Jesus
visita hotel de prostituição
Por frei Gilvander Moreira[1]
Arte: Divulgação / redes sociais |
“(...) as prostitutas vos precederão no Reino de Deus” (Mateus 21,31).
“De que me vale ser filho da santa / Melhor
seria ser filho da outra / Outra realidade menos morta / Tanta mentira, tanta força bruta…”
(Música Cálice, de Chico Buarque)
Certa vez, Jesus reuniu as discípulas e
os discípulos e os convidou para a missão: "Quando vocês forem anunciar a
Boa Nova do Reino, não levem dinheiro nem comida, mas confiem no povo. Digam: O
Reino chegou! Está chegando!'" E as discípulas e os discípulos assim foram
para a missão. Maria Madalena e Jesus também foram. Andaram, andaram. Estava
começando a escurecer, quando, a convite de Maria Madalena, Jesus chegou num
dos “hotéis de alta rotatividade” da rua Guaicurus, no centro de Belo
Horizonte, região onde se concentra o maior número de mulheres que exercem a
prostituição como profissão na capital de Minas Gerais. Jesus viu prédios
velhos e mal cuidados. Viu os quartos de alguns hotéis em péssimas condições
sanitárias, muito pequenos, e com pouca ventilação. Alguns não tinham sequer
água encanada, em outros, apenas uma pia, ou um pequeno bidê e pia.
Perspicaz e com fino faro, Jesus não viu
apenas as condições físicas dos hotéis de prostituição. Jesus viu milhares de
mulheres que ali tentavam ganhar o pão de cada dia, quase todas mães, filhas empobrecidas
de famílias do interior e até de outros estados do Brasil. Jesus ouviu ali que
certos saduceus, ricos piedosos, sem nunca ouvir as ‘mulheres da batalha’ –
‘mulheres da vida’ -, as taxavam de promíscuas, de pecadoras e libertinas.
Jesus ficou indignado com esse moralismo. Jesus viu que a luz e força divina estavam
presentes naquelas mulheres prostituídas, pois encontrou muita humanidade no
meio delas. Jesus viu que desde muito cedo aquelas jovens tiveram de buscar
meios de promover o próprio sustento. Jesus viu nelas mães, que precisaram
prover os próprios filhos desde a infância. Jesus viu que todas tinham no
coração um grande sonho: melhorar de vida. “Sonhamos com dias melhores”, Jesus
ouviu isso de várias.
Com muito respeito, após ver e ouvir
muito, Jesus começou a dialogar com as ‘mulheres da batalha’. Perguntou: “Quais
os motivos que levaram vocês a abraçarem a prostituição como uma profissão?”
Uma a uma, foram dizendo: falta de orientação familiar, falta de oportunidades,
necessidade de luxo, ilusão, baixa escolaridade, falta de profissão, filhos
para sustentar, dificuldades da vida, necessidade de comprar o amor da família
etc.
Jesus viu que as ‘mulheres da batalha’ almoçavam
às pressas. Caso perdessem tempo, não conseguiriam pagar a diária no fim do dia
e perderiam o acesso à chave do quarto no dia seguinte, por 6 ou 8 horas. “Não
repare, mas coma com a gente!”, disseram a Jesus. Enquanto almoçava com elas,
Jesus arriscou perguntar: “O que causa medo em vocês?” Disseram: “Os homens
violentos com seus desejos abusivos, o autoritarismo dos gerentes dos hotéis, o
medo de não conseguir pagar a diária, a falta de chaves (quartos) para
trabalhar, o hotel sem clientes, AIDS, drogas, a doença mental, a
discriminação...”. Uma que não quis revelar o nome desabafou: “A maior tristeza
da prostituta é ser discriminada. Como posso falar que sou prostituta? Muitas
pessoas nos julgam sem conhecer a gente a fundo. Deus não discrimina ninguém.”
Com olhar atento, respeitoso e sentindo
com o coração, Jesus percebeu que reinava ali um clima amistoso. Ele viu que a ‘zona’
permite que a mulher encontre espaços para exercer um pequeno poder e para que
os homens expressem suas fragilidades. Jesus ouviu lá: “Muitos homens vêm aqui
para conversar e chorar; outros se tornam “clientes fixos” e estabelecem conosco
um pacto de ajuda mútua.” Jesus se comoveu ao ouvir de uma ‘mulher da batalha’:
“No dia que eu estava mal, as meninas vieram conversar comigo e eu acalmei. É
pior ficar sozinha nessas horas.” Jesus ouviu também ‘mulheres da vida’ falando
dos seus direitos trabalhistas e previdenciários sempre negados. Jesus
asseverou que o princípio da dignidade da pessoa humana implica conceder
direitos trabalhistas e previdenciários também às ‘mulheres da batalha”.
