terça-feira, 24 de outubro de 2023

Se não reduzir a mineração no quadrilátero aquífero, BH e RMBH ficarão sem água – Por frei Gilvander

 Se não reduzir a mineração no quadrilátero aquífero, BH e RMBH ficarão sem água – Por frei Gilvander Moreira[1]


Com o avanço brutal da mineração no Quadrilátero Aquífero e Ferrífero de Belo Horizonte (BH) e Região Metropolitana (RMBH), se a mineração não for reduzida para o mínimo necessário, os quase 6 milhões de pessoas de BH e RMBH ficarão sem água, sem agricultura famíliar, sem ambiente, enfim, sem condições objetivas de vida, será a desertificação da região. Só não percebe isto quem está cegado pela ideologia da mineriodependência, do progressismo e pela idolatria do mercado, ou é de má-fé ou egocêntrico, está ganhando dinheiro fazendo funcionar a máquina de guerra da mineração que gera acumulação de capital para 1% da sociedade e miséria e violência socioambiental para 99% do povo e toda a biodiversidade. Os sinais e as provas são inúmeros. Não há só fumaça, mas fogo mesmo. Vamos mencionar alguns abaixo.

Assim como a cidade de Itabira, em Minas Gerais, após mais de 80 anos de mineração devastadora, está praticamente dentro de crateras da mineradora Vale S/A e ostentando o triste título de uma das cidades do Brasil com maior número de suicídio e de pessoas com depressão – “Itabira, apenas um quadro na parede”, denunciava o poeta Drummond -, as 34 cidades da RMBH, em visão panorâmica aérea, parecem estar cada vez mais encurraladas por crateras de mineração com danos socioambientais brutais. Pior: está aumentando de forma estarrecedora o número de novos projetos de mineração na RMBH. São dezenas. Em BH, se não fosse a luta hercúlea do Quilombo Manzo e de muitos movimentos socioambientais, a situação seria bem mais grave, pois as mineradoras insistem em liquidar com o pouco de Serra do Curral que ainda resiste.

As 17 audiências do Plano de Desenvolvimento Integrado da RMBH (PDDI-RMBH), em agosto de 2023, demonstraram que as 34 cidades da RMBH estão em acelerado processo de conurbação, ou seja, é exorbitante o número de novos loteamentos e a expansão da maioria das cidades da RMBH. As áreas rurais estão sendo ocupadas por novos bairros, loteamentos e ocupações irregulares. Foi denunciado com ênfase que a causa maior da escassez hídrica e da desigualdade em BH e RMBH se deve à hegemonia das mineradoras que estão causando brutais devastações socioambientais e impondo a mineriodependência de forma atroz. O povo de Brumadinho está adoecido. A Fiocruz comprovou a existência de metais pesados no sangue de muita gente de Brumadinho. O número de suicídio está crescendo.



O projeto do desgovernador de Minas Gerais, Romeu Zema, de construir um “Rodoanel” na RMBH é inadmissível, porque será na prática um rodominério, ou seja, infraestrutura para as mineradoras continuarem expandindo a mineração na RMBH, o que é insuportável. Em nome dos direitos da natureza e dos direitos das próximas gerações, ético se faz implementar mineração zero em BH e RMBH, mas o Governo de MG, sob os ditames da extrema direita e vassalo do neocolonialismo capitalista, segue em conluio com as grandes mineradoras e as grandes empresas asfixiando as condições de vida de quase 6 milhões de habitantes e de bilhões  de seres vivos que têm direito de viver na RMBH. A toque de caixa, a SUPRI[2] e a Câmara de Atividades Minerária do COPAM[3], como uma casa de horrores, aprova todos os grandes projetos de mineração ao arrepio dos estudos imparciais que demonstram que serão brutalmente danosos ao ambiente e à sociedade.

No último dia 19 de outubro (de 2023), aconteceu na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), na Comissão de Meio Ambiente, a 2ª Audiência Pública buscando garantir a preservação da Estação Ecológica de AREDES, em Itabirito, MG, e reivindicando o arquivamento do Projeto de Lei 387/23, que visa mudar o perímetro da Estação Ecológica de Aredes para que a mineradora Minar volte a minerar no coração da Estação Ecológica de AREDES. Reivindicamos que a Comissão de Meio Ambiente dê parecer pró-arquivamento do PL 387. Em um país com relações sociais injustas, o simples fato de requentar este famigerado PL pela 3ª vez nas três últimas legislaturas, seria o suficiente para indiciar como criminosos os que defendem este crime planejado e anunciado.

Os donos da mineradora Minar e seu séquito de “técnicos” preferiram não participar da 2ª Audiência Pública, certamente porque na 1ª Audiência Pública e na Visita Técnica na Estação Ecológica de Aredes passaram vexame e vergonha ao terem todos seus pretensos argumentos desmascarados como infundados e propaganda mentirosa. Não foram trazidas também as pessoas manipuladas que lotaram um ônibus da 1ª vez, pago por adeptos da mineradora Minar, sem saber o que fariam na ALMG, vieram apenas para receber salário de uma pessoa escravizada por dia, para marcar presença e vaiar quem defendia AREDES. Triste ver pessoas vulneráveis sendo usadas por exploradores que vendem a propaganda de que “mineração traz emprego e desenvolvimento”. Mentira! Quando uma mineradora emprega alguém desemprega em massa, pois asfixia outros modelos de economia e gera a danosa mineriodependência.

Na 2ª Audiência Pública vieram representantes da SEMAD[4], do IEPHA[5] e um diretor de Parques responsável por cuidar de AREDES. Não disseram coisa com coisa, se esquivaram de se posicionar sobre o PL 387 que, se aprovado, devastará a Estação Ecológica de AREDES, mas com evasivas deram a entender que o posicionamento do desgoverno de MG é pró-PL 387, o que significa o governo de MG de joelhos diante do lobby para minerar e devastar AREDES. Prova disso é que o autor do PL 387/23 é o deputado João Magalhães (do MDB), líder do Zema na ALMG.

