terça-feira, 26 de julho de 2022

Luta pela terra no livro de Josué: e nós? Por Frei Gilvander

 Luta pela terra no livro de Josué: e nós? Por Frei Gilvander Moreira[1]


Em setembro de 2022, o mês da Bíblia terá como tema o livro de Josué com o lema: “Seja firme e corajoso porque Javé teu Deus estará contigo, onde quer que vás” (Js 1,9), na luta pela terra e pelos territórios. Expropriados e forçados a se tornarem migrantes errantes por várias regiões, os povos da Bíblia tiveram que lutar muito pela terra, porque ela estava sequestrada nas mãos dos faraós, no Egito; dos reis das cidades-estados e de pretensos senhores da terra, que delas se apropriavam, expropriando os camponeses, em Canaã. Assim, desrespeitavam o preceito bíblico de “Terra de Deus, terra de irmãos/ãs”.

Se lermos de forma literal e fundamentalista o livro de Josué, podemos tirar conclusões que justifiquem “guerra santa” e violência em nome de Deus. O livro de Josué, porém, pode ser comparado a uma corda composta de vários fios diferentes, de épocas diferentes, ou a uma casa construída com tijolos de vários formatos, de épocas diferentes. À primeira vista, há uma exaltação de Josué como o grande líder e sucessor de Moisés. Isso provavelmente foi escrito para cacifar e legitimar as reformas que o rei Josias - outra versão do nome Josué - estava tentando implementar de 640 a 609 a.E.C. Essa época foi de um vazio político dos impérios: o Império Assírio destroçado e o Babilônico ainda não erguido a ponto de poder controlar Canaã/Palestina.

Moisés não foi o único líder libertador dos povos escravizados sob as garras do imperialismo dos Faraós. O movimento de libertação iniciara-se com as mulheres parteiras, que se haviam rebelado fazendo greve geral e desobediência civil e religiosa diante de um decreto-lei do faraó que mandava matar os meninos no momento do parto, visando o controle de natalidade. Miriam foi outra grande libertadora dos povos escravizados no Egito. Assim também, na história real, a luta pela terra não teve uma liderança monopolizada por Josué. Inúmeros grupos escravizados e considerados subalternos pelo poderio das cidades-estados foram protagonistas nas lutas empreendidas. Precisamos ler não apenas nas linhas, mas nas entrelinhas e por trás das palavras do livro de Josué, para compreendermos as lutas de fato ocorridas, como diversas e processuais.

O livro de Josué abre a segunda parte da Bíblia Hebraica, os Profetas (Nebiim, em hebraico) chamados “anteriores”: Josué, Juízes, 1Samuel, 2Samuel, 1Reis e 2Reis. O livro de Josué não é história e nem crônica jornalística, mas teologia narrativa da conquista e da partilha da terra pelos povos escravizados que se uniram e se organizaram na luta pela terra. Em uma aliança com Javé, o Deus solidário e libertador que ouve o clamor dos/as escravizados/as e desce para aliar-se às lutas libertárias, o povo caminha e luta pela terra prometida (Ex 3,7-9). O nome Josué (Yehoshu‘a, em hebraico) significa “Javé salva, liberta, socorre”. Mais que ser uma pessoa, Josué representa um projeto: Javé liberta, tomando a terra dos opressores e dando-a aos sem-terra que se unem, se organizam e lutam, com fé, coragem e sem desanimar. Assim, a terra é dom e conquista.

Nos primeiros 12 capítulos do livro de Josué temos, em narrativa teológica, a luta pela conquista da terra prometida por Javé, o Deus do Êxodo. Js 1-12 busca mostrar que o Deus Javé é mais poderoso que todas as divindades do império Assírio. Na segunda parte de Josué, nos capítulos 13 a 24, temos a partilha e distribuição da terra conquistada. À primeira vista, a conquista da terra se deu de forma rápida, ininterrupta, global, total, como se tivesse acontecido em uma guerra relâmpago, e a sua partilha também. Essa ideia de conquista rápida e global reforçava as intenções expansionistas do rei Josias (640 a 609 a.E.C), época da primeira versão do livro de Josué. Importa recordar que o governo do rei Josias se dá em um momento histórico de certo vácuo do poder imperialista. O Império Assírio estava destroçado e o Império Babilônico ainda não estava mostrando suas garras expansionistas.

Observando as entrelinhas do texto do livro de Josué e também do livro de Juízes percebemos que certamente a conquista da terra de Canaã/Palestina se deu de forma parcial, em um processo complexo, longo, com vitórias e derrotas. A partilha também. No livro de Juízes, líderes do povo, tidos como heróis, são convocados por Javé para libertar territórios das garras de povos idólatras e opressores. Sansão, o último líder deles, foi convocado para libertar o território do domínio dos filisteus e isso durou muito tempo, até o reinado de Davi (2Sm 8,1).

