Parábola
do semeador e luta por direitos
Por Gilvander Moreira[1]
Uma parábola que está na Bíblia, no Evangelho de
Marcos, nos coloca em contato com a situação dos sem-terra da atualidade e dos
Sem Terra[2]
do primeiro século na Palestina colônia do império romano. Ei-la: “Escutem. Um
homem saiu para semear. Enquanto semeava, uma parte caiu à beira do caminho; os
passarinhos foram e comeram tudo. Outra parte caiu em terreno pedregoso, onde
não havia muita terra; brotou logo, porque a terra não era profunda. Porém,
quando saiu o sol, os brotos se queimaram e secaram, porque não tinham raiz.
Outra parte caiu no meio dos espinhos. Os espinhos cresceram, a sufocaram e ela
não deu fruto. Outra parte caiu em terra boa e deu fruto, brotando e crescendo;
rendeu trinta, sessenta e até cem por um. E Jesus dizia: Quem tem ouvidos para
ouvir, ouça!” (Marcos 4,3-9).
É o trabalho dos camponeses que está refletido no
enredo da parábola do semeador! Trabalho duro, de sol a sol, dificultado por
conta da política praticada pelo poder do Império Romano e pelos seus
representantes na Palestina. A situação no campo se tornou de extrema penúria.
Havia grandes extensões de terra nas mãos de poucos, particularmente romanos ou
seus representantes. As aristocracias das cidades de Tiberíades e Jerusalém
eram também proprietárias de muita terra, em geral as mais férteis. A produção
visava particularmente à exportação. A parábola do semeador fala de um
trabalhador camponês que resiste e não se sujeita a cumprir os papéis
subalternos e submissos que o sistema imperial lhe impõe. Seu trabalho se dá no
lançar sementes à beira do caminho, na pedra, entre espinhos e, finalmente, em
terra boa. A parábola chama a atenção para as duras condições de trabalho dos
camponeses pobres explorados e expropriados e nos convoca a perceber como é
grave a realidade que é narrada! Aos camponeses que não baixam a cabeça só
resta a beira da estrada, o terreno com pedras ou cheio de espinhos, e isso se
sobrar. A parábola nos leva a refletir sobre a injustiça da situação concreta vivenciada
pelo camponês, mas aponta também para outro horizonte: o da alegria da fartura,
o da produção abundante. Na verdade, as três primeiras etapas do trabalho do
camponês aparecem em um crescente, apontando para a semeadura em terra boa, com
o resultado esperado. A persistência do trabalhador terá sua recompensa. Além
disso, deve-se notar que a parábola não declara quem é o destinatário da
produção ou se outra pessoa que não o trabalhador camponês se aposse dela. Mas
é inevitável pensar sobre isso pois, é sabido que os impostos injustos
acabariam por açambarcar boa parte de
sua produção. No horizonte do texto do evangelho de Marcos 4,3-9, da década de 70 do primeiro século da Era Cristã,
o destinatário da produção não pode ser senão o semeador quem trabalha a terra!
Essa parábola profética se atreve a propor a utopia da terra libertada: sem
donos, sem quem se aposse do trabalho de outros, sem que um plante para outro
colher. Utopia narrada poeticamente no livro do profeta Isaías: “Os homens
construirão casas e as habitarão, plantarão videiras e comerão os seus frutos.
Já não construirão para que outro habite a sua casa, não plantarão para que
outro coma o fruto” (Isaías 65,21-22a).
No Evangelho de Lucas há duas narrativas de envio
de discípulos: Lucas 10,1-12, em que Jesus sugere aos discípulos irem para a
missão despojados e desarmados, e Lucas 22,35-38, que trata da hora do combate,
da luta, do enfrentamento. Na missão de construção de uma sociedade justa e
solidária, ao tomar partido ao lado dos superexplorados e ‘dar nomes aos bois’,
explicita-se as divisões e desigualdades sociais existentes na sociedade
capitalista. Os incomodados tendem naturalmente a querer silenciar aqueles/as
que os estão incomodando. Nesta hora de perseguições exige-se resistência. Por
isso, o evangelho de Lucas propõe aos discípulos para o exercício da missão “pegar bolsa e sacola, uma espada – duas no
máximo” (Lucas 22,36-38). No artigo “Seguir Jesus, desafio que exige
compromisso”, ponderamos: “Resistir não é violência, é legítima defesa. Diante
de qualquer tirania e de um Estado violentador, vassalo do sistema capitalista
que sempre tritura vidas e pratica injustiças, é dever das pessoas resistir
diante das opressões perpetradas contra os empobrecidos, os preferidos de
Jesus.” Lucas, em Lc 22,35-38, sugere desobediência civil – econômica, política
e religiosa. Em uma sociedade desigual, esse é “outro caminho” a ser seguido
por nós, discípulos e discípulas de Jesus, o rebelde de Nazaré.
Os quatro evangelhos da Bíblia[3] relatam
que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, indignado, ocupou o
templo de Jerusalém, lugar sagrado. O nazareno fez um chicote de cordas e
expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos
sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos
que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres
porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou:
‘Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio’
(João 2,16). O templo era espaço sagrado, lugar do culto e de se humanizar. O
templo era uma instituição transformada em uma espécie de Banco Central do país
+ bancos + bolsa de valores. Atualmente, o território brasileiro com todos seus
biomas e com todos os povos são nosso “templo” que está sendo violentado pelos
novos ‘vendilhões do templo’, os fascistas e os capitalistas. Feliz quem,
possuído por uma ira santa, participar da luta para expulsar os atuais
mercadores da vida e que degradam as condições objetivas que a viabilizam. Há
que se semear na própria terra e não em terra alheia ou para que usufrua o
patrão. O desafio é ser discípulo/a crítico e criativo e lutar de forma
coletiva para expulsar os atuais ‘vendilhões do templo’, que insistem em usurpar
todas as formas de vida existentes em nosso país: o povo, os biomas e toda a biodiversidade
que ela congrega. Tudo isso para que a vida, o que há de mais sagrado, e todas
as condições para sua existência sejam garantidas.[4]
21/7/2020.
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Frei Gilvander contra despejo de famílias Sem
Terra do MST em Campo do Meio, sul de MG - 07/7/2020
2 - Sem Terra sobreviventes do massacre de
Felisburgo, MG, jamais vão aceitar despejo. Vídeo 2 12/3/20
3 - "Sem medo de ser mulher" e Cruz do
Compromisso na IV Romaria/Águas/Terra/Bacia/rio Doce. Vídeo 10
4 - Quem luta coletivamente conquista. Sem Terra, do
MTC, em Córrego Danta, MG. Vídeo 7 - 16/8/2019.
5 - Sem Terra produz alimentos saudáveis: MTC em
Córrego Danta, centro-oeste/MG. Vídeo 4 - 16/8/2019
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT,
CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2]
Sem Terra diz respeito aos sem-terra conscientes e organizados que estão na
luta pelo acesso à terra e sem-terra são os expropriado do acesso à terra, os
explorados.
[4] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora
em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.
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