Acumulam capital destruindo vidas
Por Gilvander Moreira[1]
O touro de Wall Street é um obra crítica que simboliza um mercado financeiro pujante. (Banter Snaps/ Unsplash) |
A realidade dramática causada pela implantação da
barragem e hidrelétrica de Itapebi no Rio Jequitinhonha, no município de Salto
da Divisa, na região do Baixo Jequitinhonha, MG, e em todos os grandes projetos
de interesse do capital, nos recorda Marshall Berman, no livro Tudo o que é sólido se desmancha no ar,
quando o personagem Fausto, após passar pela primeira metamorfose, que o
ensinou a viver e a sonhar, pela segunda metamorfose, que o ensinou a amar, já
na sua terceira metamorfose, ele aprendeu a construir e a destruir. E, assim,
Fausto planeja “esboçar grandes projetos de recuperação para atrelar o mar a
propósitos humanos: portos e canais feitos pela mão do homem, onde se movem
embarcações repletas de homens e mercadorias; represas para irrigação em larga
escala; verdes campos e florestas, pastagens e jardins, uma vasta e intensa
agricultura; energia hidráulica para animar e sustentar as indústrias
emergentes; pujantes instalações, novas cidades e vilas por construir” (BERMAN,
2007, p. 79).
Interessa
a Fausto, acima de tudo, desenvolver-se economicamente, acumular capital. Para
isso ele fez um esforço hercúleo e se transformou em um contumaz destruidor e
criador. “Os projetos de Fausto vão exigir não apenas um imenso capital, mas o
controle sobre vastas extensões territoriais e um grande número de pessoas”
(BERMAN, 2007, p. 79). Fausto recebeu “ilimitados direitos de desenvolver toda
a região costeira, incluindo carta branca para explorar quaisquer trabalhadores
de que necessitem e livrar-se de quaisquer nativos que encontrem no caminho”
(BERMAN, 2007, p. 80). Fausto “exorta seus capatazes e inspetores, guiados por
Mefisto, a ‘usar todos os meios disponíveis / Para engajar multidões e
multidões de trabalhadores. / Incitem-nos com recompensas, ou, sejam severos, /
Paguem-nos bem, seduzam ou reprimam!’” (BERMAN, 2007, p. 81). Ele “está
convencido de que são as pessoas comuns, a massa de trabalhadores e sofredores,
que obterão o máximo benefício dessa obra gigantesca” (BERMAN, 2007, p. 82),
mas no caminho dos projetos de crescimento econômico de Fausto está um casal de
camponeses idosos que resistem para existirem como posseiros a longa data em
uma pequena propriedade. “Filemo e Báucia, um velho e simpático casal que aí
está há tempo sem conta. Eles têm um pequeno chalé sobre as dunas, uma capela
com um pequeno sino, um jardim repleto de tílias e oferecem hospitalidade a
marinheiros náufragos e sonhadores. Com o passar dos anos, tornaram-se
bem-amados como a única fonte de vida e alegria nessa terra desolada” (BERMAN,
2007, p. 84).
Filemo e
Báucia, um casal generoso, humilde, inocente e resignado, mas “são pessoas que
estão no caminho – no caminho da história, do progresso, do desenvolvimento:
pessoas que são classificadas, e descartadas, como obsoletas” (BERMAN, 2007, p.
85). Mas Fausto “se torna obcecado com o velho casal e sua pequena porção de
terra: “Esse casal de velhos devia ter-se afastado, / Eu quero tílias sob meu
controle, / Pois essas poucas árvores que me são negadas / comprometem minha propriedade
como um todo. / [...] Por isso nossa alma se debruça sobre a cerca, / para
sentir em meio à plenitude, o que nos falta” (11 239-52). Eles precisam ser
afastados para dar lugar àquilo que Fausto passa a ver como a culminação do seu
trabalho: uma torre de observação, do alto da qual ele e os seus possam
“contemplar a distância até o infinito”, soberanos sobre o novo mundo que
construíram (Cf. BERMAN, 2007, p. 85).
