Deus e Jesus são ecumênicos, a vida também. E nós?
Por Gilvander Luís Moreira[1]
Nas ocupações
de terra – no campo e na cidade - o povo traz junto a sua fé de muitos nomes. Os
sem-terra e os sem-casa têm fome de terra e fome de Deus. A fé no Deus da vida é
vivenciada de muitas formas. Na luta por terra, moradia, água, liberdade, trabalho
digno, direitos - vida e dignidade - as diferenças entre igrejas, crenças e
rituais não se tornam obstáculos para uma profunda afirmação de igualdade e
partilha. “Quando nós aqui chegamos, nosso Deus, na ocupação, já passeava no
nosso meio”, canta o povo das Ocupações da Izidora, em Belo Horizonte, MG. O
ecumenismo (casa em comum) é vivido espontaneamente no dia a dia do povo que
luta de forma coletiva por direitos sociais. A Bíblia conversa diariamente com
mulheres e homens que trazem sabedorias ancestrais misturadas às histórias de
dor e de violência. E o povo resiste. O Deus dos povos da Bíblia é um Deus
ecumênico, pois é o Deus de Abraão, dos hapirus, dos seminômades, dos egípcios
oprimidos, dos cananeus explorados, dos quenitas, dos gentios etc.
É este
ecumenismo concreto a partir do chão da vida dos injustiçados que anima a
caminhada das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da Leitura Popular Militante
e transformadora da vida e de muitas pastorais sociais como a CPT, o CIMI, a Pastoral
dos Migrantes, a Pastoral da Criança, a Pastoral dos Pescadores, a Pastoral
Carcerária e tantas outras.
Buscando
participação conjunta de católicos e luteranos, o Papa Francisco anunciou os
preparativos para a celebração dos 500 anos da Reforma Protestante: 1516 a 2016.
O tema comum será: "Alegria
partilhada pelo Evangelho, confissão
dos pecados cometidos contra a unidade e testemunho comum para o mundo de hoje". Aqui, três elementos
são importantes na leitura crítica e celebrativa da história dos últimos 500
anos da vida das igrejas: a alegria da partilha; a confissão dos pecados e o
testemunho comum.
1-
Na caminhada ecumênica da igreja dos pobres na
América Afrolatíndia, a alegria é um componente fundamental! Irmanados na opção
pelos pobres, saímos de nossas burocracias institucionais para a radical
fidelidade com a luta dos pobres pelos seus direitos e nos encontramos com
irmãs e irmãos de outras igrejas e de outros modos de fé que caminham conosco e
nos ajudam na vivência da experiência. Estes encontros são marcados por
espiritualidade libertadora ecumênica e por amizade como poder político e são
fonte de alegria evangélica: não estamos sozinhos/as! Entre nós não deve haver
superiores e inferiores, nem quem mande e quem obedeça, mas todos, na amizade, devem
lutar lado a lado conspirando a construção de uma sociedade justa e solidária.
O Deus ecumênico caminha conosco e nos faz família plural, de muitos modos.
Nestes 500 anos o que a rigidez das instituições dividiu e discriminou, o
Evangelho da justiça a partir da misericórdia juntou em um caminho ecumênico
fraterno de cumplicidade e confiança. Para haver unidade é necessário haver
pluralidade. Uniformidade é pensamento único, é dogmatismo que sufoca.
2-
A confissão/reconhecimento de pecados/injustiças
é parte vital do processo de crítica e autocrítica de toda a pastoral popular e
da igreja dos pobres. Em todos os segundos da nossa vida, precisamos reconhecer
em nós mesmos os erros e as fraquezas que nos distanciam da radicalidade do
evangelho de Jesus de Nazaré, presença viva do Deus ecumênico no nosso meio.