Estarrecedor é que o PL 387 já tenha sido aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da ALMG com apenas arremedo de estudos feitos pela própria mineradora Minar, que contratou consultores sem conteúdo, que não conhecem o contexto ambiental, hídrico e patrimonial de Aredes. Como uma serpente e em silêncio, os ‘representantes’ da mineradora MINAR mudaram agora a estratégia, mas continuam a fazer lobby junto às Comissões da ALMG e junto à SEMAD do Governo Zema, haja vista o comportamento dos representantes do Estado (SEMAD, IEF e IEPHA) que foram de corpo presente à Audiência Pública, mas devem ter sido adestrados para não falar nada contra o famigerado PL, tendo em vista o aparelhamento da atual gestão do Governo de Minas Gerais com os interesses da mineração e do capital. Vergonhoso o despreparo técnico dos representantes do governo estadual que ali compareceram. O Ministério Público de Minas Gerais já expediu Recomendação advogando o arquivamento do PL 387 por ser profundamente danoso aos interesses da Estação Ecológica de Aredes e sem consistência técnica alguma, confirmando as denúncias da população e a Nota Técnica realizada pelos pesquisadores que atuam na região e entregue para as deputadas estaduais Bella Gonçalves (PSOL) e Beatriz Cerqueira (PT).

A Estação Ecológica de Aredes foi criada em 2010 por causa da luta justa para se salvar um pouco dos brutais danos que a própria mineradora Minar tinha causada em Aredes. Foi preciso uma Ação Civil Pública para exigir que se salvasse AREDES, porque a mineradora Minar tinha deixado três crateras e até hoje ainda tem passivo (danos) ambiental produzido por ela em Aredes. Ou seja, a Minar cometeu muitas infrações e irregularidades, violentou Aredes, de forma impiedosa. Não tem nenhuma moral para tentar voltar a praticar mais crimes em AREDES. Absurdo também é o fato do “PL 387” para minerar em Aredes, arquivado nas últimas duas legislaturas, estar sendo requentado pela 3ª vez.

São muitos os “capitães do mato” que defendem e fazem lobby pela aprovação do PL 387/23 na ALMG para a mineradora Minar voltar a cometer outros crimes socioambientais, históricos, arqueológicos e culturais na Estação Ecológica de Aredes, mas eles evitam mostrar a cara, pois é motivo de grande vergonha defender uma atrocidade como esta. Eis algumas, abaixo.

O município de Itabirito vem sendo sacrificado pela mineração há mais de 300 anos; primeiro, mineração de ouro, e nas últimas décadas, de ferro. Com altitude de 1.586 metros, o Pico Itabirito, com tombamento estadual e definido como Patrimônio Natural, segundo a Constituição de Minas Gerais, desde 1989, está há várias décadas como “Jesus na Cruz”, dilacerado, com todo o seu entorno carcomido, sua base e com seus pés roídos pela mineração que não respeita nada. Pico do Itabirito, crucificado pelas mineradoras, está exposto em uma sexta-feira da paixão sem fim que as mineradoras com o apoio do Estado vem impondo diariamente.

Nos últimos anos, a mineradora Vale fez uma “muralha da China” em Itabirito para conter o tsunami de rejeitos minerários das barragens de Forquilha I, II, III, IV e V, a 11 Km de distância no vizinho município de Ouro Preto. Trata-se de uma muralha de concreto compactado que, segundo a Vale S/A, custou 1,2 bilhão de reais, com mais 350 metros de extensão de uma montanha a outra, com 30 metros de espessura e 94 metros de altura. Esta megaobra já impactou o singelo São Gonçalo do Bação e sua população.  

Aredes é um extraordinário sítio arqueológico, onde existiu a Fazenda Aredes, marco zero do povoamento no munícipio de Itabirito, com testemunhos arqueológicos exuberantes, conforme muito bem demonstrado em uma robusta obra literária organizada pela pesquisadora Alenice Baeta intitulado: “Aredes – Recuperação Ambiental e Valorização de um Sítio Histórico e Arqueológico, publicada em 2016.  

A mineradora Minar insiste em minerar mais uma montanha em Aredes de campos ferruginosos e de vegetação rupestre com espécies endêmicas, ou seja, que só existem ali e em mais nenhum lugar do mundo. Estes campos rupestres de Aredes irrigam os Córregos Silva e Aredes, que se tornam o Córrego Mata-Porcos que, ao desaguar no rio Itabirito, lhe acrescenta 40% de água de classe especial, o que garante o abastecimento público da cidade de Itabirito. E o rio Itabirito, ao se encontrar com o rio das Velhas, tem praticamente o tamanho e o volume de água do rio das Velhas, que, na capitação de Bela Fama, em Nova Lima, oferece cerca de 50% do abastecimento público de BH e RMBH. Ou seja, minerar mais em Aredes irá secar os córregos Silva e Aredes, o que inviabilizará o abastecimento público das cidades de Itabirito, BH e RMBH.

Além da Mineradora Minar, em Itabirito, há outros quatro brutais projetos de mineração insistindo para cravar suas garras nas poucas montanhas que resistem: a) Em São Gonçalo do Bação estão insistindo em construir mais um Terminal de carregamento de minério de ferro, sinal de que, segundo o prefeito de Itabirito, “a mineradora Vale tem projetos para mais 150 anos de mineração na região”; b) Entre Aredes e  São Gonçalo do Bação está iniciando outro projeto de mineração na belíssima Serra do Lessa, que pretende explorar 110 milhões de metros cúbicos de minério por ano em uma montanha da localidade, por 40 anos, com cerca de 650 carretas por dia transitando, o que deixará uma cratera de 130 metros de profundidade; c) Tem também projeto minerário da Várzea do Lopes Leste, da Gerdau; d) E a empresa Monteminas Minérios, do projeto de mineração Água Brava ao lado da Serra do Lessa.  São Gonçalo do Bação está sendo circundado e sufocado por estas obras e minerações, sendo que se trata de um distrito munido de um vulnerável e rico conjunto arquitetônico, arqueológico e paisagístico composto por bens culturais variados, com clara vocação para o turismo cultural, artístico e ambiental de base comunitária.   

