Em
“Carta ao Povo de Deus”, 152 bispos profetas encaram o desgoverno federal
Por Gilvander Moreira[1]
Em postura corajosa e profética, 152
bispos da Igreja Católica assinaram Carta ao Povo de Deus, divulgada dia
26/7/2020 na Coluna de Mônica Bergamo, na Folha de São Paulo, se posicionando
contra os desmandos do atual desgoverno federal chefiado por Jair Bolsonaro. Muitos
outros bispos poderão assinar esta Carta em breve, pois só cresce o número de
bispos e dos padres não apoiam o atual presidente que comanda política
autoritária, criminosa, genocida e ecocida. Na Carta, os 152 bispos dizem em
alto e bom tom: “Nesta sociedade
estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não comporta
indiferença. [...] Temos clareza de que a proposta do Evangelho não consiste só
numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser
entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns
indivíduos necessitados […], uma série de ações destinadas apenas a
tranquilizar a própria consciência.”
Os bispos alertam que o Brasil atravessa
um dos períodos mais difíceis de sua história com “a combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador
colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da
República, provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros
setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança.”
“Não cabe omissão, inércia e nem conivência
diante dos desmandos do Governo Federal”, pontuam os bispos. Todos devem “combater as mazelas que se abateram sobre o povo brasileiro e a Casa
Comum, ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de madeireiros,
garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores de um
desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe terra.” Os 152
bispos denunciam também “a liberação do
uso de agrotóxicos antes proibidos e o afrouxamento do controle de
desmatamentos.” “Não podemos
pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As feridas causadas à nossa
mãe terra sangram também a nós”” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da
Colômbia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/6/2020).”
Com a ira santa de Jesus Cristo diante
dos vendilhões do templo, lugar sagrado, os 152 bispos denunciam: “Assistimos, sistematicamente, a discursos
anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de
mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o
caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são
projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à
manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos
princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a
Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que veio “para que todos tenham
vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). [...] As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a
vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais
a vida do povo.”
Profetizam os bispos: “É insustentável uma economia que insiste no
neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em
detrimento da grande maioria da população”. Como bons pastores que não
apenas cuidam das ovelhas feridas, mas enfrentam os lobos vorazes, os 152
bispos denunciam: “O sistema do atual
governo não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa
intransigente dos interesses de uma “economia que mata” (Alegria do Evangelho,
53), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço. Convivemos, assim, com a
incapacidade e a incompetência do Governo Federal, para coordenar suas ações,
agravadas pelo fato de ele se colocar contra a ciência, contra estados e
municípios, contra poderes da República; por se aproximar do totalitarismo e
utilizar de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a
democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo
pela população, e o recurso à prática de suspeitas ações de comunicação, como
as notícias falsas, que mobilizam uma massa de seguidores radicais.”
De forma lapidar e com precisão
cirúrgica, os 152 bispos põem o dedo nos desmandos do desgoverno federal: “O desprezo pela educação, cultura, saúde e
pela diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações
de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da
educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos
ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento
e depreciação de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil;
na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de
imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na
indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de
infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no
Ministério da Saúde; na desnecessária tensão com os outros entes da República
na coordenação do enfrentamento da pandemia; na falta de sensibilidade para com
os familiares dos mortos pelo novo coronavírus e pelos profissionais da saúde,
que estão adoecendo nos esforços para salvar vidas.”
A idolatria do mercado é denunciada com
veemência também pelos 152 bispos: “No plano
econômico, o ministro da economia desdenha dos pequenos empresários,
responsáveis pela maioria dos empregos no País, privilegiando apenas grandes
grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos financeiros que nada
produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o número de desempregados
ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal descontinuidade da
destinação de recursos para as políticas públicas no campo da alimentação,
educação, moradia e geração de renda.”
Com veemência profética, continuam os
152 bispos: “Fechando os olhos aos apelos
de entidades nacionais e internacionais, o Governo Federal demonstra omissão,
apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as
comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias
urbanas, dos cortiços e o povo que sobrevive nas ruas, aos milhares, em todo o
Brasil. [...] O Presidente da República, há poucos dias, no Plano Emergencial
para Enfrentamento à COVID-19, aprovado no legislativo federal, sob o argumento
de não haver previsão orçamentária, dentre outros pontos, vetou o acesso a água
potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia
intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos territórios
indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais” (Cf. Presidência da
CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020).