Nenhuma defesa institucional pode justificar a história de violência e
intolerância que marcou a relação entre católicos e protestantes. Aliás, foram
os católicos que apelidaram os evangélicos de protestantes. Jesus também foi
protestante diante de muitas injustiças. Protestou contra Herodes, contra os
saduceus, contra os hipócritas. Devemos pedir perdão uns aos outros pelo mal
que já nos fizemos mutuamente e pela falta de unidade essencial na defesa da
vida dos pobres. Pedir perdão não é se humilhar, é ser humilde.
3-
A igreja latino-americana é iluminada pelo
testemunho de milhares de mártires que entregaram as suas vidas pelo Reino da
justiça e da paz. Estes testemunhos nos constrangem e nos convocam às práticas
evangélicas de libertação e à plena vivência do amor em comunidade. O testemunho
da unidade é parte imprescindível do anúncio para que as pessoas creiam: um
outro mundo é possível e necessário, mas só será possível se formos ecumênicos,
ecológicos e sustentados pela economia solidária. Se não houver paz entre as
pessoas, entre as igrejas e entre as religiões, não teremos paz mundial. As
multidões que estão ocupando na marra a Europa parecem ser desterradas por uma
Terceira Grande Guerra não declarada, mas já muito cruel.
Estes desafios
da celebração ecumênica dos 500 anos da Reforma Protestante vão ser assumidos
pelo CEBI nos próximos dois anos, com uma coleção de reflexões sobre o tema em
chave ecumênica e popular. São pequenos textos para estudo, reflexão e animação
de nossas práticas evangélicas junto ao povo de modo a que possamos ser
ecumênicos assim como Jesus de Nazaré foi ao encontrar-se com uma mulher
Cananeia sírio fenícia, na convivência com ela e ao testemunhar seu jeito
ecumênico, acabou exclamando: “Mulher, grande é tua fé! Seja feito como tu
queres! (Mt 15,28).” Aprendamos com Jesus de Nazaré que
acolheu a todas e todos e se alegrou com todas as pessoas que de alguma forma
demonstravam fé em Deus e fé na vida.
É na leitura
popular da Bíblia e na sua metodologia de plena participação da comunidade que
o ecumenismo vem sendo cultivado nos últimos anos entre nós. Esperamos que
estes materiais produzidos pelo CEBI possam servir para fortalecer a alegria e
a amizade entre nós, a crítica necessária construtiva e o testemunho ecumênico.
O Deus da Bíblia é um Deus ecumênico. Jesus Cristo se tornou uma pessoa
humano-divina ecumênica. Os apóstolos Pedro, Paulo, Barnabé, a apóstola Júnia,
Lutero, tantos/as outros/as da História, o papa Francisco e tantas outras
pessoas, atualmente, testemunham que seguir Jesus e o seu Evangelho exige
também ser ecumênico.
Lutero buscava
o ecumenismo, queria que a igreja fizesse autocrítica. Lutero nunca advogou por
cisma e nunca pretendeu cair nos braços dos príncipes alemães. Mas a igreja, ao
invés de fazer autocrítica, expulsou Lutero e fez uma contrarreforma se
fechando a partir do Concílio de Trento, de 1545 a 1563. Mas o papa Francisco,
em sintonia com a fina flor do Concílio Vaticano II (1962 a 1965), fomenta o
ecumenismo.
A vida é
ecumênica. Na teia da vida, relações ecumênicas são o que fertilizam os
ambientes. Ser ecumênico é um desafio apaixonante e vale a pena. Boa leitura do
que se segue.
[1] Frei e padre da Ordem dos Carmelitas,
mestre em Exegese Bíblica, doutorando em Educação pela UFMG, assessor do CEBI,
de CEBs, do SAB e da CPT; gilvanderufmg@gmail.com
– www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.gilvander.org.br . Esse texto
está publicado como Apresentação do livro de RAMOS NETO, João Oliveira. A Renovação da Tradição: uma análise histórica
da Reforma Protestante do século XVI aos dias de hoje. São Leopoldo: CEBI, 2016,
p. 6-9.