Segundo o livro de Juízes, diferentemente do livro de Josué, a conquista da terra se deu de forma descentralizada, por meio da luta empreendida pelas tribos de forma autônoma, sem coordenação de Josué. Em Jz 1,21.27-36, temos uma lista de cidades e de territórios ainda não conquistados, todos da planície, exceto Jerusalém, que será conquistada apenas no início da monarquia (2Sm 5,6-12). As cidades da planície de Jezrael só foram conquistadas na época do reinado do rei Salomão, de 970 a 930 a.E.C., (1Rs 4,12; 9,15).

No livro de Josué há também contradições internas. Por exemplo, Js 13,1b lamenta: “Ainda ficou muitíssima terra por conquistar”. Em Js 13,1-13 encontra-se a lista dos territórios não conquistados: “territórios dos filisteus, território de Acaron, grilado pelos cananeus ...” É bom lembrar que a fixação de limites territoriais interessava principalmente ao Estado, para implementar cobrança de tributos (1Rs 4), para arregimentação de soldados para as guerras (Cf. 2Sm 24) e para convocar trabalhadores para a corveia (Cf. 1Rs 5,13ss). Para as comunidades tribais, limites de territórios pouco importavam, pois predominava a noção comunal da terra.

Há outras contradições internas no livro de Josué. Em Js 18,10, quem reparte a terra em Silo é Josué sozinho para sete tribos. Contraditoriamente, em Js 14,5 e 19,49, o povo todo participa na partilha da terra. Isto indica formas diferentes de reler a história, com intenções diferentes. A assembleia de Js 8,32-35, além dos homens, inclui mulheres, crianças e estrangeiros. No entanto, na “assembleia” de Js 23, estrangeiros são excluídos (Cf. Js 23,7-13; Esd 10; Ne 12-13). Estas diferenças indicam releituras da história com finalidades diferentes.

O livro de Josué reafirma o que está em Êxodo, Números e Deuteronômio: “a terra deve ser repartida como herança” (Js 13,6). E enfatiza: “Reparta a terra para ser herança ...” (Js 13,7). Exclui-se terminantemente a ideia da terra como mercadoria, passível de venda e compra. A luta pela terra é legítima apenas para usufruto, para passar de pai e mãe para filhos/as, netos/as ..., jamais por interesse de mercado.

(Obs.: No próximo artigo, seguiremos a reflexão sobre o livro de Josué).

26/7/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Chaves de leitura do livro de Josué: Partilha da terra - Mês da Bíblia 2022. Por Ildo Bohn e CEBI/MG



2 - Bíblia, Palavra que Ilumina e Liberta. Dia da Bíblia, 30/9/21. Por Frei Gilvander, Irmã Ivanês etc



3 - Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5



4 - Filme PEDRA EM FLOR, de Argemiro Almeida, 1992. CEBs e Leitura Popular da Bíblia. Frei Carlos Mesters



5 - Frei Carlos Mesters entrevistado por frei Gilvander: Inspirações da Bíblia para sermos humanos



6 - COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro


7 - Formação para o Mês da Bíblia 2022 - O livro de Josué. Por Francisco Orofino



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

segunda-feira, 25 de julho de 2022

“Nas Ocupações Urbanas também podem ter casas de taipa, barro e pau a pique”, Banho e Horta Comunitária na Aldeia Arapowã Kakya, na Retomada Indígena Xukuru-Kariri, em Brumadinho, MG. Vídeo 3

“Nas Ocupações Urbanas também podem ter casas de taipa, barro e pau a pique”, Banho e Horta Comunitária na Aldeia Arapowã Kakya, na Retomada Indígena Xukuru-Kariri, em Brumadinho, MG. Vídeo 3 – 24/7/22



“Nas Ocupações Urbanas também podem ter casas de taipa, barro e pau a pique”, Banho e Horta Comunitária na Aldeia Arapowã Kakya, na Retomada Indígena Xukuru-Kariri, em Brumadinho, MG. Vídeo 3 – 24/7/22 Filmagem, Edição e Divulgação: Frei Gilvander Moreira, da CPT, das CEBs, do CEBI, do SAB e da assessoria de Movimentos Populares, em Minas Gerais.


