Povos
Tradicionais do Baixo Rio das Velhas – Direitos, Relações Identitárias e Socioambientais
Imagem 1 - Família
de Apanhadores da Flor Sempre-Viva que mora periodicamente na Lapa Santa Apolônia no interior de uma UC, para facilitar a
temporada de coleta. Detalhes de fogões, jiraus, camas de taquara e vestígios
de fuligens, entre outros sinais de uso. Município: Diamantina, MG. Foto: A.
Baeta.
A
região do Baixo Rio das Velhas[2]
possui inúmeras comunidades tradicionais, fruto da riqueza histórica e da
complexidade cultural excepcional de seus moradores. Entende-se hoje como
comunidades tradicionais grupos sociais culturalmente diferenciados, com formas
próprias de organização socioeconômica e de produção, bem como de transmissão
de conhecimentos, possuindo dimensão territorial específica, com fortes laços
de pertencimento e identificação com o lugar que vivem ou transitam (DIEGUES,
2004; COSTA FILHO et al. 2015). Logo, reproduzem historicamente o seu modo de
vida, de forma isolada ou diferenciada, com base na sua campesinidade, no seu
modo de vida familiar e na sua organização social, estabelecendo relações
espaciais e intrínsecas com a natureza e com o seu manejo (DIEGUES & ARRUDA,
2001; ALMEIDA, 2004).
Dando
luz aos principais grupos culturais da região do Baixo Rio das Velhas, onde também
atua o Projeto Manuelzão, a definição acima revela uma gama de comunidades
étnicas e/ou tradicionais, tais como: Indígenas[3], Apanhadores
de Flores Sempre-Vivas[4],
Faiscadores[5],
Quilombolas[6],
Povos de Terreiros[7],
Vazanteiros[8],
Geraizeiros[9],
Pescadores Artesanais[10],
Ciganos[11],
dentre outras. Estas categorias identitárias vêm se revelando nos últimos
decênios nessa região, outrora veladas em função de conflitos fundiários e
preconceitos por parte da sociedade abrangente. Mas com o aumento da tensão
fundiária e territorial, ampliação do agronegócio e da mineração, da
monocultura do eucalipto ou do “deserto verde”, da construção de barragens e hidrelétricas,
empreendimentos imobiliários, aberturas de estradas e expansão urbana, esses
grupos em sua longa história de resistência vêm se apresentando e se organizando
por meio do instituto do autorreconhecimento, enquanto povos tribais e/ou tradicionais
por meio, ainda, de suas associações comunitárias (COSTA FILHO et al., 2015).
A
partir da luta dos povos tribais e/ou tradicionais de todo o planeta, foi
construído paulatinamente um arcabouço jurídico internacional enredado que deu
sustentação à elaboração de políticas públicas voltadas para os direitos humanos
e para a alteridade cultural em vários países da América Latina. O Brasil, em 2004, ratifica, ainda que
tardiamente, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de
1989, que reconhece como critério fundamental os elementos de auto-identificação
dos povos e das comunidades tradicionais, bem como, o conceito de terras
tradicionalmente ocupadas, aliado à noção de territorialidades específicas e
etnicamente construídas. Importante lembrar um documento anterior, elaborado na
Convenção sobre a Diversidade Biológica ou da Biodiversidade (CDB), de 1992,
durante a reunião das Organizações das Nações Unidas (ONU), que foi o primeiro tratado mundial sobre a
utilização sustentável, conservação e soberania sobre os recursos genéticos
existentes, estabelecendo ações relacionadas à transmissão dos benefícios das
comunidades locais e indígenas com o assentimento e envolvimento dos detentores
desses conhecimentos, reconhecendo, assim, os verdadeiros guardiões dos saberes
medicinais tradicionais, combatendo a biopirataria[12].
A
Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial adotada em Paris
em evento promovido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO), reitera, por sua vez, o respeito ao patrimônio
cultural imaterial das comunidades tradicionais, grupos e indivíduos
envolvidos, tendo sido em 2006, adotada pelo Brasil por meio do Decreto n. 5.753
de 12 de abril de 2006.
Seguindo
as instruções internacionais de referência, mas, sobretudo, a partir das
cobranças de algumas entidades associadas aos povos tradicionais e seus
direitos, foi então implementada em 2007 a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT). No art. 3º para
os fins deste Decreto e do seu Anexo compreende-se por:
“I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos
culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas
próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos
naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa,
ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e
transmitidos pela tradição; II - Territórios Tradicionais: os espaços
necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades
tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária,
observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas,
respectivamente, o que dispõem os arts.