Portanto, em respeito às próximas gerações, faz-se necessário arquivar o PL 387 na ALMG, nunca mais requentá-lo e reduzir muito a mineração na região do Quadrilátero Aquífero e Ferrífero de BH e RMBH. Eis o caminho para a vida saudável!

 

24/10/2023.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Aprovar PL 387/23 na ALMG p mineradora Minar minerar dentro da Estação Ecológica será absurdo brutal


2 - Alenice Baeta: Aula Magna! Necessidade de preservar a Estação Ecológica de AREDES. Repúdio ao PL 387


3 - Jeanine: Preservemos a Estação Ecológica de AREDES e o Monumento Natural da Serra da Moeda, JÁ!


4 - Dep. Bella: “PL 387/23 não pode ser aprovado na ALMG. Preservemos a Estação Ecológica de AREDES, MG



5 - Dep. Beatriz: "E a posição da SEMAD e do ZEMA sobre a Estação Ecológica de AREDES, em Itabirito/MG?"



6 - Edton: Minerar na Estação Ecológica de AREDES, Itabirito/MG, vai deixar Itabirito, BH, RMBH sem água



7 - Luiz, do MAM: Zema em conluio c mineradoras. Preservar Estação Ecológica de AREDES p garantir água..



8 - Capitães do mato insistem em continuar escravizando povos/ambiente, agora tb. c PL 387/23 na ALMG



9 - Thomás Toledo: Prefeito e vereadores de Itabiritos/MG, cúmplices da mineriodependência. Viva AREDES!



10 - Frei Gilvander e Dep. Bella pedem arquivamento do PL 387 na ALMG, que visa minerar em AREDES, MG



11 - Mineradora Minar quer devastar AREDES, nascedouro de Itabirito/MG, com PL 387/23 que visa minerar



12 - Visita Técnica a AREDES conclui q PL 387/23 deve ser arquivado. Estação Ecológica em Itabirito/MG



13 - Minar diz q minerar em AREDES afetará ruínas e fontes d’água. Dep. Bella e frei Gilvander: arquive!



14 - Não há como minerar na Estação Ecológica de AREDES sem devastar sítio histórico e acabar com águas



15 - Se calarmos, montanhas gritarão! Minar deixa 3 crateras, passivo ambiental e invade AREDES c PLACA


16 - Crateras deixadas pela Minar foram convertidas ambientalmente: Estação Ecológica AREDES/Itabirito/MG


17 - Visita Técnica de deputados/a à Estação Ecológica de AREDES, em Itabirito/MG. Arquive o PL 387/23!


18 - Peça de Teatro sobre História de AREDES, Itabirito/MG: Arquive PL 387/23 que visa minerar em AREDES!


19 - Trabalho arqueológico na Estação Ecológica de AREDES, em Itabirito/MG: Arquive o PL 387/23 na ALMG!


20 - Exposição AREDES na Estação Ecológica de AREDES, Itabirito/MG: Arquive o PL 387/23, que visa minerar



21 - No interior de uma das ruínas da Estação Ecológica de AREDES, em Itabirito/MG: Arquive o PL 387/23!




[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Superintendência de Projetos Prioritários da Secretaria de Desenvolvimento Social e do Conselho de Política Ambiental do estado de Minas Gerais.

[3] Conselho de Política Ambiental do estado de Minas Gerais.

[4] Secretaria de Desenvolvimento Sustentável do estado de Minas Gerais, responsável para avaliar os projetos de mineração.

[5] Instituto estadual do Patrimônio Histórico e Artístico do estado de Minas Gerais.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Luta e Resistência Indígena na RMBH cresce e fortalece. Por frei Gilvander

 Luta e Resistência Indígena na RMBH cresce e fortalece. Por frei Gilvander Moreira[1]

Retomada Terra Mãe, em Betim, MG, com algumas lideranças, jovens e crianças indígenas Warao. Setembro de 2023. Foto: Alenice Baeta, CEDEFES. 

Nos últimos anos, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) aconteceram seis Retomadas Indígenas: 1) Retomada Kamakã, em Esmeraldas; 2) Retomada Pataxó, em São Joaquim de Bicas; 3) Retomada Katurama, em São Joaquim de Bicas; 4) Retomada Kamakã Mongoió, em Brumadinho; 5) Retomada Xukuru-Kariri, em Brumadinho; e 6) Retomada Terra Mãe, do Povo Indígena Warao, de refugiados da Venezuela, que aconteceu no início de setembro de 2023, na cidade de Betim.

Na Retomada Terra Mãe, do Povo Warao, dezenas de famílias de parentes indígenas, além de outras etnias, com centenas de famílias sem-terra e sem-teto, ocuparam um grande terreno, mais de 100.000 metros quadrados (mais de dez hectares, o que equivale a mais de dez campos de futebol), propriedade que estava abandonada, ociosa, sendo espaço para depósito de lixo e entulho; propriedade que não cumpria sua função social em Betim, cidade com uma brutal desigualdade socioeconômica e com uma das maiores presenças de povos periferizados de toda a RMBH.

No terreno da Retomada Terra Mãe houve uma ocupação em 2011, que foi despejada com brutal pressão da polícia militar doze anos atrás. Na ocasião, o juiz da Vara Agrária de Minas Gerais mandou arquivar o processo, porque a parte autora não demonstrou interesse em continuar o processo. Diz-se que o terreno é espólio de herança. O fato é que estava abandonado muitas décadas antes de 2011, houve o despejo e o terreno continuou abandonado. Como a Constituição Federal de 1988 exige que toda propriedade cumpra sua função social, uma propriedade que não cumpre sua função social deixa de existir, como interpretam muitos juristas e constitucionalistas. Ou seja, a CF/88 não protege propriedade que não cumpre sua função social.

