Gilvander é frei e padre da Ordem dos carmelitas, Doutor em Educação pela FAE/UFMG; bacharel e licenciado em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas, em Minas Gerais.
sexta-feira, 10 de novembro de 2017
domingo, 5 de novembro de 2017
Tributo à historiadora Emília Viotti da Costa
Tributo
à historiadora Emília Viotti da Costa
Por frei Gilvander
Moreira[1]
Fiquei comovido ao
receber a notícia de que no dia 02 de novembro de 2017 tinha falecido a
historiadora Emília Viotti da Costa (1928-2017), aos 89 anos. Para uns, Emília
se encantou. Para outros, ela passou para o segundo andar. Para outros ainda, Viotti
da Costa entrou para a vida plena. Para dona Maria Resende, da Comunidade Vila
Nova, em Belo Horizonte, “morreu a pessoa e ficou o nome”. Perdemos a presença
física de Emília Viotti da Costa, uma intelectual de rara grandeza teórica,
política e ética, mas os seus escritos ganham maior eloquência e são agora de
leitura imprescindível para toda pessoa comprometida com a construção de uma
sociedade justa e solidária, que supere o capitalismo e o sistema do capital.
A historiadora
marxista Emília Viotti da Costa é autora de livros clássicos da historiografia
brasileira, entre os quais, Da senzala à
colônia (1966), A abolição
(1982), Coroas de glória, lágrimas de
sangue: a rebelião dos escravos de Demerara em 1823 (1994), Brasil: de la monarquía a la república
(1995), Da monarquia à república:
momentos decisivos (1999), O Supremo
Tribunal Federal e a construção da cidadania (2001), A dialética invertida e outros ensaios (2014) e Brasil: história, textos e contextos
(2015).
Viotti da Costa foi estudiosa
do tema da escravidão e racismo. Militante, atuou firme contra a ditadura de
1964. Feminista convicta, sempre lutou pelo reconhecimento das mulheres. Foi
uma de nossas grandes historiadoras. Estudiosa do tema da escravidão, com
compromisso teórico e engajamento crítico, orientados pelo materialismo
histórico-dialético, Viotti da Costa lecionou no Departamento de História da
Universidade de São Paulo entre 1964 e 1969, quando foi compulsoriamente
aposentada da Universidade de São Paulo (USP), por imposição do AI 5 – Ato
Institucional n. 5 -, o quinto de dezessete Atos da ditadura
militar-civil-empresarial, assinado pelo ditador Artur da Costa e Silva, dia 13
de dezembro de 1968.
Durante minha pesquisa
de doutorado na FAE/UFMG, intitulada A
luta pela terra em contexto de injustiça agrária: pedagogia de emancipação
humana? Experiências de luta da CPT e do MST, tive a grande alegria de
encontrar e me ancorar em escritos de Emília Viotti. Eis, abaixo, como
aperitivo, algumas referências inspiradoras da historiadora marxista Emília
Viotti que incluí na minha tese.
Com a invasão dos
europeus portugueses, o Brasil colonial foi organizado como uma empresa
comercial para a produção de commodities
para a exportação. Daí a exploração do pau-brasil, a produção de açúcar e café
até os dias de hoje com as monoculturas da soja, do eucalipto e minério, quase
tudo para exportação. “O Brasil colonial foi organizado como uma empresa
comercial resultante de uma aliança entre a burguesia mercantil, a Coroa e a
nobreza” (VIOTTI DA COSTA, 1999, p. 173).
Durante o Brasil
colonial, quem recebia certa área de terra em sesmaria tinha o direito de
usufruto sobre a terra, vender/repassar para outro, mas a propriedade da terra
continuava sendo da Coroa portuguesa. Os que recebiam a terra da Coroa, antes
da Lei de Terras, não recebiam a propriedade da terra, apenas o direito de
usufruto e tinham o dever de cultivar a terra, senão poderiam perder o direito
de usufruto, conforme a Lei de 26 de junho 1375. “Aqueles para os quais a terra
era doada tinham apenas o usufruto: a propriedade era reservada à Coroa”
(VIOTTI da COSTA, 1999, p. 173).
O contexto de
crescimento do capitalismo internacional no século XIX colocou em relação
direta a propriedade da terra e o trabalho como meios de acumulação do capital.
Terra e trabalho se tornaram mercadorias, fontes de acumulação capitalista, de
poderes econômico e político. A historiadora Emília Viotti da Costa, no livro Da monarquia à república: momentos decisivos,
dedica o quarto capítulo a uma abordagem sobre a política de terras no Brasil e
nos Estados Unidos. A autora aponta uma série de mudanças que estavam
acontecendo ancoradas, obviamente, nas condições históricas materiais,
objetivas e sociais do capitalismo: “No século XIX, a expansão dos mercados e o
desenvolvimento do capitalismo causaram uma reavaliação das políticas de terras
e do trabalho em países direta ou indiretamente atingidos por esse processo. O
crescimento da população, as migrações internas e/ou internacionais, os
melhoramentos nos meios de transporte, a concentração populacional nos centros
urbanos, o desenvolvimento da indústria e a acumulação de capital estimularam a
incorporação da terra e do trabalho à economia comercial e industrial. Consequentemente
houve uma expansão das áreas cultivadas para fins comerciais e uma redução da
agricultura de subsistência. Nos lugares onde a terra tinha sido explorada
apenas parcialmente, a expansão do mercado provocou a intensificação do uso da
terra e do trabalho, resultando frequentemente na expulsão de arrendatários e
meeiros ou na expropriação das pequenas propriedades e das terras comunitárias”
(VIOTTI DA COSTA, 1999, p. 169-170).
