terça-feira, 29 de julho de 2025

A GANÂNCIA DE UNS ROUBA AS CONDIÇÕES DE VIDA DO POVO (Lc 12,13-21) - Por frei Gilvander

A GANÂNCIA DE UNS ROUBA AS CONDIÇÕES DE VIDA DO POVO (Lc 12,13-21) - Por frei Gilvander Moreira[1]

Reprodução Redes Virtuais

Fica mal com Deus / Quem não sabe dar / Fica mal comigo / Quem não sabe amar” (Geraldo Vandré)

Para melhor entender o texto evangélico de Lc 12,13-21 é importante ter presente que, de acordo com o evangelista Lucas, na Palestina do tempo de Jesus vigoravam dois modelos econômicos contrastantes: o sistema das aldeias no campo e o sistema das cidades.

No campo, nas aldeias, as relações humanas e sociais eram de partilha, solidariedade, troca de produtos, mutirões etc., de modo que dificilmente alguém ficava excluído do mínimo para viver com dignidade. Quem, por qualquer motivo, acabasse excluído desse sistema não teria outra solução senão ir para as cidades, tentar sobreviver de bicos na informalidade ou tornar-se mendigo, assaltante…

O sistema de relações econômicas das aldeias contrastava com o das cidades. Desde o século 4º antes da Era Cristã, a dominação do império grego privilegiava a cidade com sua burocracia e elite político-econômica, em prejuízo dos camponeses, que deviam sustentar todo esse aparato burocrático, o luxo e os privilégios de quem dominava os povos a partir da cidade. Desse modo, a cidade se tornou lugar em que poucos tinham acesso ao topo da pirâmide social, gerando consequentemente um subproduto social composto de desempregados, mendigos, ladrões, assaltantes etc. (A parábola dos “operários da vinha”, a do reino divino é vida, em Mt 20,1-16, mostra que, no fim do dia, a praça da cidade continuava cheia de pessoas, pois “ninguém nos contratou”, alegam os marginalizados.)

Está, dessa forma, estabelecido o contraste: no campo (nas aldeias), com esforço, mantém-se um sistema de relações econômicas baseado na troca e na partilha (e isso quase sempre impede que os endividados caiam na miséria e virem mendigos ou bandidos), ao passo que nas cidades acontece o contrário: aí vale a lei do mais forte, daquele que teve melhores oportunidades, gerando consequentemente a exclusão e a marginalidade, acompanhadas de suas crias: mendicância, violência, roubo etc.

Conforme o Evangelho de Lucas, os principais mantenedores desse sistema desigual da cidade são os fariseus. Lucas é o único evangelista a chamá-los de “amigos do dinheiro” (Lc 16,14) e os apresenta como o inimigo número 1 de Jesus. Por quê? Evidentemente porque estão em jogo duas propostas de sociedade: uma fundada na partilha solidária, vivida entre os/as camponeses/sas e assumida por Jesus. Ele a propõe aos discípulos e discípulas como caminho que conduz ao Reino de Justiça, amor e paz. A outra alternativa é a proposta da sociedade, vivida pela sociedade dominante, enraizada no acúmulo e concentração de bens e poder, cujos defensores principais são os fariseus, “amigos do dinheiro”. No Evangelho de Lucas, essas pessoas jamais se relacionam com os pobres, camponeses, mutilados, doentes etc. (cf. Lc 14,12-14). Como diz a parábola do rico esbanjador e do pobre Lázaro, já nesta vida há entre o rico e o pobre um abismo intransponível (cf. Lc 16,19-31).

O Evangelho de Lucas 12,13-21 inicia com o pedido de alguém do meio da multidão: “Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo” (Lc 12,13). Lucas não identifica a pessoa que fez o pedido. É sinal de que muita gente está sentindo a necessidade de que lhe seja feita justiça.