Sobre a Retomada Terra Mãe em meados de setembro agora (2023), um juiz de 1ª instância, da 1ª Vara Cível da Comarca de Betim, mandou reintegrar na posse quem não exercia a posse. Pior, com uma decisão que viola e desrespeita a decisão de nove ministros do Supremo Tribunal Federal que, no final da pandemia da covid-19, na ADPF 828, determinou que todos os Tribunais Estaduais e Federais criassem Comissões de Conflitos Fundiários que fizessem visita técnica in loco, audiência de conciliação e buscassem alternativas dignas e prévias que evitassem despejos que implicassem em jogar famílias ao relento nas ruas. Há também decisão do ministro Alexandre de Moraes que obriga o poder público a fazer políticas públicas que resolvam a situação de milhares de irmãos e irmãs que estão em situação de rua em centenas de cidades brasileiras.

Para nossa surpresa, um desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais não acatou um Agravo de instrumento da Defensoria Pública de MG, que exigia a suspensão da liminar de reintegração sobre a Retomada Terra Mãe, mas diante da manifestação da FUNAI[2], que manifestou interesse no processo e de arguição da Defensoria Pública da União e do Ministério Público Federal requerendo que a competência para julgar o caso deve ser da Justiça Federal, diante da realidade de que se trata de Retomada Indígena e quem julga sobre questões relativas aos indígenas é a Justiça Federal, suspendeu a reintegração até que seja julgado de quem será a competência jurídica, se da justiça estadual ou da justiça federal.

Dia 27 de setembro de 2023, os povos da Retomada Terra Mãe bloquearam a BR 262 em Betim, MG, próximo ao local da Retomada, em protesto contra o anúncio já feito pela Polícia Militar de que faria o despejo na madrugada seguinte, dia 28 de setembro último (2023). A Polícia Militar de MG foi truculenta. Atirou no povo, jogou bombas de gás lacrimogêneo no meio da multidão que bloqueava a BR. Várias pessoas foram feridas. Idosos, mães e crianças também foram atacados com gás lacrimogênio. O direito de manifestação foi violentado pela PM de MG. E mais: fiscalização sobre a BR 262 é competência da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que não apareceu. Estranhamente e usurpando sua competência, quem apareceu em um piscar de olhos foi a PM de MG, que chegou com brutalidade absurda. Um sargento chegou imbicando um revólver no rosto de uma liderança indígena. Entretanto, os povos indígenas e sem-teto não arredaram o pé e continuaram a manifestação protestando contra o despejo iminente. Fizeram a PM recuar e reocuparam novamente a BR 262, o que causou mais de 15 Km de congestionamento. O povo dizia de cabeça erguida que jamais aceitará despejo e gritava: “Se o despejo vier, a BR vai parar! Bloquearemos a BR quantas vezes forem necessárias!”

No Censo do IBGE, de 2022, em Belo Horizonte e Região Metropolitana, 6.476 pessoas se autodeclararam INDÍGENAS. Em Belo Horizonte, 2.692; em Contagem, 796; em Betim, 761; Ribeirão das Neves, 362; São Joaquim de Bicas, 356; Santa Luzia, 211; Ibirité, 140; Esmeraldas, 137; Sabará, 117; Sete Lagoas, 117; Brumadinho, 113; Vespasiano, 112; Nova Lima, 81; Lagoa Santa, 78; Juatuba, 76; Igarapé, 67; Pedro Leopoldo, 49; São José da Lapa, 37; Matozinhos, 26; Rio Acima, 18; Mateus Leme, 27; Sarzedo, 15; Jaboticatubas, 13; Capim Branco, 13; Itatiaiuçu, 13; Mário Campos, 11; Itaguara, 09; Caeté, 08; Florestal, 08; Confins, 05; Raposos, 05; Rio Manso, 01; Baldin, 1; Taquaraçu de Minas, 01.

No ano de 2007, uma pesquisa do Centro de Documentação Eloy Ferreira (CEDEFES)[3], estimava a existência aproximada de sete mil indígenas em Belo Horizonte e RMBH. Cumpre evidenciar que o Censo do IBGE, de 2022, certamente mostra uma subnotificação, porque segundo vários/as recenseadores/as me disseram não era em todas as casas que o sistema abrir para perguntar se tinha outras pessoas indígenas, ou quilombolas, ou ... Alguns recenseadores me disseram: “Quando o sistema abria em uma casa para anotarmos a existência naquela casa de outras pessoas indígenas, nas próximas casas, o sistema não abria mais. Com certeza o número de indígenas, de quilombolas etc. é muito maior do que o que foi anotado. Parece que tinha a estruturação no programa para não mostrar toda a verdade e viabilizar subnotificação, o que causa danos na formatação de políticas públicas. Não podemos esquecer que o Censo do IBGE, em 2022, aconteceu no desgoverno de Bolsonaro. Precisa verificar os pontos falhos do Censo em 2022.” Portanto, podemos inferir que ao redor de cada uma das 6.476 pessoas que se autodeclaram como indígenas na RMBH deve existir um número bem maior. Podemos deduzir que possivelmente o número de indígenas em Belo Horizonte e RMBH seja no mínimo duas ou três vezes mais do que o atestado pelo Censo do IBGE, ou seja, podemos estimar que exista acima de 13 mil indígenas em Belo Horizonte e RMBH. Em Betim, onde o Censo atestou a presença de 761 indígenas deve ter mais de 1.600 mil. Imaginemos o número de brasileiros que estão em todas as cidades que de fato são indígenas, mas que ainda não se autodeclararam por muitos motivos. Enfim, o número de indígenas desterritorializados e em contexto urbano deve ser maior do que o último censo do IBGE atestou.

O Brasil é muito mais indígena que muitos imaginam. Viva a luta indígena!

 

04/10/2023.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Povo Indígena Warao da Venezuela na Ocupação/Retomada TERRA MÃE, Betim/MG: “Não aceitamos despejo!”



2 - Terra Mãe, nova Ocupação de Povo indígena Warao e centenas de sem-teto, em Betim/MG. Despejo, NÃO!



