Quem pratica a Justiça é filho/a de Deus
Gilvander Moreira[1]
Foto: Divulgçaão / Rede Virtual. |
No mês da Bíblia, em setembro, em 2019, somos
convidados/as a estudar e refletir sobre e a partir da 1ª Carta de João, na
Bíblia. Ao ler e estudar a 1ª Carta de João (1 Jo), faz bem termos em mente os
clamores por justiça que advém dos porões da humanidade e das entranhas dos
povos injustiçados. A 2ª parte da 1ª Carta de João (1 Jo 2,29-4,6) versa sobre
a Justiça e afirma que quem pratica a justiça é filho/a de Deus. Esta 2ª parte está organizada em quatro partes
menores, nas quais se fazem quatro exortações básicas. São elas: a) 1 Jo 2,29 -
3,2 - Deus é justo; b) 1 Jo 3,3-10 - Romper com o pecado; c) 1 Jo 3,11-24 -
Praticar o amor; d) 1 Jo 4,1-6 - Saber discernir.
A 1ª Carta de João é escrita em forma de homilia, que
é o seu gênero literário. O texto todo é perpassado por uma relação de
proximidade e profundo carinho pelas Comunidades do Discípulo Amado. Isso
transparece no vocabulário muito afetivo. A palavra ‘filhinhos’ aparece nove
vezes na 1ª Jo[2] e a
palavra ‘amados’ é usada cinco vezes[3]. Isso
demonstra que o autor da Carta escreve para corrigir fraternalmente as
comunidades cristãs, mas não é ríspido e, volta e meia, demonstra carinho e
ternura no trato com as pessoas.
Deus é justo (1 Jo 2,29-3,2). ‘Deus é justo’ (1 Jo 1,9) e ‘Jesus
Cristo é justo’ (1 Jo 2,1.29; 3,7), eis as duas primeiras afirmações de fé das
Comunidades Cristãs do Discípulo Amado. “Vocês
sabem que Jesus é justo; reconheçam, pois, que toda pessoa que pratica a
justiça nasceu de Deus” (1 Jo 2,29). Jesus de Nazaré, condenado à pena de
morte por crucifixão, porém Ressuscitado, está sendo fonte de inspiração e de
luta no seio das Primeiras Comunidades Cristãs, e também, obviamente, no
interior das Comunidades do Discípulo Amado, nas várias fases pelas quais as
comunidades passaram, dentro e fora da Palestina, colônia do Império Romano.
Entretanto, calúnias e difamações sobre a pessoa e a prática de Jesus não eram
apenas coisas do passado. Havia nas Comunidades do Discípulo Amado ou ao redor
delas, pessoas acusando Jesus Cristo de ser injusto. Essa crítica recaía também
sobre as pessoas participantes das comunidades, pois ‘Como seguir alguém que era considerado injusto?’, alegavam os
acusadores. A 1ª Carta de João tem também o objetivo de defender Jesus Cristo e
seus seguidores e seguidoras dessa e de muitas outras acusações. Daí, a
afirmação categórica advinda da experiência pessoal das pessoas integrantes das
comunidades: Jesus é Justo e, por
praticar a justiça, nós o consideramos Filho de Deus. Não basta ser
batizado para ser filho ou filha de Deus: é preciso praticar a justiça. E não
qualquer tipo de justiça, mas a Justiça libertadora e emancipatória. As
comunidades do evangelista Mateus alertavam: “Se a justiça de vocês não superar
a dos doutores da lei e dos fariseus, vocês não entrarão no reino dos céus” (Mt
5,20). Mateus estava se referindo aos doutores e fariseus ritualistas,
fundamentalistas e moralistas, o que restou do farisaísmo após a guerra
judaica, quando a cidade de Jerusalém e o templo foram devastados, por volta
dos anos 70 do século I da era cristã.
Para as Comunidades do Discípulo Amado, “Deus é Pai” (1 Jo 3,1), não é o Deus
temido, justiceiro e castigador. Se Deus é Pai, todas as pessoas são filhas e
filhos de Deus, portanto, irmãs e irmãos e têm a mesma dignidade. Ninguém pode
ser escravizado e nem discriminado ou rejeitado. “Somos filhas e filhas de Deus”, diziam alto e em bom som as pessoas
participantes das Comunidades do Discípulo Amado. Isso era um ‘chute na canela’ do sistema escravocrata
do imperialismo romano, pois ‘puxava o
tapete’ da naturalização do relacionamento “senhor X escravo”. Anulava a
hierarquia social e tornava ilegítimo o que a ideologia dominante da época
repetia cotidianamente. Com isso, muitas pessoas escravizadas sentiam-se
animadas a ingressarem nas Comunidades do Discípulo Amado, pois lá iriam ser
tratadas com dignidade de pessoa humana e não mais como escravos. Reconhecer
que Deus e Jesus são justos, leva à necessidade de se romper com relações
sociais de pecado e de opressão.
Romper com o
pecado (1 Jo 3,3-10). Se ficarmos na
leitura superficial de 1ª Carta de João poderemos ser tentados a cair em
dualismos e em moralismos. O autor da 1ª Carta de João é radical e só conhece “branco ou preto”, não há meio termo;
exige-se posição clara e não política de boa vizinhança ou “acender uma vela a Deus e outra ao diabo”.
