Estado e capital pisando no povo
Por Gilvander Moreira[1]
Povo de Salto da Divisa, no Vale do Jequitinhonha, MG, reivindica indenização justa da empresa que construiu a Barragem e hidrelétrica de Itapebi, dia 02/7/2014. Foto: Pollyanna Maliniak |
Urge resgatarmos histórias que podem inspirar lutas populares por justiça social. Necessário se faz pensarmos a partir da realidade das pessoas violentadas nos seus direitos. Eis um caso eloquente: A construção da barragem e da hidrelétrica de Itapebi, no rio Jequitinhonha, na região do Baixo Jequitinhonha, MG, se tornou um divisor de águas na vida do povo de Salto da Divisa: antes, vida simples, mas digna; depois, sofrimento e injustiça crescente.
A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), em dezembro de 1998, licitou a exploração do aproveitamento hidrelétrico das águas do rio Jequitinhonha, no município de Salto da Divisa, na região do Baixo Jequitinhonha, abrindo caminho, assim, para a construção da barragem e da hidrelétrica de Itapebi. Integrado pelo Grupo Neoenergia, formado por uma empresa espanhola - a Iberdrola (39%) -, Banco do Brasil (12%) e a Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil - a PREVI (49%) -, o Consórcio Itapebi Geração de Energia S/A venceu a licitação (Cf. RIBEIRO, 2008). Em 2015, os acionistas do Grupo Neoenergia eram a Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (PREVI), com 49,01% das ações da empresa, a Iberdrola, com 39%, e o Banco do Brasil, com 11,99.[2]
Os dados, acima, demonstram o capital internacional sendo investido no Brasil e se ampliando, pois a transnacional Iberdrola aumentou sua participação no consórcio de 39%, em 1998, para 49,01%, em 2015. O Estado brasileiro também investindo em barragens e construção de hidrelétricas, mas sem ter lucro, pois no caso da barragem e hidrelétrica de Itapebi, o Banco do Brasil, banco do Estado brasileiro, investiu 12%, em 1998, e 17 anos depois, estava apenas com 11,99% das ações. O dinheiro da previdência dos trabalhadores assalariados do Banco do Brasil também foi usado para financiar a construção da barragem e da hidrelétrica de Itapebi, mas sem ganho nenhum, pois em 1998 a PREVI investiu 49% do consórcio e 17 anos depois tinha os mesmos 49%. Conclusão: o grande projeto da barragem e da hidrelétrica de Itapebi, financiado em 61% com dinheiro do Estado brasileiro e de trabalhadores brasileiros, gerou ampliação de capital exclusivamente para uma transnacional: a Iberdrola.
Temos aqui um exemplo da aliança entre capital nacional e internacional: a espanhola Iberdrola com 39% das cotas, e o Banco do Brasil com 11,99%, banco que deveria ter de fato preponderância do interesse público, mas conjugado com o fundo de pensão dos bancários, a PREVI com 49,01% das cotas se associou para destroçar a vida de centenas de famílias que de forma austera e simples vivia feliz antes da construção da barragem. Não são apenas alguns patrões responsáveis pela opressão do povo, mas milhares de pessoas estão com as mãos sujas por sustentarem o capitalismo, que está gerando uma dramática injustiça social que campeia na região de Salto da Divisa, em Minas Gerais, na divisa com o estado da Bahia.
Ainda sem entender o que estava acontecendo, sem ser consultado, o povo do município de Salto da Divisa descobriu que o Grupo espanhol Iberdrola já estava com a Licença Prévia na mão, concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Logo após a licitação, seis meses depois, em julho de 1999, a Prefeitura Municipal de Salto da Divisa, MG, nas mãos das famílias Cunha Peixoto e Pimenta que se revezam no exercício do poder político municipal, por meio do Ofício nº 026/99, se posicionou dando anuência à implantação da barragem e da hidrelétrica de Itapebi. Estamos diante de um exemplo de comando compartilhado entre o poder político nacional, o estadual e o municipal. O coronelismo atuando em vários níveis. Com uma rapidez incrível, em setembro do mesmo ano, foi emitida a Licença de Instalação e, em dezembro de 2002, a Licença de Operação, atropelando centenas de famílias que foram encurraladas na Vila União, em um reassentamento precário.
A barragem e a hidrelétrica de Itapebi, com um lago artificial de 62 quilômetros² no rio Jequitinhonha, afetaram diretamente centenas de famílias pobres de Salto da Divisa, entre pescadores, extratores de pedra, lavadeiras e garimpeiros (de topázio e diamante), além de outras comunidades nos municípios de Itapebi, Itagimirim e Itarantim, todos na Bahia. O reassentamento foi feito em casas com muitos problemas de infraestrutura: goteiras, janelas que logo apodreceram, canos que arrebentaram logo no primeiro ano. A água da barragem, quase parada, iniciou processo de perda gradativa de qualidade, de acordo com relato de irmã Geraldinha: “A água está tão imunda que parece haver produtos químicos; há também vários animais mortos no lago. Antes do empreendimento a água era corrente e não havia este problema. A comunidade diz que depois do empreendimento não estão mais consumindo a água, estão usando água de fora. [...] A água tornou-se imprópria para o uso doméstico (...), lamacenta e com sujeiras que se acumulam nas margens não sendo possível lavar roupa, tomar banho, utilizar a água para fazer comida e outras coisas necessárias” (Relato de Irmã Geraldinha, uma das fundadoras do GADDH (Grupo de Apoio e Defesa dos Direitos Humanos de Salto da Divisa), extraído do Processo nº 1.22.000.002045/2006-08. Volume I).