Certamente, essa pessoa que pede a Jesus para ser juiz nessa disputa pela herança pertence ao sistema de relações da cidade, fundado na concentração de bens. A herança soa como resultado de concentração de bens. E Jesus não se põe do lado da concentração, mas da partilha.

 É justo esperar que Jesus faça a distribuição dos bens de herança? (Lc 12,13-15). A resposta de Jesus parece desencorajar qualquer clamor: “Homem, quem me encarregou de julgar ou de dividir os bens entre vocês?” (Lc 12,14). É evidente que a resposta deve ser: “Ninguém!” A partir disso, entre nós, na Igreja, muita gente tira conclusões apressadas: “Está vendo? Jesus não se importou com o clamor por justiça. Os que associam Evangelho de Jesus Cristo e justiça social são traidores da mensagem de Jesus”, afirmam os cristãos que tentam justificar sua vida baseada na acumulação de riqueza.

De fato, se Jesus não tivesse acrescentado mais nada, poderíamos dormir tranquilos diante das injustiças sociais que assolam brutalmente nossa sociedade. Contudo, Jesus acrescentou uma advertência e contou uma parábola que interpela nossa consciência. Elas são como uma fisga que pega a todos e todas desprevenidos: “Atenção! Tenham cuidado com todo tipo de ganância, porque mesmo que alguém tenha muitas coisas, o sentido da vida do homem não consiste na abundância de bens” (Lc 12,14). Com essa advertência, Jesus põe a nu o que estava escondido. Por trás da não-partilha esconde-se a ganância do acúmulo de bens e a consequente perda do sentido da vida que ela gera, tanto para quem acumula, quanto para os que são despojados.

O Evangelho de Jesus diz que acúmulo é loucura (Lc 12,16-21). A parábola é um alerta. Acumular bens e poder é loucura. Não garante a vida de ninguém. De fato, a parábola afirma que o homem já era rico antes de obter uma grande colheita (Lc 12,16). E pelo fato de a colheita ser grande, temos a impressão de que era dono de grandes propriedades, possuidor de celeiros onde acumulava o produto do campo. Ele não pensa naqueles que trabalharam em suas terras a fim de que a colheita fosse abundante. O que planeja é derrubar os celeiros antigos a fim de construir outros maiores para lá armazenar todo o trigo, junto com os seus bens (Lc 12,18). Mais uma vez não pensa naqueles que irão trabalhar para derrubar os velhos armazéns e construir os novos. Ele só pensa em acumular bens para ter vida: “Então poderei dizer a mim mesmo: ‘Meu caro, você tem um bom estoque, uma reserva para muitos anos; descanse, coma, beba, alegre-se!’ ” (Lc 12,19).

O homem da parábola é louco, pois sua riqueza foi construída sobre colunas de injustiça e violência. Por um lado, despojou outros trabalhadores: produziu, derrubou, construiu e acumulou com o suor dos trabalhadores; quer descansar, comer, beber e alegrar-se por longos anos à custa do trabalho de outros e da fome, sede e tristeza dos outros. Esse homem é louco também, porque pretende se tornar absoluto, pensando ter garantido a vida. Mas a vida é dom de Deus. E Deus não se deixa comprar: “Louco! Nesta mesma noite você vai ter que devolver a sua vida. E as coisas que você preparou, para quem vão ficar?” (Lc 12,20).

Deus quer todos e todas tenham vida em abundância (Jo 10,10). O bem-estar de alguns, conseguido à custa da injustiça e da exploração de outros, não é dom de Deus e nem pode ser chamado de vida, pois esta vem de Deus e se destina a todos e todas. A vida é para ser partilhada.

“O que fazer?” Esta era a pergunta a que o homem rico levantou segundo os critérios da ganância. É a mesma pergunta que a parábola faz a cada um de nós: “O que fazer?” Um pouco adiante Jesus dirá: “Busquem o Reino de Deus, e ele dará a vocês essas coisas em acréscimo” (Lc 12,31), pois o Reino de Deus é a vida que se manifesta na partilha de tudo o que temos e de tudo o que somos.