3 - Respeito à decisão do STF na ADPF 828! Povo indígena Warao não aceita despejo na Ocupação TERRA MÃE



4 - 300 famílias na Ocupação/Retomada TERRA MÃE, em Betim/MG: Povo indígena Warao e centenas de sem-teto


5 - Ocupação TERRA MÃE: E decisão do STF p não despejar sem alternativa prévia? Povo indígena e sem-teto



6 - “Novo nascimento na Retomada/Ocupação TERRA MÃE, Betim/MG.” “PM matou 2 Sem Teto Bandeira Vermelha"



7 - Leo Péricles/UP, Poliana/MLB e Isa/MNDH na RETOMADA/OCUPAÇÃO TERRA MÃE, BETIM/MG: "Negociação, SIM!"


8 - Betim/MG: "Não arredamos o pé da luta pela moradia. PM violenta conosco. RETOMADA/OCUPAÇÃO TERRA MÃE



9 - Povo REOCUPOU a BR em Betim/MG após repressão da PM/MG: RETOMADA TERRA MÃE na luta contra despejo.v3



10 - Povo fez PM recuar e bloqueou de novo BR em Betim/MG: luta por moradia da Ocupação Terra Mãe. Víd 2



11- PM de MG reprime com truculência Bloqueio da BR em Betim/MG: luta por moradia da Ocupação Terra Mãe





[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Fundação Nacional dos Povos Indígenas.

[3] BAETA, Alenice M. Indígenas nas Cidades; memórias ‘esquecidas’ e direitos violados. In: ECODEBATE, 2021.  Cf. https://www.cedefes.org.br/indigenas-nas-cidades-memorias-esquecidas-e-direitos-violados-artigo-de-alenice-baeta/

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Bíblia sagrada, se bem interpretada! Por frei Gilvander

Bíblia sagrada, se bem interpretada! Por frei Gilvander Moreira[1]

A Bíblia é também uma obra literária, uma “biblioteca” de 73 livros, a católica. “Toda obra literária é uma obra aberta", afirmava Humberto Eco, grande pensador e escritor italiano, autor de muitos livros imprescindíveis, tais como: Os limites da interpretação, O Nome da rosa, O Fascismo eterno, Em que creem os que não creem, Migração e intolerância etc. Saber interpretar é preciso.

A Bíblia continua sendo o livro best seller, mais lido do mundo, mas lamentavelmente muitas pessoas que se dizem cristãs, sejam católicas, evangélicas ou (neo)pentecostais fazem interpretações de passagens bíblicas que são interpretoses, ou seja, falsas interpretações que reduzem textos bíblicos a autoajuda e amuletos para justificar a ideologia da prosperidade, tranquilizar a consciência com ações pontuais assistenciais e filantrópicas, enquanto permanecem enroscadas em relações sociais que reproduzem cotidianamente as injustiças e as violências do sistema capitalista que, como máquina de moer vidas, está nos levando ao abismo já impondo à humanidade indícios sérios de que estamos sendo empurrados para a extinção da humanidade. A emergência climática com eventos extremos cada vez mais frequentes e letais está se multiplicando e só não percebe quem está em bolhas de privilégios gozando os lucros da brutal devastação ambiental à custa de muito sangue de humanos e bilhões de outros seres vivos que estão sendo mortos e dizimados ou quem está cegado pela ideologia dominante que insiste na mentira alardeando que é possível continuar o progresso capitalista para acumulação de capital e luxo para 1% da população explorando de forma impiedosa os bens naturais com medidas paliativas “mitigadoras” que são só verniz, mais “veneno” do mesmo.

Neste contexto de povo muito religioso e em meio a brutais injustiças socioeconômicas e políticas que seguem sendo implementadas, a questão religiosa se tornou uma gravíssima questão política que ninguém pode mais ignorar. Precisa ser enfrentada por todos/as que se dedicam a construir uma sociedade para além do sistema do capital, uma sociedade socialista, justa economicamente, democrática politicamente, plural culturalmente e com responsabilidade ambiental e geracional.

Resgatar critérios para uma justa e sensata interpretação dos textos sagrados, sejam da Bíblia, do Alcorão, dos textos sagrados das Religiões de Matriz Ancestral Africana ou dos Povos Originários se tornou necessidade vital. Urge ajudar as pessoas sedentas da Palavra de Deus a captarem a mensagem e apreciarem a riqueza da diversidade de formas e gêneros literários presentes nos textos bíblicos, no Alcorão e nos textos sagrados de todas as outras religiões. Conhecendo-os terão mais condições de fazerem uma correta e sensata interpretação dos textos sagrados e, sobretudo, uma compreensão melhor da mensagem que os autores e as autoras da Bíblia e dos outros textos sagrados quiseram passar para suas leitoras e seus leitores, de ontem e de hoje.

É importante que o texto bíblico ou qualquer outro texto tido como sagrado seja lido levando em conta sua forma e seu gênero literário. É importante pressupor que a tradição oral está na base de formação dos textos sagrados. Todo texto bíblico ou não bíblico tem sempre um contexto vital (Sitz im Leben[2]) - circunstâncias - onde se formou. É iluminador analisar como o texto sagrado se formou e as dificuldades pelas quais passou até ser inserido e reconhecido como inspirado. Os diversos gêneros literários são veículos para comunicar determinada mensagem. Portanto, conhecê-los é imprescindível para uma sensata interpretação dos textos.

Na Bíblia e em todos os outros textos considerados inspirados existe uma série de gêneros menores que mostram a diversidade de gêneros e sua riqueza, como, por exemplo: um provérbio (dos escritos sapienciais), uma lista (historiográfico), um enigma (Jz 14,14), uma saga etiológica (Gn 49,1-28), um cântico de louvor (1Sm 2,1-11), um cântico de vitória em uma batalha (Jz 5), um texto jurídico (Lv 18,1-23), um oráculo (profético), um texto apocalíptico (Ap 12,1-17) etc.