Acompanhe a luta pela terra e por Direitos também via www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com www.cebimg.org.br - www.cptmg.org.br - www.cptminas.blogspot.com.br Todos os vídeos, músicas e imagens utilizados no vídeo pertencem aos seus respectivos proprietários. O material é utilizado apenas para fins educacionais e se enquadra nas diretrizes de uso aceitável. Não se pretende infringir direitos autorais. Se você é o proprietário do conteúdo legal de qualquer vídeo, música e imagem aqui usados e gostaria que fossem removidos, por favor, entre em contato conosco (Frei Gilvander – gilvanderlm@gmail.com ), Qualquer infração não foi feita de propósito e será retificada para a satisfação de todas as partes. No Instagram: Frei Gilvander Moreira (gilvanderluismoreira) No Spotify: Frei Gilvander luta pela terra e por direitos No Tiktok: @FreiGilvander *Inscreva-se no Canal Frei Gilvander Luta pela Terra e por Direitos, no link:
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Construção de CASA ECOLÓGICA (Casa de Taipa), na Aldeia Arapowã Kakya, Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG - Vídeo 1

Construção de CASA ECOLÓGICA (Casa de Taipa), na Aldeia Arapowã Kakya, Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG - Vídeo 1 - 24/7/22






terça-feira, 19 de julho de 2022

Contexto para estudo do livro de Josué. Por Frei Gilvander

 Contexto para estudo do livro de Josué. Por Frei Gilvander Moreira[1]



Em setembro, Mês da Bíblia, em 2022, somos convidados/as a estudar, refletir e a inspirar-nos no livro de Josué, o 6º livro da Bíblia, com o lema: “Seja firme e corajoso porque Javé teu Deus estará contigo, onde quer que vás” (Js 1,9). O CEBI[2]-MG publicou um livrinho texto-base - LIVRO DE JOSUÉ: luta pela terra, dom e conquista: Uma leitura do livro de Josué feita pelo CEBI-MG. Quero partilhar aqui mais um pouco do nosso artigo que integra o livrinho referido acima: “TERRA DE DEUS, TERRA DO POVO: DOM E CONQUISTA”, com o subtítulo “A luta para conquistar e partilhar a terra no livro de Josué e nos dias de hoje”. Ainda sobre a luta pela terra no nosso querido Brasil.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) já realizou seis congressos. No seu III Congresso, realizado de 24 a 27 de julho de 1995, como lema de luta para os anos de 1995 a 1999, o MST cunhou: “Reforma Agrária, uma luta de todos!” Duas semanas após, dia 09 de agosto, ocorreu o massacre de Corumbiara, na Fazenda Santa Elina, em Rondônia, pela polícia militar que assassinou nove trabalhadores Sem Terra, inclusive com tiros pelas costas a curta distância. Vanessa dos Santos Silva, criança de sete anos, foi assassinada enquanto fugia de mãos dadas com sua mãe. Dois policiais também morreram no conflito em Corumbiara.

Compreender a luta pela reforma agrária tornou-se pertinente e necessário diante do crescimento do êxodo rural e, consequentemente, da população urbana. Era preciso infundir a ideia de que a luta pela terra e a reforma agrária como política pública interessam não apenas aos camponeses, mas diretamente também ao povo da cidade. Por isso, um dos gritos de luta foi: “Se o campo não planta, a cidade não janta!” Trabalhadores do campo e da cidade, juntos em unidade na luta!

O massacre de Eldorado dos Carajás, acontecido no final de tarde do dia 17 de abril de 1996, foi um divisor de águas na luta pela terra no Brasil. Por isso, 17 de abril tornou-se o Dia Internacional de Luta Camponesa. Após o massacre de Eldorado dos Carajás, o MST deu um salto de qualidade e cresceu muito, pois o sangue dos 21 camponeses tombados na curva do S irrigou a semente da luta pela terra, em uma infinidade de outros territórios no campo brasileiro. Em 18 de dezembro de 1996, o Congresso Nacional aprovou nova lei, prescrevendo o aumento do valor do Imposto Territorial Rural (ITR) para as propriedades rurais improdutivas, bem como o rito sumário que encurta os prazos da lei de desapropriação de terras para fins de reforma agrária. Beneficiou, porém, os latifundiários, que ganharam o direito de receber o pagamento da terra no momento em que o INCRA iniciasse a ação de desapropriação na Justiça e ainda o direito de avaliação do ‘preço justo’ do imóvel. Foi aprovado, ainda, o projeto que autoriza a intermediação do Ministério Público nos conflitos agrários. A principal arma de atuação política do MST durante esse governo foi a pressão exercida por meio das ocupações de terra. No ano, 2000, Bernardo Mançano defendia a tese segundo a qual a luta pela terra só se torna exitosa pela ocupação de terras. Apertado, o governo federal é forçado a promover pelo menos política de assentamento em áreas de conflitos.