A 1ª Carta de João exorta as Comunidades do Discípulo Amado a romperem com o
pecado. Porém, não se refere a pecado no sentido moralista e, sim, a um sistema
de pecado, engrenagem de morte que passo a passo vai empurrando as
pessoas para a morte. Dessa engrenagem fazia parte o que impunha o imperialismo
romano: a escravidão, a exploração tributária e a ideologia dominante, que
agredia a dignidade da pessoa humana e apresentava os violentados como se
fossem violentos e os violentos como se fossem vítimas.
“Pecar é violar
a lei” (1 Jo 3,4), mas qual lei? Certamente não o legalismo
judaico-farisaico, que impunha um monte de leis moralistas para excluir e
discriminar as pessoas empobrecidas. A 1ª Carta de João se refere à Lei
original, que tem como fundamento o Decálogo bíblico (Ex 20,13) que tem como
seu princípio fundamental a 5ª palavra, que afirma: “Não matarás!” ou dito de forma positiva: “Farás viver!”. As Comunidades do Discípulo Amado se opunham ao
pecado para defender a vida, não de forma abstrata, mas por meio de condições
materiais e objetivas que viabilizam a vida com dignidade.
“Toda pessoa que
permanece em Jesus – e no seguimento do seu projeto – não peca” (1 Jo 3,6). O que implica ‘permanecer’ em Jesus e ‘não
pecar’? As Comunidades do Discípulo Amado eram frágeis e minoritárias.
Participar de uma comunidade, ainda vista por muitos como uma seita herética,
era um desafio. Dizer que se pertence a uma igreja majoritária é cômodo. O que
predominava na época das Comunidades do Discípulo Amado eram as religiões
imperiais – que divinizavam o imperador, os reis e seus sacerdotes - e as
religiões mistéricas – que insistiam mais no culto como caminho de aproximação
a Deus. Nesse contexto, a 1ª Carta de João exorta as pessoas a permanecerem (hipomonê, em grego) nas Comunidades do
Discípulo Amado, a não perder a paixão do primeiro amor e, principalmente, a
não desanimar diante das adversidades e das perseguições. ‘Permanecer’
significa resistir de baixo para cima e de dentro para fora. Na terra, a raiz
da mandioca resiste de forma orgânica e, por isso, cresce e faz rachar a terra.
É resistir para existir. Assim era a convicção do autor de 1 Carta de João.
“Quem pratica a
justiça é justo, assim como Jesus é justo” (1 Jo 3,8). A 1ª Carta de João
enfatiza a prática que revela a justiça. Não basta dizer que somos justos. Nesse ponto, a 1ª Carta de João está em
consonância com as comunidades de Tiago e com as comunidades lucanas que também
enfatizam a PRÁTICA como critério do seguimento de Jesus Cristo. O autor da
Carta de Tiago dizia: “A fé sem obras é
morta” (Tg 2,17); é preciso prática libertadora. Para Lucas, a prática é
decisiva. Isto é comprovado pelo Evangelho de Lucas e por Atos dos Apóstolos –
obra lucana - em expressões tais como: “Façam coisas para provar que vocês se converteram...” (Lc 3,8a); “As multidões, alguns cobradores de impostos,
alguns soldados... perguntaram a João Batista: ‘O que devemos fazer? ’” (Lc 3,10. 12.14). Um escriba pergunta a
Jesus: “O que devo fazer para
receber em herança a vida eterna?” (Lc 10,25) e depois de contar o
“episódio-parábola” do Bom Samaritano, Jesus responde dizendo: “Vá, e faça
a mesma coisa” (Lc 10,37). Muitos outros textos podem ser evocados para
respaldar a conclusão de que Lucas dá uma grande prioridade à AÇÃO. O primeiro
versículo dos Atos dos Apóstolos traz a seguinte frase: “... tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar”. A prática é
recordada antes do ensinamento, o que quer dizer que acima da ortodoxia está a
ortopráxis, prática correta e libertadora. Mais importante do que ter uma
“opinião certa” é ter uma ‘prática correta, libertadora’. Lucas quer dizer que
uma das grandes características das comunidades cristãs deve ser a ação, a
prática, o testemunho. Não se trata de qualquer
tipo de ação, mas de ação solidária e
libertadora. Para ser libertadora, a ação não pode ser assistencialista,
nem paternalista, nem clientelista, não pode ser para o pobre, mas COM o
empobrecido. A ação libertadora acontece na atuação COM os pobres e A PARTIR
DELES, estabelecendo lutas concretas que levam a conquistas dos seus direitos.
No tocante à prática da justiça, o Evangelho de Lucas, Atos Apóstolos, a Carta de
Tiago e a 1ª Carta de João estão irmanados.
Belo Horizonte, MG, 06/8/2019.
Obs.: Quem quiser adquirir o Livrinho Texto-base do mês
da Bíblia, do CEBI-MG, de 2019 - A Comunhão entre Deus e Nós e como subtítulo Uma
leitura da Primeira
Carta de João feita pelo
CEBI-MG - entrar em contato com
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[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em
Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel
em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI,
SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos
Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br - www.freigilvander.blogspot.com.br –
www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[3]1 Jo 3,2.21;
4,1.7.11;
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