João Batista, profeta reformista ou revolucionário?
Gilvander Moreira[1]
Faustino Raineri, A decapitação de São João Batista, século XIX. (Reprodução) |
Antes
do Natal, durante o Advento, passagens do Evangelho de Jesus Cristo referentes à
ação e ao ensinamento de João Batista são lidas e apresentadas durante as
celebrações religiosas em igrejas e comunidades cristãs. Quem foi, o que
ensinou e o que fez João Batista que entrou para a história cristã como profeta
precursor de Jesus Cristo (Lc 3,3)? Os
evangelistas Lucas e Marcos fazem Jesus iniciar sua missão pública ao ouvir que
João Batista tinha sido preso a mando do governador Herodes Antipas (Lc 3,19s; Mc
1,14; At 13,25). Um fato político - a prisão de um profeta – foi o
acontecimento que desencadeou o início da missão de Jesus Cristo. Para Lucas
João é "o Batista" (Lc 7,20), como era conhecido na tradição das
primeiras comunidades cristãs.
João
Batista, profeta de ética reformista? (Lc 3,10-14). Diante da pergunta “Que
devemos fazer?” levantada pela multidão, por agentes do fisco e por policiais,
João Batista propõe à multidão partilha (“Quem
tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem” (Lc 3,11)), aos cobradores de
impostos exorta a serem éticos (“Não
cobrem nada além da taxa estabelecida” (Lc 3,12-13)), e aos policiais, não
extorquir o povo (“Não maltratem ninguém;
não façam acusações falsas e fiquem contentes com o salário de vocês” (Lc
3,14). Esses conselhos de João Batista não deixam de ser, em certo modo, um
tanto ambíguos. Por um lado, manifestam um verdadeiro interesse pelo próximo
nos variados aspectos; porém, por outro, não pretendem revolucionar as
estruturas sociais do status quo
opressor da época, nem sequer diante da "iminência da ira" que vem.
João Batista defende a distribuição partilhada dos recursos fundamentais para a
existência (Lc 3,11), a fuga da extorsão (Lc 3,12-13), a abolição da chantagem
e de qualquer medida intimidatória (Lc 3,14). Porém não diz aos arrecadadores
de impostos que devem cortar suas relações com o poder opressor do império – o
que fez Antônio Conselheiro em Canudos (1893-1897) -, nem aos soldados - ainda
que talvez se trate de ‘mercenários’ - que abandonem sua profissão. Na
realidade, o último conselho que dá aos soldados: "conformai-vos com vosso salário" (Lc 3,14), nem sequer
contempla a possibilidade de que se trate de um salário injusto. Aqui João
Batista é apresentado por Lucas como um “reformista” e não um revolucionário.
Onde
João Batista foi preso e martirizado? Precisamos recorrer à arqueologia cristã
e ao historiador Flávio Josefo (37-100 d.C.). As descobertas arqueológicas da
Fortaleza de Maquerontes sustentam a credibilidade do que Flávio Josefo escreveu
a respeito do profeta João Batista. Um dos grandes resultados da arqueologia da
Palestina foi ter iluminado a época herodiana. Flávio Josefo fala de Herodes, o
Grande, como um megalomaníaco e que se deleitava no luxo. Segundo Flávio
Josefo, o cinismo e a suspeita política ensanguentaram muitas vezes a família
de Herodes. Esse mandou assassinar três filhos, a mulher que "amava",
cunhados e amigos de confiança e realizou o massacre das crianças quando soube
do nascimento de Jesus. Herodes, rei estrangeiro (imposto sobre o povo da
Palestina), de origem idumeia, quis fazer de Jerusalém a capital
político-religiosa do reino. Ao lado do complexo do Templo mandou construir a
Fortaleza Antônia, do lado norte, o ponto mais vulnerável da cidade, e sobre a
colina ocidental, o palácio real com três torres de defesa. Construiu também em
Jerusalém um teatro, um hipódromo, um anfiteatro e, fora da cidade, mandou
levantar os monumentos sepulcrais em honra aos reis Davi e Salomão, e o
mausoléu da família de Herodes. Fora de Jerusalém, a cidade de Samaria foi
reconstruída, a costa palestinense foi provida de um porto artificial em
Cesareia marítima. Herodes construiu palácios em Jericó, Asquelon e em diversas
outras localidades do reino. Um pouco por toda parte foram erguidos templos que
fomentavam a divinização do imperador de Roma.