Jesus viu também como uma mulher mais
experiente dava dicas a uma novata. Jesus viu que elas tinham fé em Deus, na
vida e sentiam-se amadas por Deus. Jesus, quando menos se esperava, se viu
rodeado por muitas mulheres. Ele espontaneamente acabou dizendo: “A paz esteja
com vocês. Meu Deus é o Deus de vocês. Ele é nosso pai e nos ama infinitamente.
Não pune e nem castiga ninguém, mas pede conversão e perdoa. Está sempre de
braços e coração aberto para acolher todas suas filhas e seus filhos. Não
tenham medo! Deus está com vocês. Ama vocês.” Nesse momento, uma delas falou:
"Jesus, aqui todo mundo conhece você. Você é muito amigo da gente.
Sinta-se em casa no meio de nós!" E Jesus desapareceu fisicamente da
presença delas. “Cadê Jesus que estava aqui?”, gritou uma. Outra respondeu:
“Ele está dentro de nós. Está vivo em nós e no nosso meio.”
Aquelas mulheres, uma vez mais, fizeram
uma profunda experiência de Deus. Aquele homem que esteve com elas, diferente
de outros homens que costumam visitá-las, não veio para usá-las e explorá-las,
mas demonstrou profundo amor. Amor que entra no quarto de prostituição, que
rompe todos os preconceitos e discriminação e toca a essência humana. Amor que
anuncia a misericórdia e denuncia as injustiças. Aquelas mulheres sentiram-se
profundamente amadas por este homem que liberta com sua capacidade de sentar ao
lado e afagar a vida ferida de quem espera um gesto de amor e respeito.
Ao chegar a sua casa, Jesus olhou para
sua mãe Maria e disse: "Mãe, o Reino de Deus também está lá no meio das
‘mulheres da batalha’! Mas fiquei indignado com os donos dos hotéis que ganham
uma montanha de dinheiro submetendo as mulheres a situações degradantes. Vou
enviar minhas discípulas e meus discípulos para que revelem às ‘meninas da
batalha’ o amor de Deus e exijam dos patrões e do poder público respeito e
condições dignas para elas".
Nos corpos das ‘mulheres da batalha’ e
nos corpos das agentes de Pastoral da Mulher Marginalizada, Jesus Cristo visita
todos os dias e noites hotéis de prostituição. Agora entendo porque Jesus
gostava de dizer: “As prostitutas vos precederão no Reino de Deus” (Mateus
21,31) e porque narrou no Evangelho de Mateus que somos também descendentes de
prostitutas.
Alguém extasiado pela beleza e
encanto de uma poesia de Adélia Prado, disse a Adélia Prado, que acabava de
fazer uma palestra: “Adélia, você é a autora dessa poesia?” A poetisa de
Divinópolis divinamente respondeu: “Não. Autora é a humanidade.” Com isso
Adélia queria dizer: A inspiração para essa poesia brotou em mim, mas poderia
ter brotado em qualquer pessoa do presente ou do passado, daqui ou de outro
lugar. Somos filhas e filhos não apenas de nossos pais e mães, mas de nossos
avós, bisavós …, de todos os nossos ancestrais. Fazemos parte de uma única
comunidade de vida. Somos elos vivos de uma grande teia da vida.
Com saudade de Eliseu Lopes, grande
biblista do CEBI que agora vive em plenitude, partilho com vocês o que ele
sabiamente nos ensinou sobre mulheres prostituídas na nossa ascendência. Com
Eliseu recordamos: “Jesus de Nazaré tem linhagem. Não é qualquer um. Antes de
tudo, sua árvore genealógica em que os nomes são estacas que se alinham ao
longo de toda a história do povo da Bíblia, a começar por Abraão, o Pai Abraão.
Para o povo da Bíblia, o notável é que as genealogias, no patriarcalismo
dominante, só comportavam nomes masculinos, mas no Evangelho de Mateus (Mt 1),
figuram cinco nomes de mulheres chamadas de prostitutas, que dignificam a
ascendência de Jesus de Nazaré: Tamar, Raab, Rute, a mulher de
Urias (Betsabeia) e Maria. São mulheres que ocupam um lugar
importante na História do povo da Bíblia. São mulheres que se distinguiram pela
coragem, pela fidelidade, pela resistência, pela criatividade e pela
astúcia.
Tamar, nora de Judá,
ficou viúva e seu cunhado Onan se recusou a cumprir a lei do “levirato”, que
dizia que o irmão do morto deveria assumir a viúva para dar-lhe descendência.
Fiel à Lei, corajosa, criativa e astuciosa, Tamar disfarçou-se de prostituta
para conseguir do sogro o seu direito, precavendo-se, com a exigência de um
penhor, contra as inevitáveis consequências da gravidez (Gênesis 38).
