegando, assim, à famosa equação de cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo sua necessidade” (IASI, 2011, p. 73).

27/10/2021

Referências

ADORNO, Theodor Wiesengrund. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

______. Crítica cultural e sociedade. In: COHN, G. Theodor W. AdornoSão Paulo: Ática, 1985.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

 Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Noite Cultural 34ª Romaria de Canudos, BA: Viva Antônio Conselheiro e as lutas populares! - 23/10/21

2 - “Sem decisão judicial, PBH proíbe famílias de concluir suas casas nas Ocupações"- Vídeo 11 –15/10/21

3 - Frei Gilvander exige da PBH, COPASA e CEMIG água e energia nas Ocupações da Izidora.Vídeo 7-15/10/21

4 - “BH deixa 130 ocupações sem rede de água e energia. 9.000 famílias só na Izidora" -Vídeo 5 –15/10/21

5 - "As 8 mil famílias da Izidora estão sendo violentadas pelo poder público." Edna. Vídeo 4 - 15/10/21

6 - “Não dá mais para tolerar o descaso do Poder Público com famílias das ocupações”. Vídeo 3 – 15/10/21

7 - “Ocupação Helena Greco, BH: 11 anos clamando por água e energia. Cadê COPASA e CEMIG?” (Andresa).V.2

8 - “Basta de falta d'água e energia nas Ocupações da Izidora! PBH e Governo de MG?” -Charlene/Rosa Leão



 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Emancipação humana é possível? Por Frei Gilvander

Emancipação humana é possível? Por Frei Gilvander Moreira[1]



Emancipação humana não se trata apenas da relação entre religião e emancipação política. Não basta a desalienação religiosa para o ser humano se emancipar humanamente. “O problema de fundo no pensamento marxiano encontra-se no fato de o ser humano não se reconhecer como humano, atribuindo sua sociabilidade para algo além de si” (IASI, 2011, p. 49-50), o que o impede de ser sujeito da história humana. Marx conclui que “a questão da relação entre emancipação política e religião transforma-se para nós na questão da relação entre emancipação política e emancipação humana” (MARX, 2010, p. 38). O processo revolucionário de emancipação humana exige a “irrupção de uma classe com elos radicais, de uma classe da sociedade civil burguesa que não é uma classe da sociedade civil burguesa; de um estado que é a dissolução de todos os estados sociais” (MARX, 2010, p. 17).

A emancipação humana pressupõe a superação de toda e qualquer intermediação para o ser humano se realizar enquanto ser humano. Nem a religião, nem o Estado, nem o mercado, nem o patrão, ninguém pode ser intermediário na ação humana emancipada. “O homem não é um homem abstrato “agachado fora do mundo”, é o “mundo do homem”, o homem em sociedade que produz, troca, luta, ama. É o Estado, é a sociedade” (MARX, 2010, p. 25). As inversões engendradas pela produção e reprodução da vida segundo o modo de produção capitalista aparecem no Estado, mas são produzidas pelos seres humanos ao se venderem como mercadoria para um capitalista que lucra, acima de tudo, com a mercadoria força de trabalho produzindo mais-valia e, assim, acumulando capital. Se apenas o Estado e a classe dominante fossem violentos seria menos difícil o processo de emancipação, mas a violência está assimilada e interiorizada pelos indivíduos, o que faz com que a violência do Estado e do capital apareça como desvios, excrescência e não como sua própria natureza. Portanto “a emancipação humana – tal como pensada por Marx, como a restituição do mundo e das relações humanas aos próprios seres humanos – exige a superação de três mediações essenciais: da mercadoria, do capital e do Estado” (IASI, 2011, p. 56).

Para Marx a emancipação religiosa se insere no bojo da emancipação humana. Nesse sentido ele afirma: “O reflexo religioso do mundo real somente pode desaparecer quando as circunstâncias cotidianas, da vida prática, representarem para os homens relações transparentes e racionais entre si e com a natureza. A figura do processo social da vida, isto é, do processo da produção material, apenas se desprenderá do seu místico véu nebuloso quando, como produto de homens livremente socializados, ela ficar sob seu controle consciente e planejado” (MARX, 1996, p. 205).

Concordamos com Marx e Feuerbach quanto à crítica da religião, porém não excluímos todo e qualquer tipo de expressão religiosa. De fato há em muitas práticas religiosas – não em todas - alienação, estranhamento e, pior, encobrimento de opressões e violências perpetradas nas relações sociais capitalistas que uma religião burguesa ofusca e, por isso, se torna cúmplice do sistema capitalista. Mas, advogar que em uma sociedade emancipada humanamente os seres humanos não terão mais necessidade de práticas religiosas somente a história humana poderá dizer se isso se cumprirá ou não. Desde a Teologia da Libertação não vemos incongruência entre superar as relações do capital e todas as formas de opressão e, assim, criar um novo homem e uma nova mulher em uma sociabilidade revolucionada e revolucionária para além do capital e cultivar uma dimensão religiosa que vê no humano o divino. Óbvio que enquanto houver produção e reprodução material sob a égide do capital haverá alienação religiosa. “Faz-se necessário mudar as relações que produzem e reproduzem o fetichismo e a reificação” (IASI, 2011, p. 57).

Em uma sociedade de classes sempre será necessário uma espécie de Estado que consolide e legalize a dominação de uma classe sobre a outra. Nesse ponto, a luta pela terra e pela moradia questiona até o Estado, por meio do seu braço jurídico, que é o poder judiciário, o qual, via de regra, julga as ocupações de terra como se fossem esbulho e não como legítimas ações coletivas que postulam o cumprimento de um direito constitucional.

A emancipação humana se torna impossível sem a superação de todas as mediações que se colocam entre o humano e seu mundo e inclui a utopia com raízes na história de que o destino humano seja assumido de forma consciente, planejado e governado pelos próprios seres humanos, pela sua ação concreta, vivenciando e construindo uma sociabilidade sem opressores e oprimidos, sem patrões e empregados, sem capital, sem relações sociais que produzem mercadoria que viabilize mais-valia e acumulação do capital. Assim, o fundamento da emancipação humana está na possibilidade de os seres humanos protagonizarem o controle da história e da sua existência de forma consciente e planejada. 

19/10/2021

Referências

IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.  

______. O Capital: crítica da economia política (Vol. 1, Livro 1). O processo de produção do capital. Tomo 1, Capítulos I a XII. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1996.

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - “Ocupação Helena Greco, em Belo Horizonte, há 11 anos clama por rede de água e energia. Cadê COPASA e CEMIG?” (Andresa, Coord. Ocupação Helena Greco. Vídeo 2.

2 - “Basta de falta d'água e energia nas Ocupações da Izidora! PBH e Governo de MG?” -Charlene/Rosa Leão

3 - “MP com boca sem dente?” Frei Gilvander: "PEC 05/21 retira autonomia do Ministério Público"–18/10/21

4 - Violações de direitos nas Comunidades da Izidora/BH: Debate em Audiência Pública/ALMG - 16/10/2021

5 - Bairros periféricos de Ibirité, MG, na rota do Rodoanel. Vem aí devastação! Uai! Vídeo 9 – 10/10/21

6 - Palavra Ética na TVC/BH: PBH violando Direitos das Ocupações da Izidora e Tributo a Zé Veio -28/9/21

7 - “Fora, Rodoanel da RMBH!” Na TVC/BH no Palavra Ética. Fora, Rodominério ecocida e hidrocida –18/8/21



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III