Lucas 12,13-21 nos faz pensar se o repasse de herança para as pessoas herdeiras é algo justo. Varia muito o imposto sobre herança nos países. Na Bélgica, o imposto sobre herança pode chegar a 80% do valor da herança; na França, pode chegar a 60%; no Japão, até 55%; na Alemanha, até 50%; na Coreia do Sul, até 50%; no Líbano, até 45%; nos Estados Unidos, até 40%; nos Países Baixos e Reino Unido, até 40%. No entanto, no Brasil, o imposto sobre herança varia entre 2% e 8%, dependendo do estado. Sem taxar de forma justa os super-ricos no Imposto de renda e na herança, a desigualdade socioeconômica vai se reproduzindo. Especialmente na sociedade capitalista como a nossa, o mínimo que devia existir é o imposto sobre herança com alíquota de 50% e destinado às áreas sociais para melhorar a vida do povo empobrecido. O justo seria a herança ser partilhada entre todos os filhos e filhas – a sociedade inteira – e não apenas com os filhos de uma família nuclear.

Lucas 12,13-31 nos mostra que é impossível ser pessoa cristã autêntica e ser capitalista ao mesmo tempo, pois para ser discípulo/a de Jesus Cristo é preciso viver sob a lógica da partilha, da justiça, da ética e da solidariedade com todos e todas. “Para não ficar mal com Deus é preciso dar” e se doar para poder amar, conforme canta Geraldo Vandré. Por outro lado, o sistema capitalista se reproduz pela lógica da ganância que impulsiona a busca desenfreada pela acumulação de bens e poder, o que desumaniza as pessoas, tornando-as egocêntricas e ensimesmadas.

Jesus propõe aos discípulos e discípulas acumular “riquezas em Deus”. No próximo domingo, 10 de agosto, a Igreja celebra a memória de São Lourenço, diácono da Igreja de Roma, no século III. Na perseguição do imperador Valério, os algozes que o prenderam queriam que ele mostrasse onde ficava o tesouro da Igreja. Ele apontou para os pobres e disse: “Os pobres são o tesouro da Igreja”. Que hoje também a comunhão com os empobrecidos seja nossa riqueza e nosso tesouro.  

Lucas nos mostra Jesus apresentando claramente a ordem econômica e social do Reino de Deus: um reino fundamentado na fraternidade que gera partilha, justiça, solidariedade, cuidado uns com os outros, sem acúmulo de riquezas, sem exploração, onde todos e todas tenham o necessário para viver com dignidade. 

Oxalá toda a Igreja beba da sua própria fonte, volte a Jesus, se deixe iluminar pelo Evangelho de Cristo e por seus próprios ensinamentos. A atenção com os pobres está na tradição da Igreja. Veja, por exemplo, um trecho de homilia de Santo Ambrósio, Padre da Igreja nos primeiros séculos do Cristianismo: "Não é dos teus bens que tu doas ao pobre; tu só lhe devolves o que lhe pertence. Porque é àquilo que é dado em comum para o uso de todos que tu te apegas. A terra é dada a todos, e não somente aos ricos". Suas palavras inspiraram o Papa Paulo VI a afirmar na Encíclica Populorum Progressio, de 1967, que a propriedade privada não constitui para alguns um direito incondicional e absoluto, e que ninguém está autorizado a reservar para o seu uso exclusivo aquilo que supera a sua necessidade, quando aos outros falta o necessário. Portanto,  lutar por essa riqueza que é o Reino de Deus, tão bem apresentado neste Evangelho de Lucas 12,13-21, deve ser a missão de todos os cristãos e cristãs, em comunhão com todas as pessoas de boa vontade. 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI e Ocupações Urbanas; autor de livros e artigos. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       Canal no You Tube: https://www.youtube.com/@freigilvander      –    No Instagram: @gilvanderluismoreira - Facebook: Gilvander Moreira III

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