Pode haver
intervenção da União caso o Governo de um estado não cumpra decisão judicial
que prescreve reintegração de posse?
Por frei Gilvander
Moreira, da CPT.
Para
compreendermos a luta pela terra e por moradia digna, própria e adequada, como
um legítimo e constitucional direito social, devemos analisar a fundo a questão
da propriedade privada capitalista da terra. Joaquim Modesto Pinto Júnior e
Valdez Adriani Farias (2005), no artigo Função Social da Propriedade: dimensões
ambiental e trabalhista, afirmam que: “a propriedade não é mais direito
absoluto. Com efeito, embora parte da doutrina e jurisprudência, de forma
totalmente contrária ao sistema posto, relute em negar proteção absoluta ao
direito de propriedade, o fato é que o ordenamento constitucional e
infraconstitucional veem que pesa sobre a propriedade uma hipoteca social”
(JÚNIOR; FARIAS, 2005: 13).
A esse
propósito nos referimos à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF)
na ADI nº 2213, que diz: “o direito de propriedade não se reveste de caráter
absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que,
descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII)”, a
propriedade deixa de existir.
Há
jurisprudências no sistema judiciário brasileiro em que pedidos de intervenções
judiciais da União em estados da federação foram negados. Por exemplo, na
primeira semana de agosto de 2014, a Corte Especial do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) publicou acórdão em que negou, por unanimidade, pedido de
intervenção federal no estado do Paraná para compelir o governo do Paraná a
realizar reintegração de posse com uso da força ao proprietário da Fazenda São
Paulo, no município de Barbosa Ferraz, que tinha escritura e registro, mas não
cumpria a função social. Essa decisão do STJ na prática definiu que a
propriedade não é um direito absoluto e que, por isso, mesmo que o proprietário
tenha conseguido na justiça estadual a reintegração de posse, a execução da
determinação judicial causaria muitos danos sociais às 240 famílias de
camponeses Sem Terra do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) que
tinham ocupado a fazenda por dois motivos principais: por necessidade, isto,
porque vários princípios constitucionais, tais como, respeito à dignidade
humana, função social da propriedade e direito a terra, não estavam sendo
oferecidos pelo Estado e, porque a fazenda estava abandonada sem cumprir função
social. Logo, para ser coerente com os princípios constitucionais e também com
o objetivo da Constituição de 1988 que busca construir uma sociedade que supere
as desigualdades e a miséria, a Corte Especial do STJ tomou uma decisão sensata
e justa. Essa decisão foi saudada pelo MST, Comissão Pastoral da Terra (CPT)
e pela ONG Terra de Direitos, mas foi duramente criticada pela mídia e por
advogados e professores de Direito que ainda absolutizam o direito à
propriedade.
Conforme
o exposto, acima, o justo e constitucional é não haver intervenção da União no
Estado de Minas Gerais, caso o Governador Fernando Pimentel não autorize a
Polícia Militar a realizar a reintegração de posse nos territórios ocupados
pelas 8.000 famílias (cerca de 30.000 pessoas) das ocupações-comunidades da
Izidora (Rosa Leão, Esperança e Vitória), em Belo Horizonte e Santa Luzia, MG:
comunidades em franco processo de consolidação com 3,5 anos de luta e mais de
5.000 casas de alvenaria construídas seguindo Plano Urbanístico feito por
professores arquitetos da Associação dos Arquitetos Sem Fronteira (ASF-Brasil).
Embora
exista uma decisão judicial que em tese permite a reintegração de posse, tal
decisão não pode se colocar acima da dignidade da pessoa humana que é um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil e que deveria ser considerada
pelo judiciário. Também é um absurdo uma Ação Civil Pública (ACP) do Ministério
Público de Minas em defesa das comunidades da Izidora não ter sido julgada,
embora esteja “tramitando” no TJMG há 3,5 anos. No caso da Ocupação Dandara, no
Céu Azul, em Belo Horizonte, uma Ação Civil Pública foi julgada e acolhida e
derrubou decisão de reintegração de posse de uma vara cível. Por que isso não acontece
no caso das comunidades da Izidora?
Despejar
as três comunidades da Izidora, três bairros-irmãos, seria desrespeitar vários
princípios da Constituição Federal de 1988, negligenciar o princípio bíblico
segundo o qual “a terra pertence a Deus” e cair na temeridade de um massacre de
proporções inimagináveis. O povo das comunidades da Izidora segue alertando as
autoridades que tentativa de despejo forçado pode causar um banho de sangue na
capital mineira. Isso seria crime hediondo. Por respeito à dignidade humana e
por moradia digna seguimos lutando. Negociação justa,sim; despejo, jamais!
Referências.
PINTO JÚNIOR, Joaquim
Modesto; FARIAS, Valdez Adriani. Função social da propriedade: dimensões
ambiental e trabalhista. Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e
Desenvolvimento Rural, 2005.
Reportagem “Quando
ocupar é um direito: decisão do STJ repercute na mídia” e quatro artigos que
discutem a decisão do STJ, no link a seguir: http://terradedireitos.org.br/2014/08/27/quando-ocupar-e-um-direito-decisao-do-stj-repercute-na-midia/
, acesso dia 02/11/2016 às 18:04h.
Belo Horizonte, MG,
Brasil, 03/11/2016.
Face: Gilvander
Moreira