Ao longo da história, tem acontecido também o aprisionamento da terra, bem como lutas populares pela conquista da terra. Em pleno século XXI, o projeto neocolonial-imperial capitalista- extrativista concentra(dor), em nome do lucro desenfreado e da acumulação de capital continua expropriando e superexplorando os camponeses e as camponesas e todos os ecossistemas e biomas. Documentos da FAO-ONU para a América Latina mostram que mais da metade das terras agrícolas cultiváveis está sequestrada nas mãos de 1% de empresários do campo, que compreendem a terra como mercadoria e, por isso, implementam unidades produtivas de commodities para o mercado de exportação. É impressionante constatar que 80% das pequenas propriedades - de agricultores familiares - ocupam menos de 13% do território, sendo que produz cerca de 70% dos alimentos que chegam ao prato do povo brasileiro.

 Assim, posseiros, assentados a partir da mínima reforma agrária já realizada, agricultores familiares e os Povos e Comunidades Tradicionais compreendem a terra como espaço de sustento da vida humana e de todos os seres vivos. Os povos indígenas de Abya Yala têm uma relação horizontal com a terra por compreendê-la como Pacha Mama. Para a mística e espiritualidade libertadora, a terra é Gaia, um grande ser vivo, e não pode continuar sendo objeto de exploração, pois é fonte de vida.

Neste contexto, tornou-se imprescindível buscarmos luzes e forças divinas no livro de Josué, como inspiração bíblica para seguirmos na luta pela terra e pela boa e saudável administração dos territórios já conquistados. Como a luta pela terra aconteceu sob o protagonismo dos povos da Bíblia, segundo o livro de Josué? Eis o que exporemos no próximo artigo.

 

(Obs.: No próximo artigo, seguiremos a reflexão sobre o livro de Josué).

 

19/7/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Chaves de leitura do livro de Josué: Partilha da terra - Mês da Bíblia 2022. Por Ildo Bohn e CEBI/MG



2 - Bíblia, Palavra que Ilumina e Liberta. Dia da Bíblia, 30/9/21. Por Frei Gilvander, Irmã Ivanês etc



3 - Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5



4 - Filme PEDRA EM FLOR, de Argemiro Almeida, 1992. CEBs e Leitura Popular da Bíblia. Frei Carlos Mesters



5 - Frei Carlos Mesters entrevistado por frei Gilvander: Inspirações da Bíblia para sermos humanos



6 - COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro



 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos – www.cebimg.org.br 

terça-feira, 12 de julho de 2022

Livro de Josué no Mês da Bíblia de 2022. Por Frei Gilvander

 Livro de Josué no Mês da Bíblia de 2022. Por Frei Gilvander Moreira[1]


Em Minas Gerais, há mais de 25 anos, um grupo de biblistas do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI-MG)[2] publica anualmente um livrinho que busca ser um Texto-Base sobre o livro bíblico do Mês da Bíblia: setembro. Em 2022, todas as pessoas e comunidades cristãs são convidadas a refletir e a inspirar-se para a caminhada libertadora e ecumênica, especialmente no mês de setembro, sobre o livro de Josué. Já está publicado LIVRO DE JOSUÉ: luta pela terra, dom e conquista: Uma leitura do livro de Josué feita pelo CEBI-MG.

No nosso artigo “TERRA DE DEUS, TERRA DO POVO: DOM E CONQUISTA”, com o subtítulo “A luta para conquistar e partilhar a terra no livro de Josué e nos dias de hoje”, analisamos a luta pela terra e sua partilha entre os camponeses e camponesas, no livro de Josué, na Bíblia, e nos dias de hoje, tendo um olho na realidade do campesinato brasileiro na luta pela terra e outro olho no livro de Josué. Mostramos um pouco da luta pela terra nos dias de hoje e, após, apresentamos várias chaves de leitura para compreendermos a luta pela terra no livro de Josué como dom e conquista. Analisamos se os líderes da luta pela terra, segundo o livro de Josué, podem receber terra. Destacamos a visão mística da luta pela terra e o protagonismo das mulheres no volante da luta pela terra. Analisamos ainda duas questões: a) Que tipo de fé e que tipo de Deus fortalecem a luta pela terra? b) Josué foi mesmo o grande líder que coordenou todas as lutas pela terra em Canaã?