          Muitas pessoas pensam que a Bíblia, o Alcorão ou outro livro sagrado são livros ‘caídos’ do céu. Pensam que a Bíblia foi toda ditada pelo Espírito Santo diretamente aos seus autores/as, e eles e elas escreveram somente aquilo que ouviram de Deus. Não conseguem fazer uma leitura mediada a partir da realidade humana contextualizada no tempo, em que ela foi escrita, nas condições culturais da época. Sem dúvida que a Bíblia é um livro inspirado, pela ação do Espírito Santo, mas não de forma mágica e automática que tenha sido como muitas pessoas pensam. Sem dúvida que o Espírito Santo é o inspirador das Sagradas Escrituras, revelou-se a nós, por meio de pessoas à maneira humana, por isso, o intérprete deve investigar com atenção o que os hagiógrafos (escritores dos textos sagrados) queriam manifestar por meio de suas palavras[3].

          O conceito de revelação de Deus[4] não se encontra definido na Bíblia e não existem termos apropriados para falar dela, a não ser a expressão privilegiada de “Palavra de Deus ou do Senhor”, muito frequente, sobretudo, na boca dos profetas[5]. A revelação é um conceito biblicamente complexo que compreende ações, gestos e palavras, cuja mensagem faz parte da livre iniciativa de Deus na sua relação amorosa com o ser humano com toda a biodiversidade. Tanto na tradição judaica quanto cristã, todas as páginas da Bíblia são consideradas Palavra de Deus. Diz a homilia aos Hebreus, que Deus falou muitas vezes e de muitos modos nos tempos passados: “Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos. É ele o resplendor de sua glória e a expressão de sua substância; sustenta o universo com o poder de sua palavra; e depois de ter realizado a purificação dos pecados, sentou-se nas alturas à direita da Majestade, tão superior aos anjos, quanto o nome que herdou excede o deles” (Hebreus 1,1-4).

          A livre iniciativa de Deus revela-se no fato de falar-nos outrora pelos profetas e hoje por meio do seu Filho, Jesus. Esta iniciativa nasce do seu mistério de amor gratuito, que deseja se encontrar com o ser humano, não por meio de técnicas ascéticas, ou contemplativas, ou ainda místicas. Mas por meio da sua Palavra, viva e eficaz (Cf. Is 55,10-11), que chega de pessoa a pessoa, ele a interpela, e espera dela uma resposta. É uma revelação pública, dirigida “aos pais” e a “nós” por meio da criação, da sua ação na história, por meio dos oráculos proféticos, e nos últimos tempos por meio de Jesus Cristo, na sua realidade histórica visível e insuperável de Deus, seu Pai.

          Como é que Deus se revelou outrora? De muitos modos, como fala o texto, por meio da experiência fundante de Israel vivida no êxodo para se libertar das garras do imperialismo dos faraós no Egito, para torná-lo conhecido, em vista da libertação/salvação de seu povo, por meio da releitura da própria história à luz da fé de Israel e pela palavra profética. Portanto, a Bíblia é sagrada, mas se mal interpretada pode ser usada, sim, para difundir atitudes nada sagradas, que são na prática opressoras. Logo, textos sagrados, sim, são uma bênção, se interpretados de forma sensata e libertadora.

19/09/2023.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

2 - Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG - Set/2022

3 - Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

4 - Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

5 - Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

6 - Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! - Por frei Gilvander - Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Expressão da língua alemã que signica “situação na vida”.

[3] CONCILIO VATICANO II. Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina. Dei Verbum, São Paulo: Paulinas, 2005, p.16.

[4] MAGGIONE, B. Nuovo Dizionario di Teologia Biblica. Torino: Edizione Paoline, 1988. p.1361-1376.

[5] Cf. Is 1,10; 28,14; 38,4; 66,5; Jr 1,2.4.11.13; 2,1.4.31; 18,1; Ez 1,3;6,13; 7,1.; 12,1.8.17.21.25.26; 38,1; Os 1,1; 4,1; Jl 1,1; Am 8,11.12; Jn 1,1; 3,1; 3,3; Mq 1,1; 2,7; 4,2; Sf 1,1; 2,7.8; Ag 1,1.3.12; 2,1.5.10.20; Zc 1,1.6.7.13; 7,4.8; 8,18.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Formas literárias na Bíblia? Por frei Gilvander

 Formas literárias na Bíblia? Por frei Gilvander Moreira[1]

Capa de livro de frei Gilvander Moreira e Irmã Romi Auth

Estamos no mês da Bíblia: setembro. Tempo propício, kairós, para nos dedicarmos à leitura bíblica prioritariamente de forma comunitária com interpretação sensata e libertadora. Como todos os textos sagrados, a Bíblia é sagrada, mas escrita por pessoas humanas inspiradas. Portanto, a Bíblia também é literatura. Disso decorre que quanto mais compreendemos os meandros das formas literárias das expressões humanas mais aptos/as estaremos para compreender com sensatez os textos bíblicos ou outro texto sagrado. Há grande variedade de formas de comunicação humana, desde a linguagem dos sinais, símbolos, que são traduzidos nas diversas formas literárias presentes também na Bíblia. O importante mesmo é a Palavra de Deus, no presente, que está envolvida nas formas literárias. Decifrá-las é imprescindível para um bom entendimento da Palavra de Deus que está na Bíblia e está nos acontecimentos da atualidade e na natureza.

Um exemplo, para ilustrar: a esposa, no dia do aniversário do seu esposo limpou a casa, perfumou-a, colocou flores espalhadas pela casa, escreveu algumas frases de carinho e amor, vestiu-se elegantemente para recebê-lo ao chegar do trabalho. Diversas pessoas passaram pela casa antes do marido chegar em casa, mas não perceberam que algo sublime e profundo estava acontecendo. Quando o marido chegou, ao abrir a porta, foi logo contagiado pelo ambiente acolhedor, belo, harmonioso. Ele sentiu-se acolhido e amado pela esposa. Não foi necessário nem mesmo dar-lhe os parabéns. Ele entendeu o sentido dos gestos e da PALAVRA que a esposa queria lhe dizer. Todo o arranjo era como o gênero literário na forma diversificada nas cores, movimentos, luzes, beleza.