Para a
“segurança nacional (?)”, mas sempre na esteira da grandiosidade, foi
reconstruída ou potencializada a rede de fortalezas que o rei Herodes tinha
herdado dos Asmoneus no deserto de Judá, na Palestina. A Fortaleza de Kypros
protegia a estrada que subia de Jericó para Jerusalém. Próximo a Belém estava a
Fortaleza de Herodion, escolhida como mausoléu real. E perto da foz do Mar
Morto estava a Fortaleza de Massada. Nos confins meridionais da província da
Pereia, do outro lado do Rio Jordão, Herodes reconstruiu a Fortaleza de
Maquerontes. Flávio Josefo conclui: "Depois
de ter terminado todas essas construções grandiosas, fez exibição da sua
grandeza também em muitas cidades fora do seu reino."
Em
1963, em Jerusalém, o arqueólogo Virgílio Corbo iniciou pesquisa arqueológica
da Fortaleza de Herodion. Contemporaneamente, o arqueólogo Yadin dirigia as
escavações da Fortaleza de Massada. As escavações realizadas confirmam
substancialmente as páginas entusiasmadas dedicadas por Flávio Josefo ao rei
Herodes, o Grande. Este tinha desenvolvido uma política contrária a Flávio
Josefo e ao povo judeu, política de subserviência ao imperialismo romano.
Em
1978, depois de quatro campanhas de escavações arqueológicas, os arqueólogos
conseguiram dar um rosto à Fortaleza de Maquerontes, considerada por Flávio
Josefo como um dos quartéis generais do sistema repressivo de Herodes. Diz o
historiador Flávio Josefo: "Herodes considerou Maquerontes um lugar digno
da máxima atenção para construir a mais potente fortaleza”. Maquerontes foi
construída no tardio período helenístico e reconstruída sobre as precedentes
ruínas de forma luxuosa, na época herodiana. Dentro da Fortaleza de Maquerontes
estava um palácio real com todas as comodidades de uma cidade fortificada, com
termas etc. Era dividida em três blocos. Do lado de fora estava uma cidade
baixa.
Segundo
Flávio Josefo[2], João
Batista foi encarcerado na Fortaleza de Maquerontes e depois Herodes Antipas,
herdeiro da megalomania e do caráter opressor e repressor do pai, Herodes o
Grande, o mandou assassinar degolando-o. Nenhum evangelho recorda o nome do
lugar onde Herodes tinha mantido João Batista preso. Os arqueólogos Stanislao
Loffreda e Virgílio Corbo afirmam: "Antes
de mais nada, a escolha da Fortaleza de Maquerontes para encarcerar João
Batista nos parece natural e verídica. Pois Maquerontes era perto de onde João
Batista, possivelmente, desenvolvia sua atividade e também fornecia a máxima
segurança para o confim meridional da Pereia". Segundo o Evangelho de
Marcos, João Batista era mantido sob estreita observação durante sua prisão e acorrentado
(Mc 6,16). É possível que o profeta tenha sido acorrentado em um subterrâneo
escuro, isolado de tudo e de todos. Mas era visitado por discípulos (Mt
11,2-3). Até a triste notícia do seu assassinato chega aos discípulos
facilmente, pois eles vêm sepultar o seu corpo (Mc 6,29).
