terça-feira, 3 de maio de 2016

Deus e Jesus são ecumênicos, a vida também. E nós? - Por frei Gilvander Moreira

Deus e Jesus são ecumênicos, a vida também. E nós?
Por Gilvander Luís Moreira[1]

Nas ocupações de terra – no campo e na cidade - o povo traz junto a sua fé de muitos nomes. Os sem-terra e os sem-casa têm fome de terra e fome de Deus. A fé no Deus da vida é vivenciada de muitas formas. Na luta por terra, moradia, água, liberdade, trabalho digno, direitos - vida e dignidade - as diferenças entre igrejas, crenças e rituais não se tornam obstáculos para uma profunda afirmação de igualdade e partilha. “Quando nós aqui chegamos, nosso Deus, na ocupação, já passeava no nosso meio”, canta o povo das Ocupações da Izidora, em Belo Horizonte, MG. O ecumenismo (casa em comum) é vivido espontaneamente no dia a dia do povo que luta de forma coletiva por direitos sociais. A Bíblia conversa diariamente com mulheres e homens que trazem sabedorias ancestrais misturadas às histórias de dor e de violência. E o povo resiste. O Deus dos povos da Bíblia é um Deus ecumênico, pois é o Deus de Abraão, dos hapirus, dos seminômades, dos egípcios oprimidos, dos cananeus explorados, dos quenitas, dos gentios etc.
É este ecumenismo concreto a partir do chão da vida dos injustiçados que anima a caminhada das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da Leitura Popular Militante e transformadora da vida e de muitas pastorais sociais como a CPT, o CIMI, a Pastoral dos Migrantes, a Pastoral da Criança, a Pastoral dos Pescadores, a Pastoral Carcerária e tantas outras.
Buscando participação conjunta de católicos e luteranos, o Papa Francisco anunciou os preparativos para a celebração dos 500 anos da Reforma Protestante: 1516 a 2016. O tema comum será: "Alegria partilhada pelo Evangelho, confissão dos pecados cometidos contra a unidade e testemunho comum para o mundo de hoje". Aqui, três elementos são importantes na leitura crítica e celebrativa da história dos últimos 500 anos da vida das igrejas: a alegria da partilha; a confissão dos pecados e o testemunho comum.
1-   Na caminhada ecumênica da igreja dos pobres na América Afrolatíndia, a alegria é um componente fundamental! Irmanados na opção pelos pobres, saímos de nossas burocracias institucionais para a radical fidelidade com a luta dos pobres pelos seus direitos e nos encontramos com irmãs e irmãos de outras igrejas e de outros modos de fé que caminham conosco e nos ajudam na vivência da experiência. Estes encontros são marcados por espiritualidade libertadora ecumênica e por amizade como poder político e são fonte de alegria evangélica: não estamos sozinhos/as! Entre nós não deve haver superiores e inferiores, nem quem mande e quem obedeça, mas todos, na amizade, devem lutar lado a lado conspirando a construção de uma sociedade justa e solidária. O Deus ecumênico caminha conosco e nos faz família plural, de muitos modos. Nestes 500 anos o que a rigidez das instituições dividiu e discriminou, o Evangelho da justiça a partir da misericórdia juntou em um caminho ecumênico fraterno de cumplicidade e confiança. Para haver unidade é necessário haver pluralidade. Uniformidade é pensamento único, é dogmatismo que sufoca.