Assim também os textos bíblicos têm seus gêneros e suas formas literárias para atrair a nossa atenção e abrir o nosso desejo de conhecer mais e mais a Palavra de Deus a partir da Bíblia, entendendo-a melhor nas suas formas e nos seus gêneros literários presentes na Bíblia. Muitas das formas literárias dos textos bíblicos já são conhecidas e também usadas na nossa linguagem. 

Com o conhecimento das formas e dos gêneros literários pouco a pouco a leitura de qualquer texto vai chamar mais a sua atenção e despertar maior interesse de crescer nesse conhecimento. Os textos bíblicos são como uma pessoa: deseja ser entendida naquilo que é peculiar nela. Quer ser respeitada naquilo que ela é e faz! Assim o texto é como a palavra da pessoa. Se não entendemos o que ela quis dizer nas suas diversas formas e no seu gênero literário usado, não podemos colher a riqueza de sua mensagem. Por exemplo, uma profecia precisa ser lida e interpretada como profecia, um Salmo faz parte do gênero poético e sapiencial, precisa ser lido e entendido como poesia e sabedoria; uma alegoria ou um relato de milagre não podem ser interpretados como se fossem narrativas históricas e assim por diante.

No dia 15 de julho de 2000, durante o 10° Encontro Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) em Ilhéus, na Bahia, foi lida uma carta-mensagem das CEBs para todas as comunidades cristãs do Brasil. Os participantes gostaram muito. Depois da leitura da carta-mensagem, subiu ao palco um repentista nordestino e ele apresentou a mesma carta em forma de cordel, com a expressão da espontaneidade nordestina. Foi aplaudido calorosamente por milhares de pessoas que estavam presentes na Celebração Final do 10º Intereclesial das CEBs. A forma ‘cordel’ com que foi veiculada a mensagem tocou muito mais, do que a simples leitura do texto feito de forma narrativa. Eis a importância e a força da FORMA de expressão e de um gênero literário, na hora da interpretação de um texto.

As línguas são veículos de comunicação por excelência entre as pessoas. Cada povo tem a sua língua, muitas vezes mais de uma língua, com ou sem dialetos. A cultura de um povo é veiculada também pela língua. Traduzir um texto de uma língua para outra é um processo difícil e um grande desafio. Não basta traduzir palavra por palavra, é preciso dar sentido. Uma boa tradução exige dupla fidelidade: ao autor, a língua na cultura original; aos leitores e às leitoras, na língua e cultura receptora. As dificuldades do processo de tradução fizeram nascer um provérbio popular: "Todo tradutor é um traidor". As traduções muitas vezes não conseguem transmitir o sentido original do texto, por falta de palavra ou conceito preciso e também muitas vezes por ignorar a forma e o gênero literário do texto a ser traduzido. E também pela opção ideológica do tradutor.

A linguagem é viva e dinâmica e não é algo estático que não muda. O sentido das palavras, muitas vezes, não é unívoco, com frequência, palavras e conceitos, caem em desuso, novas palavras e novos conceitos são criados e recriados. A mesma realidade passa a ser expressa por palavras diferentes e pode adquirir também sentidos diferentes, dependendo do contexto geográfico em que ela é usada. Por exemplo, a palavra embaraçada, no nordeste pode significar gravidez – também na língua espanhola -, enquanto no sul do Brasil tem o significado da pessoa estar atrapalhada.

 A língua portuguesa tem atualmente em torno de 450 mil palavras. Estima-se que todo ano surjam de três a quatro mil palavras novas e desapareçam outras três mil e quinhentas palavras. Do mesmo modo, com o tempo, pode mudar também o sentido de muitas palavras, o vocabulário, o tipo de escrita, a pronúncia, a acentuação etc. E palavras diferentes, em regiões diferentes, podem também ter significados semelhantes. O português arcaico é muito diferente do português moderno. Por exemplo, não se escreve mais farmácia com ph (pharmacia) como antigamente. A internet está também mudando a língua portuguesa, injetando um número cada vez maior de palavras da língua inglesa e também com abreviações de palavras.

Nós expressamos os nossos pensamentos e sentimentos de muitas formas: por meio da música, pintura, escultura, arquitetura, gestos, sinais, palavras, mímica, na linguagem de libra e outras. Mas é pela forma literária, de forma oral ou escrita, que se consegue revelar o que se pensa e se sente. Não foi diferente com o povo da Bíblia, cujos escritos chegaram até os nossos dias por meio da palavra humana escrita. Deus serve-se de homens e mulheres para transmitir a sua mensagem às pessoas. Por isso, faz-se necessário conhecer os modos de pensar e expressar dos povos da Bíblia, que para eles eram Palavras sagradas, reveladas para eles, pelo Deus, mistério de infinito amor, e sob a sua revelação e inspiração. Portanto, compreender as formas literárias é imprescindível para interpretarmos de forma sensata e libertadora os textos bíblicos.

13/09/2023.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

2 - Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG - Set/2022

3 - Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

4 - Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

5 - Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

6 - Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! - Por frei Gilvander - Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

terça-feira, 5 de setembro de 2023

AMEAÇA GRAVE EM MIGUEL BURNIER, EM OURO PRETO, MG, A CEMITÉRIO DE PESSOAS ESCRAVIZADAS: Racismo Ambiental e Danos ao Patrimônio Histórico, Arquitetônico, Arqueológico, Paisagístico e Natural. Por frei Gilvander

 AMEAÇA GRAVE EM MIGUEL BURNIER, EM OURO PRETO, MG, A CEMITÉRIO DE PESSOAS ESCRAVIZADAS: Racismo Ambiental e Danos ao Patrimônio Histórico, Arquitetônico, Arqueológico, Paisagístico e Natural. Por frei Gilvander Moreira[1]           

A seta indica local onde se encontra o Antigo Cemitério. A obra avança e ameaça o Conjunto Histórico, Arquitetônico e Histórico Nossa Senhora Auxiliadora de Calastrois em Miguel Burnier, Ouro Preto, MG. Fotos: CPT/MG