Raab, também era
considerada prostituta, acolhe na periferia da cidade de Jericó os Sem Terra
espiões enviados por Josué, esconde-os para preservá-los do faro canino dos
policiais, dá-lhes a fuga com as devidas instruções para escaparem ilesos e
declara que o motivo de sua corajosa generosidade é sua fidelidade ao Deus de
Israel. Na hora de partilhar a terra, a família de Raab ganhou um lote. Assim,
a aliança dos pobres do campo com os pobres da cidade começou com uma mulher
prostituída, Raab (cf. Josué 2 na Bíblia). A Bíblia faz questão de dizer que
Jefté, grande juiz no meio do povo, era filho de uma prostituta (Juízes 11,1).
Rute, heroína do
romance com seu nome, teve a coragem de deixar seu povo para acompanhar a sogra
Noemi, num comovente testemunho de fidelidade à amiga. Teve a astúcia de conquistar
as boas graças de Booz. Note-se que a história de Rute pertence à literatura de
resistência à restauração implantada pelo sacerdote Esdras. Com Rute se
privilegia uma estrangeira com a condição de bisavó de Davi (Rute 4,18-23).
A beleza de Betsabeia, mulher de Urias, enlouqueceu o rei Davi. Ela teve um
papel saliente na sucessão de Davi e graças a ela é que o trono foi ocupado
pelo seu filho Salomão. O simples fato de ser mãe de Salomão e a coragem com
que enfrentou as intrigas da corte em um momento mais do que crítico, a
consagram (I Reis 1).
Enfim Maria, jovem, fiel ao chamado do Deus da vida, corajosa, lutadora pela
fraternidade econômica, politica, social, cultural e religiosa. A única não
estrangeira, provavelmente era da estirpe de Davi, pois seu noivado com José
supõe laços de parentesco. A mais jovem, talvez ainda quase adolescente,
precocemente madura e lúcida. Ficou grávida ainda solteira. Teve muita coragem
para enfrentar a inevitável maledicência do povo da pequena cidade de Nazaré na
Palestina colonizada pelo Império Romano e pelo poder religioso do sinédrio.
Com o progresso da gestação que se tornou visível, José mergulhou na angústia e
caiu em um dramático dilema: denunciá-la para que fosse punida com os rigores
da Lei ou abandoná-la. Ia optar pela segunda alternativa, quando um anjo do
Deus da vida lhe apareceu em sonho e o tranquilizou com a revelação do mistério
(Mt 1,18-25). Jesus de Nazaré é descendente de Tamar, Raab, Rute, a mulher de
Urias (Betsabeia) e Maria, mulheres consideradas impuras, mas muito humanas.
“A
maior tristeza da prostituta é ser discriminada. Como posso falar que sou
prostituta? Muitas pessoas nos julgam sem conhecer a gente a fundo. Deus não
discrimina ninguém”, desabafam muitas ‘mulheres da batalha’. Jesus e Maria
também foram discriminados. Por isso também, o Evangelho de Mateus fez questão
de mostrar a presença de cinco mulheres tidas como prostitutas na história de
Jesus. O povo da Bíblia viu nelas coragem, criatividade, sensatez, audácia,
liberdade, disposição para a luta, muita humanidade… Isso levou Jesus a
asseverar: “As prostitutas precederão vocês no reino dos céus” (Mateus 21,37).
Só podia ser Maria Madalena quem
convidou Jesus para entrar em um hotel de prostituição. Apresentada como
prostituta, Maria Madalena revela-se uma mulher corajosa, feminista, verdadeira
discípula de Jesus e companheira fiel. E, certamente, não é por acaso que Maria
Madalena é apresentada como testemunha da ressurreição e a primeira a fazer a
experiência de Jesus Ressuscitado - uma mulher considerada prostituta!
Ainda bem que o padre André Luna nos
alerta na música Seu nome é Jesus Cristo:
"Seu nome é Jesus Cristo e é
difamado e vive nos imundos meretrícios, mas muitos o expulsam da cidade
com medo de estender a mão a ele. Entre nós está e não o conhecemos. Entre nós
está e nós o desprezamos."
Enfim, como Tamar, Raab, Rute, a mulher
de Urias (Betsabeia) e Maria há tantas mulheres que batalham, são amadas pelo
Deus da vida e não podem ser discriminadas. Devem ser respeitadas na sua
dignidade humana e precisamos estar ao lado delas na luta pelos seus direitos
fundamentais.
Belo
Horizonte, MG, 05/3/2018.
Obs.: O vídeo, abaixo, versa sobre o assunto correlato ao
texto, acima.
1 - Palavra
Ética, na TVC/BH: Júnia Roman Carvalho, defensora pública.
[1] Frei e padre da Ordem dos
carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em
Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e
Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos”
no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br - www.freigilvander.blogspot.com.br –
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