231 da Constituição e 68
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e
demais regulamentações; e III - Desenvolvimento Sustentável: o uso
equilibrado dos recursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade de vida
da presente geração, garantindo as mesmas possibilidades para as gerações
futuras.”
Em
âmbito estadual foi então promulgada em janeiro de 2014 a Lei no 21.147, que
cria a Política Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais de Minas Gerais.
De acordo com essa lei, deverá ser realizado um mapeamento dos povos e
comunidades tradicionais, além de uma caracterização demográfica e
socioeconômica, visando planejar e executar políticas públicas que
resguardem os seus direitos territoriais, sociais, culturais, ancestrais e
econômicos. A partir de informações
atualizadas, considerando a legislação vigente, pretende-se ainda promover a
segurança alimentar e nutricional, garantindo-lhes acesso regular e permanente
a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, de forma compatível com
outras necessidades essenciais, segundo o Sistema Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional - direito universal constituído de todos os povos. Esta
é uma grande expectativa da sociedade organizada no âmbito dos direitos humanos,
ambientalistas e povos tradicionais ou tribais, pois o índice de pobreza da
população brasileira vem aumentando, o que é extremamente preocupante. Todavia,
também na contramão da história, retumba a situação alarmante no Brasil com
relação ao uso de agrotóxicos. Os pesticidas usados na agricultura do
agronegócio para conter pragas nas plantações, muitos deles proibidos na Europa
e nos Estados Unidos por estarem relacionados ao câncer e doenças genéticas, vêm
sendo aqui utilizados indiscriminadamente, de forma permissiva e irresponsável,
sendo ainda patrocinados pela bancada ruralista no congresso nacional.
Buscando
agora exemplificar as relações socioambientais das comunidades tradicionais que
habitam a bacia do Baixo Rio das Velhas, seus eixos de luta e suas imbricações
históricas, apresenta-se um panorama geral sobre três delas: Apanhadores de
Flores de Sempre-Vivas, Quilombolas e Indígenas.
Muito
comum estar no alto das serras onde há os biomas Cerrado e Campos Rupestres munidos
de inúmeras cachoeiras e cavernas na região de Diamantina e se deparar com
famílias de Apanhadores de Flores de Sempre-Vivas. No entanto, de acordo com
pesquisadores[13]
e apanhadores, esse sistema extrativista encontra-se ameaçado em função da
criminalização da prática dos apanhadores, impedimento de acesso a alguns
terrenos por parte de seus proprietários ou ainda em unidades de conservação.
Trata-se de um manejo que envolve um trabalho coletivo e periódico, atento ao
ciclo das espécies, sendo que a coleta faz-se necessária, pois se não for retirada,
a espécie corre o risco de não sobreviver. Algumas cavernas das serras (umas
ainda com vestígios arqueológicos pré-coloniais) são utilizadas como pontos de
parada ou moradia que podem durar de três a seis meses por parte de famílias ou
grupos compostos por apanhadoras e apanhadores das plantas. Estes percorrem ou
transitam por seus territórios etnohistóricos de coleta. Os abrigos naturais
ficam assim com as marcas e vestígios de tecnologias vernaculares oriundos do
uso sazonal deste povo tradicional, se tornando ainda sítios de grande valor
etnográfico, socioambiental e imaterial (BAETA & PILÓ, 2013). Muitos dos indivíduos
e famílias pertencem, por sua vez, às comunidades quilombolas, estabelecidas na
região há séculos. A comunidade
quilombola Raiz[14],
por exemplo, é muito conhecida pelos artesanatos produzidos com as Sempre-Vivas
coletadas por eles, também denominadas “Capim Dourado” ou “Sedinha”. Em 2017,
houve uma oficina nessa comunidade para discutir junto com entidades afins e
outras comunidades quilombolas, dentre elas, Vargem do Inhaí e Mata dos
Crioulos de Diamantina, a “Agrobiodiversidade, Soberania Alimentar e
Resiliência”. Nesta oportunidade, foi
discutido o imenso repertório cultural dessas comunidades associadas às
praticas agrícolas, alimentares e extrativistas, quando também foi apresentada
a biodiversidade regional cultivada, conservada e promovida pelos agricultores
e agricultoras em diversos ambientes - terreiro, horta, roça e demais
territórios culturais.
Marco
inicial da história dos Tuxá em Minas Gerais, o Sr. Roque Moisés da Silva teria
vindo trabalhar, após muitos conflitos territoriais em Rodelas[15],
no início dos anos 50 do século XX na Companhia de Navegação Mineira do São
Francisco, com o apoio do antigo Serviço de Proteção do Índio (SPI) e do
político Juscelino Kubitschek. Teria chegado ainda solteiro quando conheceu em
Pirapora a quilombola Maria de Lourdes (filha de um índio Tupinambá), tendo se
casado com ela em seguida, quando tiveram seis filhas e dois filhos. O Sr.