Iniciamos a reflexão com a luta pela terra nos dias de hoje. Em 2015, existiam no Brasil 9290 assentamentos de reforma agrária, em uma área de 88.269.706,92 hectares, com 969.640 famílias assentadas conforme dados do INCRA).[3] Também segundo dados do INCRA de 2015, o estado de Minas Gerais, entre 1986 e 2015, contava com 412 assentamentos para fins de Reforma Agrária, onde viviam 15.965 famílias assentadas, em 884.868,24 hectares de área. Isso representa 0,5% da reforma agrária necessária no Brasil, país-continente. Essa conquista exigiu mais de 40 anos de luta do povo camponês, milhares de ocupações de latifúndios que não cumpriam a função social, muita perseguição e mais de 2.000 lideranças camponesas martirizadas. Quanto aprendizado!

Segundo estatísticas cadastrais do INCRA, em 2014, o estado de Minas Gerais possuía como terras potencialmente públicas devolutas 13.398.101 hectares (22,8% do total), em sua maioria grilada por fazendeiros e principalmente por grandes empresas do agronegócio. Muitas terras foram concedidas a grandes empresas “reflorestadoras” (na verdade, eucaliptadoras) por meio de convênios firmados com o Governo do Estado nas décadas de 1970 e 1980. Ainda hoje, essas empresas estão na posse dessas terras públicas utilizando-as, exclusivamente, para a monocultura de eucalipto, mesmo estando vencidos muitos desses convênios.

 Antes de ser invadido pelos portugueses, em 22 de abril de 1500, o povo brasileiro vivia em paz com a biodiversidade no nosso país, tendo de 8 a 40 milhões de indígenas falando, segundo estimativas, mais de 1200 línguas e com culturas altamente diversificadas. Mas, com a invasão portuguesa, iniciou-se aqui a Empresa Brasil. O objetivo foi, desde a chegada dos portugueses, explorar e sugar os bens naturais e, para isso, tornou-se necessário implantar a escravidão. Primeiro escravizaram os indígenas[4], mas com pouco sucesso. Então decidiram importar milhões de trabalhadores negros que foram arrancados da Mãe África, onde haviam nascido em liberdade.

Darcy Ribeiro, na obra O Povo brasileiro, noticia como os engenhos de cana-de-açúcar, a mineração e o cultivo nas monoculturas de exportação foram máquinas de moer vidas. A literatura de José Lins do Rego retrata a realidade das grandes fazendas que, aos poucos, ficaram de “fogo morto” com a mudança dos interesses do comércio internacional e a falta de competitividade. Isso inviabilizou os empreendimentos agrícolas de exportação dos grandes engenhos de cana-de-açúcar no Nordeste. Mesmo com a decadência, os senhores de terras, vivendo na cidade, continuaram cercando a terra e expropriando os camponeses.

Organizados nas Ligas Camponesas, a partir de 1955, sob a liderança do advogado Francisco Julião Arruda de Paula e com o apoio de militantes do Partido Comunista Brasileiro, durante mais de 10 anos, milhares de camponeses lutaram pela terra de forma aguerrida. O grito era: “Reforma Agrária, na lei ou na marra!” “As Ligas Camponesas tiveram crescimento expressivo até o início de 1964, quando já eram aproximadamente 2.181, espalhadas por 20 Estados da Federação”.[5] Entretanto, dependentes da atuação de sua cúpula, as Ligas foram exterminadas pelos generais por meio da repressão do golpe militar-civil-empresarial de 1964. Os Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs), que ganharam legalidade a partir de 1963, foram, em sua maioria, cooptados pelo Governo Federal mediante os benefícios do chamado “imposto sindical” e da administração do programa FUNRURAL.

A luta pela terra no Brasil, especificamente em Minas Gerais, vem desde o início da invasão do Brasil pelos brancos portugueses. Já são 522 anos de luta pela terra. Milhões de indígenas foram dizimados, mas muitos resistiram, como Sepé Tiaraju, “lutando pelo reconhecimento do regime comunitário de propriedade que fundamenta a sua existência tribal, a restauração da sua identidade social violentada e a afirmação de sua visão de mundo anticapitalista”.[6] Milhões de negros foram escravizados, mas muitos se rebelaram e formaram quilombos, como os liderados por Zumbi dos Palmares e Dandara, no final do século XVII. Movimentos populares messiânicos, tais como o de Antônio Conselheiro, em Canudos, de 1893 a 1897, na Bahia, e do monge José Maria, no Contestado de 1912 a 1916, no Paraná e Santa Catarina, também lutaram pela terra.

(Obs.: No próximo artigo, seguiremos esta reflexão).

 

Referência

CABRAL, Oswaldo Rodrigues. A Campanha do Contestado. 2ª edição. Florianópolis: Editora Lunardelli, 1979.