2-   A confissão/reconhecimento de pecados/injustiças é parte vital do processo de crítica e autocrítica de toda a pastoral popular e da igreja dos pobres. Em todos os segundos da nossa vida, precisamos reconhecer em nós mesmos os erros e as fraquezas que nos distanciam da radicalidade do evangelho de Jesus de Nazaré, presença viva do Deus ecumênico no nosso meio. Nenhuma defesa institucional pode justificar a história de violência e intolerância que marcou a relação entre católicos e protestantes. Aliás, foram os católicos que apelidaram os evangélicos de protestantes. Jesus também foi protestante diante de muitas injustiças. Protestou contra Herodes, contra os saduceus, contra os hipócritas. Devemos pedir perdão uns aos outros pelo mal que já nos fizemos mutuamente e pela falta de unidade essencial na defesa da vida dos pobres. Pedir perdão não é se humilhar, é ser humilde.
3-   A igreja latino-americana é iluminada pelo testemunho de milhares de mártires que entregaram as suas vidas pelo Reino da justiça e da paz. Estes testemunhos nos constrangem e nos convocam às práticas evangélicas de libertação e à plena vivência do amor em comunidade. O testemunho da unidade é parte imprescindível do anúncio para que as pessoas creiam: um outro mundo é possível e necessário, mas só será possível se formos ecumênicos, ecológicos e sustentados pela economia solidária. Se não houver paz entre as pessoas, entre as igrejas e entre as religiões, não teremos paz mundial. As multidões que estão ocupando na marra a Europa parecem ser desterradas por uma Terceira Grande Guerra não declarada, mas já muito cruel.
Estes desafios da celebração ecumênica dos 500 anos da Reforma Protestante vão ser assumidos pelo CEBI nos próximos dois anos, com uma coleção de reflexões sobre o tema em chave ecumênica e popular. São pequenos textos para estudo, reflexão e animação de nossas práticas evangélicas junto ao povo de modo a que possamos ser ecumênicos assim como Jesus de Nazaré foi ao encontrar-se com uma mulher Cananeia sírio fenícia, na convivência com ela e ao testemunhar seu jeito ecumênico, acabou exclamando: “Mulher, grande é tua fé! Seja feito como tu queres! (Mt 15,28).” Aprendamos com Jesus de Nazaré que acolheu a todas e todos e se alegrou com todas as pessoas que de alguma forma demonstravam fé em Deus e fé na vida.
É na leitura popular da Bíblia e na sua metodologia de plena participação da comunidade que o ecumenismo vem sendo cultivado nos últimos anos entre nós. Esperamos que estes materiais produzidos pelo CEBI possam servir para fortalecer a alegria e a amizade entre nós, a crítica necessária construtiva e o testemunho ecumênico. O Deus da Bíblia é um Deus ecumênico. Jesus Cristo se tornou uma pessoa humano-divina ecumênica. Os apóstolos Pedro, Paulo, Barnabé, a apóstola Júnia, Lutero, tantos/as outros/as da História, o papa Francisco e tantas outras pessoas, atualmente, testemunham que seguir Jesus e o seu Evangelho exige também ser ecumênico.
Lutero buscava o ecumenismo, queria que a igreja fizesse autocrítica. Lutero nunca advogou por cisma e nunca pretendeu cair nos braços dos príncipes alemães. Mas a igreja, ao invés de fazer autocrítica, expulsou Lutero e fez uma contrarreforma se fechando a partir do Concílio de Trento, de 1545 a 1563. Mas o papa Francisco, em sintonia com a fina flor do Concílio Vaticano II (1962 a 1965), fomenta o ecumenismo.
A vida é ecumênica. Na teia da vida, relações ecumênicas são o que fertilizam os ambientes. Ser ecumênico é um desafio apaixonante e vale a pena. Boa leitura do que se segue.