Roque, que transitava pelo vapor ao longo do Rio São Francisco durante vários
decênios, acabou por trazer parte de uma rama de sua família indígena de
Rodelas para Pirapora nos anos seguintes, fazendo desta terra mineira banhada
pelo Rio São Francisco um novo lar para a comunidade Tuxá. Anália Tuxá, uma de suas filhas, atualmente
cacica de seu povo, relata que os terraços do rio das Velhas eram visitados por
sua família em período de seca, para realização de inúmeros rituais, entre
eles, o Toré. Há três anos, parte da comunidade “Tuxá Setsor Bragagá” se
encontra em uma Retomada ou Ocupação na fazenda Santo Antônio, no distrito da
Cachoeira da Manteiga, município de Buritizeiro, próximo à confluência do rio
Paracatu com o rio São Francisco. Os Tuxá reivindicam esse território, bem como
acesso às políticas públicas a que têm direito. Eles querem produzir nesta
terra, plantar e colher - alimentando as inúmeras famílias indígenas, mantendo as
suas tradições culturais e a língua materna.
Em uma Nota Oficial da comunidade datada de 23 de novembro de 2015, os
Tuxá denunciam o clima de tensão junto aos latifundiários locais e o uso
indevido da fazenda ocupada ou retomada por eles: “Apesar de pertencer ao Estado de Minas
Gerais, estava sendo explorada por particulares, através de criação de gado.
Além da exploração ilegal, no interior da fazenda, nos deparamos com
gravíssimos danos e crimes ambientais: coro de animais silvestres abatidos por
caçadores; grandes áreas de desmatamento sem o devido licenciamento ambiental,
elevada compactação e uso indevido do solo, vestígios de atividade madeireira e
de carvoaria, dentre outras degradações ambientais.”
Como
pode ser constatado, a diversidade e a complexidade das comunidades
tradicionais no Baixo Rio das Velhas são enormes, tanto quanto a sua
resistência cultural, secular, frente a todas as adversidades e ameaças que têm
sofrido. Ainda está a passos muito lentos a conquista e o acesso aos direitos
constituídos na prática – sobretudo, o usufruto coletivo de uma TERRA - ponto
comum de luta das comunidades tradicionais - da biodiversidade e a segurança
alimentar. A invisibilidade das comunidades tradicionais e o não reconhecimento
da sua legitimidade por muitos, ainda promove um distanciamento abismal entre as
pessoas, impedindo a construção de um mundo melhor, justo e solidário; que
respeite as diferenças, as demandas específicas, as distintas histórias e as visões
particulares de mundo.
Referências Bibliográficas:
ALMEIDA,
A. W. B. Terras Tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização e
movimentos sociais. R. B. Estudos
Urbanos e Regionais, 6 ( 1) : 9-32,
Maio, São Paulo, 2004.
BAETA,
A. & PILÓ, H. Arqueologia em Unidades de Conservação na Região de Diamantina
- MG. As sucessivas ocupações de suas paisagens e cavidades. Revista Espinhaço, 2 (2): 200-212, Diamantina,
2013.
COSTA
FILHO, A. et. al. Mapeamento dos povos e comunidades tradicionais de Minas
Gerais: visibilização e inclusão sociopolítica. In: Interfaces - Revista de Extensão, 3 (1) : 69-88, jul/dez, Belo
Horizonte, 2015.
DIEGUES,
A. C. & ARRUDA, R. S. V. (Orgs.) Saberes tradicionais e biodiversidade no
Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente; São Paulo: USP, 2001.
DIEGUES,
A. C. As populações tradicionais: conceitos e ambiguidades. In: O Mito Moderno da natureza intocada.
São Paulo: Hucitec, 2004.
RAMIRES,
et al. A Pesca e os Pescadores Artesanais de Ilhabela-SP, Brasil. Boletim Inst. Pesca, São Paulo, 38(3): 231- 246,
2012.
VEIGA,
C. K. & LEIVAS, P. G. C. Comunidades tradicionais negras e a proteção da
Convenção 169 da OIT. In: Revista Direito e Práxis, Rio de
Janeiro, 08 (04):2599-2628, 2017.
Sites
Consultados:
Ibirité,
MG, 07 de agosto de 2018.
Povos de terreiro são
pessoas, em sua maioria de origem afro-brasileira, ligadas às comunidades
religiosas de matrizes africanas por vínculos de parentescos ou iniciáticos.
Pertencem a esse conjunto de práticas: o candomblé, o batuque, o tambor de
mina, a pajelança, a macumba, a umbanda, dentre outras. (VEIGA, 2016)