CLAVERO, Bartolomé. Derecho indígena y cultura constitucional en AméricaMéxico: Siglo XXI, 1994.

LAUREANO, Delze dos Santos. O MST e a Constituição – um sujeito histórico na luta pela Reforma Agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência: a questão política no campo. 3a edição. São Paulo: HUCITEC, 1991.

MONTEIRO, Douglas Teixeira. Os Errantes do Novo Século. São Paulo: Duas Cidades, 1974.

QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e Conflito Social (A guerra sertaneja do Contestado, 1912-1916). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A, 1966.

SOUZA, Frederecindo Marés de. O presidente Carlos Cavalcanti e a revolta do Contestado. Curitiba: Lítero Técnica, 1987.

12/7/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Chaves de leitura do livro de Josué: Partilha da terra - Mês da Bíblia 2022. Por Ildo Bohn e CEBI/MG


2 - Bíblia, Palavra que Ilumina e Liberta. Dia da Bíblia, 30/9/21. Por Frei Gilvander, Irmã Ivanês etc


3 - Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5


4 - Filme PEDRA EM FLOR, de Argemiro Almeida, 1992. CEBs e Leitura Popular da Bíblia. Frei Carlos Mesters


5 - Frei Carlos Mesters entrevistado por frei Gilvander: Inspirações da Bíblia para sermos humanos


6 - COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

[3] Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

[4] Os direitos dos povos indígenas foram violados. CLAVERO, Bartolomé. Derecho indígena y cultura constitucional en AméricaMéxico: Siglo XXI, 1994.

[5] LAUREANO, Delze dos Santos. O MST e a Constituição, p. 64.

[6]MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência, p. 40.

terça-feira, 14 de junho de 2022

Luta pela terra: mística e esperança nos jovens. Por Frei Gilvander

  Luta pela terra: mística e esperança nos jovens. Por Frei Gilvander Moreira[1]

Legenda da Foto: Plantio de árvores pela Juventude Sem Terra nas
escolas do campo. Foto: MST SC

Na minha pesquisa de Doutorado sobre a luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana, defendida em 2014, descobrimos aprendizados emancipatórios que socializamos abaixo. O futuro da luta pela terra dependerá muito dos jovens. Antoniel Assis de Oliveira, camponês mestre em Educação do Campo, pondera: “Para cultivar a terra da fazenda Monte Cristo no município de Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG, no Assentamento Dom Luciano Mendes, vai precisar de trator e outras máquinas. Não vão bastar a enxada, a foice, o machado e a força dos braços. Os jovens têm mais facilidade de aprender tecnicamente a mexer com essas máquinas. Os idosos que estão lutando aqui no acampamento Dom Luciano terão, com certeza, uma velhice feliz lá no Assentamento Dom Luciano na fazenda Monte Cristo, mas para o desenvolvimento da produção vamos precisar da juventude com sua força e entusiasmo, inclusive para o desenvolvimento do assentamento daqui a vinte anos. Sem a juventude, o futuro da luta pela terra fica comprometido.”

Salvo raríssimas exceções, todos os pais e mães do Acampamento Dom Luciano em Salto da Divisa, MG, foram unânimes em dizer que seus filhos e filhas, que estão hoje morando de aluguel e trabalhando em Belo Horizonte, São Paulo, Porto seguro, Vitória da Conquista e em outras cidades voltarão para se juntar a eles assim que a fazenda Monte Cristo for definitivamente conquistada. O Sem Terra Aldemir Silva me disse dia 22/09/2014: “Nossos filhos estarão conosco assim que conquistarmos a terra. Um dos meus filhos está pagando um salário mínimo de aluguel lá na capital. Está doido para voltar”.  Vários pais, como o camponês Sem Terra Ozorino Pires, já ouviram dos filhos o seguinte: “Pai, assim que o senhor arranjar um pedacinho de terra, eu largo tudo aqui na capital e volto para trabalhar ao seu lado na terra”. Isso traz um novo oxigênio para a luta pela terra. No início da ocupação no Acampamento Dom Luciano Mendes, havia muitos jovens, já com filhos, inclusive. A agente de pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT/MG) Irmã Geraldinha (Geralda Magela da Fonseca) revela porque os jovens não puderam continuar na luta pela terra no Acampamento Dom Luciano: “Muitos jovens não puderam continuar conosco aqui, porque aqui na fazenda Manga do Gustavo – lugar do Acampamento Dom Luciano Mendes - estamos em pouca terra, uma parte é de preservação ambiental e outra parte é um grande lajedo. Não tinha condições de incentivarmos os jovens a continuar aqui. Como ganhar o sustento do dia a dia? Temos que recordar também que quem entra para uma ocupação se torna meio leproso para muitos fazendeiros da região que negam um litro de leite ou a oferecer trabalho. As ameaças e as pressões também dificultaram a permanência dos jovens entre nós aqui no acampamento. Em oito anos de acampamento, vários filhos nasceram também. Se os filhos tivessem sido criados em cima da terra, teriam mais incentivo para continuar, mas se nasceram na periferia da cidade, fica mais difícil abraçar e perseverar na luta pela terra.”