Inaceitável uma obra que está sendo realizada no distrito de Miguel Burnier, município de Ouro Preto, MG, pela empreiteira Nóbrega Pimenta, que está fazendo terraplanagem, movimentação de terra e desmatamento de vegetação nativa literalmente, ao lado do Conjunto Cultural, Histórico, Arquitetônico e Arqueológico da Igreja Nossa Senhora Auxiliadora de Calastrois. Faz parte do Conjunto, além da edificação da antiga Igreja, Coreto, Cemitério atual e o Antigo Cemitério das pessoas escravizadas da Comunidade de São Julião, constituído por muros de alvenaria de pedra. A obra de terraplanagem está avançando na direção deste importante Conjunto cultural, histórico e arqueológico, em especial do Cemitério Antigo, o que está gerando grande preocupação, já tendo comprometido a sua ambiência. O Cemitério é importante relíquia do século XVIII da memória das pessoas escravizadas e de seus ancestrais, se tratando de campo sagrado de interesse material e imaterial para a profunda história de Minas Gerais. Inadmissível a destruição de patrimônio de extraordinário valor cultural, histórico e arqueológico.

Este mesmo Conjunto histórico, dentre outros na localidade, já foi objeto de pesquisa tendo sido mencionado em um grande livro referente à memória de São Julião intitulado: “Marcas Históricas - Miguel Burnier”, datado de 2012 (cf. p. 209 a 217), organizados pelos historiadores e arqueólogos Alenice Baeta e Henrique Piló. Este belíssimo Conjunto Cultural também foi objeto de inventário em 2007 e de tombamento municipal em 27 de novembro de 2012, em função da necessidade de sua proteção eficaz e da sua grande significância patrimonial. Não podemos permitir que empreendimentos minerários continuem colocando em risco os já tão ameaçados patrimônios históricos, arqueológicos, arquitetônicos e culturais de Miguel Burnier. Exigimos a paralisação imediata da obra e o cercamento, considerando uma zona de entorno dos muros de pedra do cemitério urgentemente.

Devastando o ambiente estão várias retroescavadeiras e mais de dez caminhões em área já devastada em plena área urbana de Miguel Burnier. Ninguém viu? Quem fiscaliza? Há risco brutal de continuidade de devastação e destruição do Conjunto Cultural, Histórico, Arqueológico e Arquitetônico de imenso valor cultural.

Esperamos de todas as autoridades implicadas providências urgentes que garantam a proteção eficaz dos bens culturais dessa importante região do município de Ouro Preto, em especial do Cemitério Antigo. Um povo que pisoteia na sua história não merece continuar vivendo. Exigimos respeito aos nossos ancestrais, a todos os bons espíritos e ao ambiente recheado de história.

O distrito de Miguel Burnier parece atualmente um cenário de guerra. O antigo São Julião, tornou-se território de sacrifício, sendo mutilado por projetos de mineração degradantes permanentes que avançam diariamente sobre o seu patrimônio hídrico, biodiversidade, paisagístico, arqueológico e arquitetônico. Sua população remanescente resiste sofrendo em meio a tanta degradação ambiental, sob a égide de um regime de necropolítica que se instalou nesta localidade há tempos com a omissão/conivência dos órgãos patrimoniais, municipais, estaduais e do Ministério Público de Minas Gerais.

Com esta brutal violência ao patrimônio cultural, histórico, arqueológico e arquitetônico, a cidade e município de Ouro Preto faz por merecer perder o status de Patrimônio Mundial pela UNESCO[2] por ser conivente com atividades lesivas ao seu patrimônio cultural e com a minerodependência que domina e sufoca esta região e sua população há séculos. Enfim, feliz de um povo que preserva seu Patrimônio Cultural, Histórico, Arqueológico, Arquitetônico e Natural. Ai de um povo que tritura no altar do ídolo mercado seu Patrimônio Cultural, Histórico e Natural.

Para ilustrar este cenário devastador, seguem fotos com legendas que indicam a situação preocupante da antiga vila de São Julião, distrito de Miguel Burnier.      

Pátio de obra e terraplanagem em Miguel Burnier, Ouro Preto, MG, com brutal desmatamento.

 

Detalhe do nome da empreiteira “Nóbrega Pimenta” no Pátio de obra e terraplanagem em Miguel Burnier, Ouro Preto, MG.

 

Detalhe de publicação (Org. BAETA, A. & PILÓ, H. Marcas Históricas, Miguel Burnier, 2012, p. 216), que menciona o Cemitério Antigo e ambiência (cemitério de pessoas escravizadas cercado por muros de pedra), que faz parte do Conjunto Histórico, Arquitetônico e Arqueológico de Nossa Senhora Auxiliadora de Calastrois em Miguel Burnier, Ouro Preto, MG.

 

Detalhe de Cruz de Ferro que indica um antigo túmulo no cemitério das pessoas escravizadas. Conjunto Histórico, Arquitetônico e Arqueológico de Nossa Senhora Auxiliadora de Calastrois. Miguel Burnier, Ouro Preto, MG.


 Detalhe de antigo túmulo no cemitério das pessoas escravizadas. Conjunto Histórico, Arquitetônico e Arqueológico de Nossa Senhora Auxiliadora de Calastrois. Miguel Burnier, Ouro Preto, MG.

 

Detalhe de trecho de alvenaria de pedras do cemitério das pessoas escravizadas em meio ao Campo Rupestre Ferruginoso. Conjunto Histórico, Arquitetônico e Arqueológico de Nossa Senhora Auxiliadora de Calastrois. Miguel Burnier, Ouro Preto, MG.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto relativo ao tratado, acima, na mesma região.

1 - Gerdau amplia mineração em Chrockatt de Sá, Ouro Preto/MG, devasta região e acaba com água. Vídeo 1

2 - Gerdau (des)mata nascentes, contamina água e deixa famílias tomando água contaminada/Chrockatt de Sá

3 - Gerdau faz famílias tomarem água contaminada com metais pesados em Chrockatt de Sá em Ouro Preto/MG?

4 - Gerdau, Zema e TJMG, “projeto econômico” acima do direito à vida? - Chrockatt de Sá, Ouro Preto/MG


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.