No Brasil, após 1850,
com a Lei de Terras, sob o regime de compra, o poder político que deveria ser
público, perdeu seu poder de impor certas condições ao sistema do capital. Quem
tinha poder econômico passou a ter condições irrestritas para ir se apropriando
de grandes extensões de terra. Nesse sentido, assevera Viotti da Costa: “Quando
a terra era uma doação real, o rei tinha o direito de impor certas condições,
regulamentando seu uso e sua ocupação e limitando o tamanho do lote e o número
de doações recebidas por pessoa. Quando a terra tornou-se uma mercadoria
adquirida por indivíduos, as decisões concernentes à sua utilização passaram a
ser tomadas por esses mesmos indivíduos” (VIOTTI DA COSTA, 1999, p. 172).
Aconteceu também um
deslocamento do poder político para o poder econômico. Antes da Lei de Terras, a
Coroa Portuguesa doava propriedades rurais segundo méritos do beneficiário, o
que lhe conferia prestígio social. Receber uma doação de terra da Coroa era uma
forma de obter reconhecimento político e prestígio social. Mas com a Lei de
Terras, passou a ter prestígio social quem tinha poder econômico para comprar a
terra. E, “ao comprar a terra compra-se o direito de auferir a renda da terra”
(OLIVEIRA, 2007, p. 57). Assim, a Lei de Terras fortaleceu a estratificação
social, a desigualdade social e estimulou a propriedade capitalista da terra.
“Na primeira fase, a propriedade da terra conferia prestígio social, pois
implicava o reconhecimento pela Coroa dos méritos do beneficiário. Na segunda
fase, a propriedade da terra representa prestígio social porque implica poder
econômico. No primeiro caso, o poder econômico derivava do prestígio social; no
segundo, o prestígio social deriva do poder econômico” (VIOTTI DA COSTA, 1999,
p. 172).
Com a moribunda
escravidão legal do povo negro, com seus dias contados, em um país gigante em
extensão territorial e com baixa população, o único meio de manter os
trabalhadores trabalhando de forma compulsória era o aprisionamento da terra,
isso para continuar arrancando deles mais-valia e extorquindo-lhes a dignidade
humana. Somente a instituição jurídica do cativeiro
da terra asseguraria a exploração da força de trabalho, seja dos escravos
que seriam libertados juridicamente, seja dos imigrantes que estavam chegando
com sede de melhoria das condições de vida. “Numa região onde o acesso à terra
era fácil, seria impossível obter pessoas para trabalhar nas fazendas, a não
ser que elas fossem compelidas pela escravidão. A única maneira de obter
trabalho livre, nessas circunstâncias, seria criar obstáculos à propriedade
rural, de modo que o trabalhador livre, incapaz de adquirir terras, fosse
forçado a trabalhar nas fazendas” (VIOTTI DA COSTA, 1999, p. 176).
O tributo maior a
Emília Viotti da Costa será seguirmos militando em prol da construção de uma
sociedade justa e solidária, superando todo tipo de escravidão, colonialismo e
mandonismo, orientados pelo legado de história libertadora – leituras do
passado desde a perspectiva dos injustiçados -, um farol aceso contra as
opressões. Obrigado, Emília Viotti. Você continuará vivendo em nós também!
Referências.
OLIVEIRA,
Ariovaldo Umbelino de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e
Reforma Agrária. São Paulo: Labur Edições, 2007. Disponível em http://www.geografia.fflch.usp.br/graduacao/apoio/Apoio/Apoio_Valeria/Pdf/Livro_ari.pdf
, acesso em 14/9/2016 às 15h27.
VIOTTI DA COSTA, Emília. Da monarquia à república: momentos decisivos. 6ª edição. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1999.
Obs.: A perspicácia intelectual
e política de EMÍLIA VIOTTI DA COSTA pode ser conhecida pela entrevista que ela
concedeu, em 02/4/2001, ao Programa REDE VIVA da TV Cultura, no link https://www.youtube.com/watch?v=KRELCvaqCrY
[1] Padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências
Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação
pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, CEBs, SAB e Ocupações Urbanas; professor
de “Direitos Humanos e Movimentos Populares” em curso de pós-graduação do IDH,
em Belo Horizonte, MG. e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.freigilvander.blogspot.com.br
- www.gilvander.org.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
sábado, 4 de novembro de 2017
quinta-feira, 2 de novembro de 2017
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