A pedagogia de emancipação humana na luta pela terra passa pela superação do medo de abraçar uma luta coletiva e criar condições subjetivas para se perseverar na luta coletiva por direitos. Quanta sabedoria há em quem está militando na luta pela terra! É preciso saber ouvir atentamente para compreender na linguagem do outro o conhecimento e as convicções mais profundas que os guiam e sustentam na luta coletiva pela terra. Um dos problemas de quem adquire poder econômico, político e intelectual é que muitas vezes perde a capacidade de ouvir atentamente as pessoas. Pensa que já sabe tudo e só precisa ensinar. Ledo engano!

Resgatar e compreender a história do território pelo qual se luta a partir do campesinato expropriado é instrumento imprescindível para viabilizar e fortalecer a luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana. No caso da luta pela terra no município de Salto da Divisa, MG, milhares de famílias foram expulsas do campo, muitas delas sob ameaças de morte. Muitas casas foram derrubadas por jagunços e/ou por tratores a mando de fazendeiros coroneis da região. Daniela Rodrigues Oliveira, quilombola da Comunidade Quilombola Braço Forte de Salto da Divisa, MG, nos disse: “Antônia, minha avó, morava em uma fazenda há mais de cinquenta anos e foi expulsa sem direito a nada e ainda com ameaça de morte. Ela não tinha consciência dos direitos dela. Os coronéis davam uma ordem e se obedecia ou era expulso ou morto.” No livro Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político, o sociólogo José de Souza Martins diz: “Para fazer valer o seu poder regional, os coronéis dispunham de grande número de jagunços, trabalhadores e agregados de suas fazendas e das fazendas de seus clientes e correligionários. [...] O coronelismo enredava, numa trama complicada, questões de terra, questões de honra, questões de família e questões políticas” (MARTINS, 1983, p. 48).

Uma profunda convicção de fé no Deus da vida - não em qualquer deus - anima a luta pela terra sob o protagonismo de muitos militantes do MST[2] e a maioria dos camponeses sem-terra que se torna Sem Terra. Isso nos é afirmado em vários depoimentos, nas celebrações e nos gritos de luta. O camponês Ozorino Pires, 71 anos, aposentado, Sem Terra do Acampamento Dom Luciano Mendes, ratifica isso: “Nasci em Jordânia, MG, aqui perto, mas fui criado aqui no município de Salto da Divisa. Os fazendeiros dessa região acabaram com minhas forças. Trabalhei muito para eles, mas eles não conhecem a gente. Gostaram muito do meu suor. Eles só conhecem a gente na hora de política. A Escritura diz que a terra foi criada por Deus sem cerca e sem porteira para todo mundo viver dela. Somos filhos da terra e filhos de Deus. Por isso estou aqui junto com os companheiros e com a irmã Geraldinha na luta por um pedacinho de terra para a gente viver em paz até a hora de a gente ir para o cemitério. Estou lutando por essa herança.”

É sempre animador e inspirador o necessário engajamento da juventude nas lutas sociais necessárias. Mais do que nunca é fundamental que um número maior de jovens reconheçam a importância do seu protagonismo nas lutas por direitos, atentos às experiências e à sabedoria dos mais velhos, e com ousadia, conhecimento libertador e fé no Deus da vida, para construir libertação, poder popular! Assim, na luta pela terra, o medo é exorcizado, juventude é imprescindível e mística libertadora potencializa a luta.

Em tempo! O desaparecimento do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira indica que foram mortos em emboscada no Vale do Javari, na Amazônia. Se eles não forem resgatados vivos, entrarão para a História como outros Chico Mendes e Irmã Dorothy, que foram martirizados na Amazônia por estarem defendendo os Povos Indígenas e a Amazônia. Se eles não forem resgatados vivos, jagunços e mandantes precisam ser presos, julgados e condenados com rigor, já! Justiça, Já! Indígenas do Vale do Javari protestam contra Bolsonaro e em defesa de Bruno Pereira, Dom Phillips e Maciel: "Bruno lutou pelo Vale do Javari. Agora o Vale do Javari luta por Bruno, Dom e Maxciel". "Querem acabar com nossos pirarucus e tracajás, e Bruno nos defendia". "Somos guerreiros e vamos continuar lutando para defender nosso território."