Os 152 bispos interpelam nossa
consciência: “Como não ficarmos
indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a
falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o
amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua
justiça?” Cientes que mudança emancipadora só vem de baixo para cima, a
partir dos explorados, os 152 conclamam a todas as pessoas de boa vontade: “Despertemo-nos, portanto, do sono que nos
imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da
violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai
avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a
armadura da luz”” (Romanos 13,12).
Esta Carta ao Povo de Deus é tão
contundente e profética como os Documentos divulgados por bispos da Igreja
Católica nos anos de chumbo da ditadura militar-civil-empresarial iniciada em
31 de março de 1964. Dia 6 de maio de 1973 – ano do milagre econômico -, 18
bispos e superiores religiosos do regional Nordeste II da CNBB lançaram o
documento Eu ouvi os clamores do meu povo, que denunciava as práticas
assistencialistas da Igreja, pois eram mancomunadas com os dominadores (Eu ouvi
os clamores, 1973, p. 10). Nesse
Documento, os bispos do Nordeste analisavam e propunham revisão de postura.
Diziam os bispos do Nordeste: “A Igreja
tem feito o jogo dos opressores, tem favorecido aos poderosos do dinheiro e da
política contra o bem comum. [...] À luz, portanto, de nossa Fé e com a
consciência da injustiça que caracteriza as estruturas econômica e social de
nosso país, entregamo-nos a uma profunda revisão de nossa atitude de amor pelos
oprimidos, cuja pobreza é a outra face da riqueza de seus opressores” (Eu
ouvi os clamores, 1973, p. 27).
Seis bispos do Centro-Oeste, da parte
mais violentada da Amazônia, também lançaram no mesmo dia, 6 de maio de 1973, o
documento Marginalização de um povo – grito das Igrejas, onde se
afirmava: “Precisamos apoiar a
organização de todos os trabalhadores. Sem isto, eles não se libertarão nunca”
(Marginalização de um povo, 1973, p. 42).
Os bispos denunciavam a exploração a que era submetido o povo
trabalhador nas contradições do capitalismo: “[...] é um povo que luta e labuta, diário, num trabalho que, se não tira da
pobreza os que trabalham, serve para enricar mais ainda os que já são ricos.
[...] O latifúndio está crescendo, fica mais poderoso. E tem apoio das
autoridades. [...] O sistema capitalista é a fonte de todos os males que
assolam a vida do povo” (Marginalização de um povo, 1973, p. 9 e 14). E,
mesmo confundindo dinheiro com capital, os bispos do Centro-Oeste compreendiam
as contradições do capital e anunciavam uma utopia: “Queremos um mundo onde os frutos do trabalho sejam de todos. Queremos
um mundo em que se trabalhe não para enriquecer, mas para que todos tenham o
necessário para viver: comida, zelo com saúde, casa, estudos, roupa, calçados,
água e luz. Queremos um mundo em que o dinheiro esteja a serviço dos homens e
não os homens a serviço do dinheiro” (Marginalização de um povo, 1973, p.
43).
Os bispos e missionários da causa
indígena lançaram também em 25 de dezembro de 1973 a declaração Y-juca-pirama
– o índio: aquele que deve morrer, que era “documento de urgência”. Nesse
se repudiava ‘civilizar’ os indígenas e defendia o reconhecimento das culturas
indígenas. Nesse sentido afirmavam: “O objetivo
do nosso trabalho não será ‘civilizar’ os índios. [...] Urgente necessidade de
reconhecer e publicar certos valores que são mais humanos, e assim, mais evangélicos
do que os nossos ‘civilizados’ e constituem uma verdadeira contestação à nossa
sociedade” (Y-Juca-Pirama, 1973, p. 21).