Houve um aumento de doenças de pele e verminoses, além de intensa proliferação de mosquitos e pernilongos, nas proximidades da área alagada. Os Moradores denunciam ainda problemas referentes às alterações no modo de vida, agressão cultural grave, conforme expressa o relato de moradora de Salto da Divisa, durante Oficina de Cidadania e Justiça Ambiental, em 2009: “A gente tinha a nossa cachoeira que a gente aproveitava muito bem, era a nossa área de lazer. Aos domingos, minha mãe juntava a roupa da semana, colocava na cabeça, todo mundo com sua trouxa de roupa, caldeirão de feijoada, ia pra lá [para a beira do rio], passava o dia, a gente lá era feliz... E hoje? A gente não tem mais esse encontro. A gente tomava banho, a gente brincava na areia, a gente jogava bola, a gente corria, a gente brincava de esconde-esconde entre aquelas pedras. A coisa mais linda e bonita que a gente tinha [...] Então acabou com tudo isso. E como é que fica?”.
Aconteceram também muitos prejuízos e asfixia das formas camponesas de trabalho, como a exercida pelas lavadeiras, pelos pescadores, pelos garimpeiros e pelos extratores de pedra. Mas como tudo concorre para algum bem, essas injustiças levaram o povo a se organizar em associações, sempre estimulados por irmã Geraldinha. Eis um retrato dessa realidade revelado por Juvercilha Maria De Jesus, presidenta da Associação das Lavadeiras de Salto da Divisa, em Audiência do Ministério Público de Minas Gerais, na Câmara de Vereadores de Salto da Divisa, dia 08/6/2016: “E o que aconteceu é que nós exigimos a lavanderia, porque a gente lavava roupa no rio; lá a gente lavava, enxugava, trazia no ponto só de alisar e entregar pra patroa, era o nosso ganha pão. [...] Aí nós exigimos a lavanderia. Mas [...] eu nem sabia o que era lavanderia. [...] Então, um grupo de mulher, que vivia o tempo todo no rio, que ia de manhã e voltava de tarde, todo dia, sem depender de ninguém; ninguém pediu pra inundar o rio não, ninguém pediu ninguém pra fazer barragem. Nós tava vivendo sem precisar de barragem.”
Juvercilha relatou também: “A associação das lavadeiras está na justiça. Falaram que ia fazer a lavanderia, mas não foi feito do jeito que eles falaram. A pia é pequena e de plástico. Agora temos que pagar água e energia” (Juvercilha, na Audiência, dia 08/6/2016). Um funcionário da empresa Itapebi, a Neoenergia, propôs que as lavadeiras substituíssem a atividade de lavadeiras por um projeto de bordado e crochê. Indignadas, responderam: “Quando vocês [representantes da empresa] chegaram aqui, vocês não encontraram nenhuma de nós fazendo bordado e tricô não. Vocês nos encontraram lavando roupa pra sobreviver. Se a gente for aprender a fazer bordado e tricô pra sobreviver, até lá nós já morremos de fome” (Juvercilha, dia 08/6/2016).
Belo Horizonte, MG, 20/8/2019.
Referência.
RIBEIRO, Morel Queiroz da Costa. O Licenciamento ambiental de aproveitamentos hidroelétricos: o espaço da adequação. (Dissertação de Mestrado em Geografia). Belo Horizonte: IGC/UFMG, 2008. Disponível em http://gestaprod.lcc.ufmg.br/app/public/index.php/conflito/getFile/854
Obs.: Abaixo, vídeos que versam sobre o assunto apresentado, acima.
1 - Atingidos pela barragem de Itapebi em Salto da Divisa, MG: Irmã Geraldinha. 12/08/14
2 - Promotor do MP/MG, de Jacinto, MG: compromisso com os atingidos pela Barragem de Itapebi. 08/06/16
3 - Pescadores de Salto da Divisa, MG, exigem seus direitos pisados por empresas e barragem. 08/06 /16
4 - Vazanteiros de Salto da Divisa, MG, lutam pelos seus direitos pisados pela barragem. 08/06/16
5 - Pedreiros de Salto da Divisa, MG, lutam pelos seus direitos pisados pela barragem. 08/06/16
6 - Em Salto da Divisa, MG, casas desabando pela barragem de Itapebi e extratores pisados. 08/06/16
7 - Lavadeiras de Salto da Divisa, MG, exigem seus direitos pisados pela Itapebi com barragem. 08/06/16
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB, CEBs e Movimentos Sociais Populares; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br - www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
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