Fausto
oferece dinheiro ou outra pequena propriedade, mas ao casal idoso não interessa
dinheiro. Aceitar mudar seria como arrancar um pé de bananeira do campo e
tentar plantá-lo no asfalto. Morte na certa. O casal teima e resiste, não
aceita sair da terrinha. Assim, Fausto convoca Melisto e seus “homens fortes” e
ordena-lhes “que tirem o casal de velhos do caminho. Ele não deseja vê-lo, nem
quer saber dos detalhes da coisa. Só o que lhe interessa é o resultado final:
quer que o terreno esteja livre na manhã seguinte, para que o novo projeto seja
iniciado. Isso é um estilo de maldade caracteristicamente moderno: indireto,
impessoal, mediado por complexas organizações e funções institucionais. Mefisto
e sua unidade especial retornam “na calada da noite” com a boa notícia de que
tudo estava resolvido. Fausto, de repente preocupado, pergunta para onde foi
removido o velho casal — e vem a saber que a
casa foi incendiada e eles foram mortos. Fausto se sente pasmo e ultrajado,
tal como se sentira diante de Gretchen. Protesta dizendo que não ordenara
violência; chama Mefisto de monstro e manda-o embora. O príncipe das trevas se
vai, elegantemente, como cavalheiro que é; porém ri antes de sair. Fausto vinha
fingindo não só para outros, mas para si mesmo, que podia criar um novo mundo
com mãos limpas; ele ainda não está preparado para aceitar a responsabilidade
sobre a morte e o sofrimento humano que abrem o caminho. Primeiro, firmou contrato com o trabalho sujo do desenvolvimento; agora
lava as mãos e condena o executante da tarefa, tão logo esta é cumprida. É
como se o processo de desenvolvimento, ainda quando transforma a terra vazia
num deslumbrante espaço físico e social, recriasse a terra vazia no coração do
próprio fomentador. É assim que funciona a tragédia
do desenvolvimento” (BERMAN, 2007, p. 85-86) (grifo nosso).
Esse
Fausto de Marshall Berman representa todos os donos de grandes empresas, seus
executivos e acionistas que, à distância, planejam e implementam megaprojetos
que visam a acumulação de capital, mas preferem não ver o sangue de tantas
vidas ceifadas em nome do ídolo mercado.
Belo Horizonte,
MG, 03/9/2019.
Referência.
BERMAN,
Marshall. Tudo que é sólido desmancha no
ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Obs.: Abaixo, vídeos que
versam sobre o assunto apresentado, acima.
1 - Atingidos pela barragem de Itapebi em
Salto da Divisa, MG: Irmã Geraldinha. 12/08/14
2 - Promotor do MP/MG, de Jacinto, MG:
compromisso com os atingidos pela Barragem de Itapebi. 08/06/16
3 - Pescadores de Salto da Divisa, MG, exigem
seus direitos pisados por empresas e barragem. 08/06 /16
4 - Vazanteiros de Salto da Divisa, MG, lutam
pelos seus direitos pisados pela barragem. 08/06/16
5 - Pedreiros de Salto da Divisa, MG, lutam
pelos seus direitos pisados pela barragem. 08/06/16
6 - Em Salto da Divisa, MG, casas desabando
pela barragem de Itapebi e extratores pisados. 08/06/16
7 - Lavadeiras de Salto da Divisa, MG, exigem
seus direitos pisados pela Itapebi com barragem. 08/06/16
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; mestre
em Ciências Bíblicas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em
Teologia pelo ITESP/SP; assessor da
CPT, CEBI, SAB, CEBs e Movimentos Sociais Populares; prof. de “Movimentos
Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br - www.freigilvander.blogspot.com.br –
www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
Nenhum comentário:
Postar um comentário