[1] Frei e padre da Ordem dos Carmelitas, mestre em Exegese Bíblica, doutorando em Educação pela UFMG, assessor do CEBI, de CEBs, do SAB e da CPT; gilvanderufmg@gmail.comwww.freigilvander.blogspot.com.brwww.gilvander.org.br . Esse texto está publicado como Apresentação do livro de RAMOS NETO, João Oliveira. A Renovação da Tradição: uma análise histórica da Reforma Protestante do século XVI aos dias de hoje. São Leopoldo: CEBI, 2016, p. 6-9.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Palavra Ética na TVC/BH: Direitos Humanos dos presos, c/ Aylton Magalhãe...

Palavra Ética na TVC/BH: 7 anos da Ocupação Dandara, em Belo Horizonte, ...

Raios de luz do evangelho a partir do Ceará. Por Irmã Izabel Neta e frei Gilvander

Raios de luz do evangelho a partir do Ceará.
Irmã Izabel Maria Neta[1] e frei Gilvander Luís Moreira[2]

De 20 a 24 de abril de 2016, realizamos em Caririaçu, no Vale do Cariri, Ceará, mais um Encontro do Carmelo Bíblia, da Família Carmelitana. No Carmelo de São José, 33 participantes conviveram fraternalmente, trocaram experiências e refletiram sobre o tema “Misericórdia na vida e na Bíblia.” Muitos testemunhos foram partilhados. Eis, abaixo, alguns.
Uma boa samaritana assume a defesa de um adolescente franzino que estava sendo espancado por três grandes policiais. Era uma quinta-feira à noite, em 2015, véspera de feriado na sexta-feira, na rodoviária de Fortaleza, no Ceará. Três grandes policiais prenderam um adolescente franzino, o algemaram e o levaram sob sopapos para uma salinha na rodoviária, entre os banheiros feminino e masculino. Na salinha, espancaram o adolescente que, algemado, gritava implorando misericórdia e clamando por socorro. Os gritos do adolescente sendo espancado incomodaram uma freira, irmã Izabel, que chegou naquele momento. Imediatamente, a irmã pegou sua máquina de fotografia e iniciou a filmar os policiais que espancavam o adolescente. Subitamente, os três policiais deixaram o adolescente algemado e partiram para cima da irmã que também era franzina, gritando: “Por que você está nos filmando sem nossa autorização?” A irmã de forma altaneira frente à arrogância dos policiais disse o óbvio: “Porque vocês estão torturando um adolescente. Vocês não têm o direito de fazer isso. Se ele cometeu algo ilícito, vocês já o prenderam e o algemaram. Vocês não podem torturá-lo.” Os policiais gritaram com a irmã: “Você não tem direito de nos filmar sem nossa autorização. Por que você não vai filmar quem está trabalhando? É por causa de pessoas como você, uma beata, que defende um lixo como esse, que a violência está aumentando. Queria ver se ele te estuprasse – violência psicológica -, se você o defenderia.” A irmã continuou firme: “Vocês policiais são funcionários do Estado, pagos com salário do povo para garantir segurança pública e não para atuarem como jagunços. O serviço de vocês precisa ser feito às claras e não às escondidas. Quando vocês torturam quem já está preso e algemado, indefeso, vocês deixam de ser policiais e passam a ser jagunços. A sociedade precisa saber que vocês estão cometendo um crime. Por isso pensei em filmar: para divulgar e inibir outras agressões como as que vocês fizeram. Mais: se eu fosse estuprada por ele, eu continuaria defendendo a dignidade  humana dele, como filho de Deus.” Por duas vezes ameaçaram a irmã de prisão. Chegaram a provocar: “Fale mais uma palavra e você será presa.” Irmã Izabel se calou e não respondeu mais às provocações deles, inclusive, porque temia que a me prendessem.
Dona Roseira, que pede esmola diariamente na Colina do Horto do Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, CE, pedia esmola cantando, dia 23/04/2016. Entre uma música e outra, repetia: “Essa é minha cuia.” Eu brinquei: “Dona Roseira, não tenho dinheiro. Posso pegar o que está na cuia?” Ela respondeu com um sorriso largo: “Meu filho, vivo de esmola, mas se você estiver precisando, pode pegar, sim. Eu recebo de quem pode me ajudar, mas também ajudo quem está precisando. Se estiver precisando, pode pegar, sim, os trocados que estão aí na cuia.”
Outra idosa que pedia esmola no Horto do Padre Cícero, dia 23/04/2016, ao ver que eu já estava indo embora, me disse: “Você vai embora com dívida, sem doar uma esmola?” Brinquei alegando que não tinha mais dinheiro. Conversei um pouco com ela e ao me despedir, disse: “Fique com Deus!” Ela me repreendeu: “Você está mangando de Deus. Diz para eu ficar com Deus, sem deixar uma esmola!”
Um padre missionário chegou a uma comunidade de periferia da cidade de Guatu, no Ceará. Em uma caminhada religiosa, percebendo o grande número de devotos do padre Cícero, do Juazeiro do Norte, puxou um canto ensinado por padre Cícero: “Quem matou não mate mais, quem roubou não roube mais; romeiro de verdade vive na fraternidade.” Padre Cícero Romão sempre repetia esse refrão. Mas eis que o povo ficou em silêncio. Só ouvia o padre, mas não cantava. Mesmo sob convite insistente do padre para cantar, o povo não cantou com ele. Depois, após a procissão, algumas pessoas disseram no pé do ouvido do padre: “Infelizmente o tráfico de drogas está intenso aqui na nossa comunidade. Se a gente cantasse, seria interpretado como um recado indireto aos jovens envolvido com drogas aqui. Por isso fomos silenciados.”
Belo Horizonte, MG, 02/05/2016.




[1] Freira da Congregação das Missionárias Carmelitas, mora em Caririaçu; email: irmabelneta@hotmail.com
[2] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; natural de Rio Paranaíba, MG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT (Comissão Pastoral da Terra), do CEBI (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), do SAB (Serviço de Animação Bíblica) e de Movimentos Sociais de luta por terra e moradia; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvanderufmg@gmail.comwww.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br  - www.twitter.com/gilvanderluis  - Facebook: Gilvander Moreira

XXXIII Encontro de CEBs da Diocese de Guaxupé/MG, em Nova Resende, de 29...