Esses documentos assinados por vários
bispos deixavam patente a necessidade de uma mudança radical na atuação
pastoral da Igreja. No livro O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História
Lenta, José de Souza Martins aponta a revolução que esses Documentos de vários
bispos provocavam: “Esses documentos
anunciavam uma verdadeira revolução no trabalho pastoral, e constatavam que, de
fato, o capitalismo subdesenvolvido e tributário não levaria à emancipação dos
pobres. Ao contrário, o desenvolvimento econômico, que o Estado e o capital
levavam adiante, no País, semeava fome, violência, destruição e morte”
(MARTINS, 1999, p. 137).
A Igreja muda para contribuir com o
processo de emancipação humana da classe trabalhadora e do campesinato ao
abraçar a opção pelos pobres, que “é uma
opção preferencial pela des-ordem que desata, desordenando, os vínculos de
coerção e esmagamento que tornam a sociedade mais rica e a humanidade mais
pobre. E ao desatar, liberta” (MARTINS, 1989, p. 57). Deus levanta os líderes da Igreja para denunciar
o mal e anunciar que seu povo e toda a criação devem ser tratados com respeito
e justiça, e conclamar a ações libertadoras, transformadoras . “Ele te
declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o Senhor pede de ti: que pratiques
a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus”
(Miquéias 6,8). Com o monge Marcelo Barros saudamos “a volta da profecia na voz
dos cuidadores do povo de Deus” e esperamos que estas denúncias claras contra o
desgoverno federal que nos assola possam continuar por posicionamento claro
destes bispos sobre os setores da nossa própria Igreja que apoiam esta
iniquidade ou simplesmente ao se omitirem nesta hora a legitimam. Quem tiver
ouvidos, ouça o que os 152 bispos dizem e enxergue o caminho que apontam.
Referências.
MARTINS,
José de Souza. O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História Lenta. 2ª edição. São
Paulo: HUCITEC, 1999.
MARTINS,
José de Souza. Caminhada no chão da
noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais do campo.
São Paulo: HUCITEC, 1989.
Documento
de Bispos e Superiores Religiosos do Nordeste - Eu Ouvi os Clamores do Meu Povo. Salvador, Editora Beneditina,
1973; Marginalização de um Povo – o
Grito das Igrejas, Goiânia, 1973; Y-Juca-Pirama
– o Índio Aquele que Deve morrer (Documento de urgência de Bispos e
Missionários), s.e., s.l., 1973.
28/7/2020.
Obs.: Os vídeos nos
links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1
- 3ª Live do Movimento Inter-Religioso do Vale do Aço, MG: Fora, Bolsonaro? –
Debate Inter-Religioso.
2
- Live - Fora Bolsonaro e o (des)governo federal? - Debate interreligioso
3
- Live CRISTÃOS TAMBÉM GRITAM: “FORA BOLSONARO”!!! - Frei Gilvander Moreira,
Pastor Daniel Elias (Frente de Evangélicos/PT), Renata Miranda (Frente de
Evangélicos/MG), Sara Suzan (PJ) e Paulo Amaral.
4
- Padre Nelito Dornelas: Debate Inter-Religioso "Fora, Bolsonaro e o
(des)governo federal?"- 26/7/2020
5
- Dom Vicente Ferreira na Live "Fora, Bolsonaro e o (des)governo
federal?" - Debate Inter-Religioso, dia 12/7/2020.
6
- Irmã Claudicéa Ribeiro na Live "Fora, Bolsonaro e o (des)governo
federal?" - Debate Inter-Religioso – 12/7/2020.
7
- Padre Ronan: "Fora, Bolsonaro e esse governo de morte!" Eloquência
e Profetismo - 12/7/2020
8
- A voz profética de dom Mauro Morelli: Por que "Fora, Bolsonaro"? -
12/7/2020
9
- Padre Edson, de Artur Nogueira/SP reafirma denúncias das opressões causadas
por Bolsonaro. 05/7/2020
10
- Frei Gilvander e Dom Mauro Morelli na Live "Fora, Bolsonaro e o
(des)governo federal?" - Parte I
11
- Frei Gilvander na Live Cristãos também gritam "FORA BOLSONARO e todo
desgoverno federal!"- 28/6/2020
12
- Padre José Ailton: Faz carreata contra Quarentena quem não se preocupa com a
vida dos trabalhadores
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT,
CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III