Maquerontes
não era uma simples fortaleza ou um quartel general, mas era uma prisão de
segurança máxima que compreendia uma cidade. Considerando a grande popularidade
que João Batista tinha no meio do povo (segundo Flávio Josefo e os evangelhos
sinóticos: Mt, Mc e Lc), é possível sugerir que na cidade baixa, descoberta por
pesquisas arqueológicas, existia discípulos de João Batista.
Na
hipótese histórica de que o banquete oferecido por Herodes, durante o qual se
decidiu degolar João Batista (M 6,14-29), se deu na mesma fortaleza, a descoberta
arqueológica do refeitório ao sul do cortil dá ao relato do Evangelho de Marcos
uma trágica imediatez.[3] É
óbvio que os evangelhos não são obras históricas, mas teologias da História. E
Flávio Josefo também precisa ser lido com criticidade. Mas é importante
recordar a possibilidade das tradições orais e/ou escritas conservarem um bom
grau de fidelidade aos fatos históricos.
Flávio
Josefo também dedicou à figura de João Batista um parágrafo nas suas Antiguidades Judaicas: "Alguns
judeus pensaram que o exército de Herodes (Antipas) havia sido destruído por
Deus e que o rei havia sido justamente castigado pela execução de João, chamado
"o Batista". É que Herodes havia feito assassinar este homem bom, que exortava as pessoas
a levarem uma vida honrada, tratando-se com
justiça uns aos outros, [...]. Enquanto o povo que se aglomerava ao seu
redor ia aumentando, porque as pessoas estavam entusiasmadas com suas palavras,
Herodes se encheu de temor de que o êxito que João tinha com o povo poderia
desembocar em uma insurreição; porque parecia que se o profeta dissesse uma só
palavra, o povo estava disposto a abraçar luta por justiça. Por isso, antes de
que João pudesse provocar uma insurreição, Herodes considerou prudente
antecipar-se aos acontecimentos, encarcerando o profeta e eliminando-o antes
que esperar que se produzisse um levante popular; mas criou uma situação
difícil para ele e depois teve que arrepender-se. Como resultado destas
suspeitas de Herodes, João foi preso e colocado na Fortaleza de Maquerontes
(uma prisão de segurança máxima) [...]. E lá foi assassinado. E por isso os
judeus acreditaram que a derrota do exército de Herodes foi uma atuação de
Deus, que castigou Herodes para vingar a morte daquele homem"[4].
Lucas
descreve João Batista sempre como inferior a Jesus, pois Jesus deve crescer e
João, diminuir. Afinal, os evangelhos foram escritos por discípulos de Jesus
Cristo. Se os discípulos de João Batista fossem escrever Evangelhos de João
Batista, certamente colocariam Jesus como menor do que João Batista. Jesus
seria o precursor de João Batista, que teria entrado para a história como o
Messias, filho de Deus. Entretanto, se João Batista tivesse sido apenas
reformista, não teria sido empurrado para prisão de segurança máxima e nem
teria sido condenado à pena de morte, sob degolação. Enfim, João Batista e
Jesus Cristo fizeram opção pelos pobres (opção de classe), foram revolucionários
e, por isso, martirizados, mas estão muito vivos em cada militante que se
dedica à construção de uma sociedade justa, democrática, solidária,
(macro)ecumênica e sustentável ecologicamente.
BH, 17/12/2018.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em
Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel
em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI,
SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos
Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Antiguidade Judaica XVIII, 5,1-12.
[3] Cf. V. Corbo, "La fortezza di
Macheronte. Rapporto preliminare". LA (= Liber Annus) XXVIII, 1978, pp. 217-231;
LA 1979, pp. 315-326; LA 1980, pp. 365-376; LA 1981, 257-286. S. Loffreda, Ceramica di Mishnaqa-Macheronte (I sec. a. C. - I sec. d. C.).
[4] Antiguidade Judaica. XVIII, 5, 2,
nn. 116-119.
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