Referências

MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.

14/6/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – MRV é podre de rica, não precisa de 35.000 m2 da Ocupação Pingo D'água, Betim/MG. 2a marcha. Vídeo1

2 - “Prefeito Medioli, olhe para nós! Faça REURBs para nós.” Ocupação Pingo D’água, Betim/MG. Vídeo 2

3 - “Nossa Mãe, nós e nossos filhos e netos viverão aqui no nosso Quilombo Araújo, Betim, MG”. Vídeo 4

4 - Basta de sexta-feira da Paixão em Betim, MG! Construamos Domingos de Ressurreição. Araújo! Vídeo 3

5 - Ato Público e Culto na Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG. Início/Vídeo 1

6 - Culto de Resistência n Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG. Luta! Vídeo 2

7 - "Se Medioli não respeita pobres e derruba suas casas, não pode mais ser prefeito de Betim/MG": Zélia

8 - “Em Betim/MG, prefeito Medioli faz guerra contra os pobres e destrói casas” (Adv. Dr. Ailton Matias)

9 - Na ALMG: “Da nossa Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG, só saímos mortos”

10 - Frei Gilvander, na ALMG: “Despejo Zero não só até 30/6/22, mas para sempre! Cadê a função social?”



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – www.mst.org.br 

terça-feira, 7 de junho de 2022

“Tratem-nos como um parente de vocês!” Por Frei Gilvander

 “Tratem-nos como um parente de vocês!” Por Frei Gilvander Moreira[1]

Em nome de Jesus, tratem-nos como um parente de vocês! Esse pedido foi feito em forma de clamor por Cristina, 38 anos, mãe de três filhos, nascida nas ruas de Belo Horizonte, MG, uma sobrevivente das ruas que insiste na luta por dignidade e, por isso, não aceita ser despejada pelo Governador de Minas Gerais, Romeu Zema, e pelo Tribunal de Justiça de MG. O pedido para ser tratada como parente foi feito às 9h45 do dia 02 de junho (2022), no início da Reunião da Mesa de Negociação do Governo de Minas Gerais com a Ocupação Vila Fazendinha, no Calafate, em Belo Horizonte, MG.

Mais de vinte famílias que não suportam mais as agruras que é sobreviver nas ruas, ou a pesadíssima cruz do aluguel, ou a humilhação que é sobreviver de favor nas costas de parentes, por saber que têm direito à moradia adequada e que “uma pessoa sem moradia é como uma pássaro que voa, voa, se cansa, mas não tem um ninho para pousar”, ocuparam uma área que estava totalmente abandonada, sem cumprir sua função social: a “Vila Fazendinha”, no centro da capital mineira, no bairro Calafate. Totalmente ocioso, o local era usado para descarte de lixo ou por alguns carroceiros para deixar os cavalos pastarem. O governador Romeu Zema conquistou no Tribunal de Justiça de MG decisão judicial para despejar as famílias (reintegração de posse). Como reintegrar em uma posse se não havia ninguém do Governo antes na posse? Injustamente, os tribunais geralmente só observam se quem reivindica um imóvel tem documentos, mas não verificam se quem está reivindicando ser reintegrado na posse estava na posse ou não.

Para acessar o link da reunião virtual via meet, as famílias da Ocupação Vila Fazendinha foram acolhidas na Ocupação Invisível, que ocupa um casarão abandonado no centro de BH. No início da reunião, a palavra foi passada às famílias da Ocupação. Uma cascata de palavras de fogo, que cortam mais do que navalha, foram ditas para as autoridades que compõem a Mesa de Negociação. Transcrevo abaixo o que disse Cristina Aparecida Siriaco, 38 anos, uma mãe com a voz embargada, muito emocionada, cabeça erguida e olhar fixo de quem queria olhar olho no olho: “Estou aqui para representar não só minha família, mas todo o meu povo. A gente veio de uma história de família muito difícil. Meu pai e minha mãe me conceberam nas ruas de Belo Horizonte. Nasci na rua. Fui criada na rua. Sou uma sobrevivente das ruas. Conheço todo o centro de BH como a palma da minha mão. Nosso lar era a marquise. O primeiro teto que eu vi para nós foi uma caixa de papelão de geladeira. Minha mãe nos deixou dentro daquela caixa de papelão e foi procurar algo para a gente comer. Alguém passou e tocou fogo na caixa com nós dentro. Tive que sair correndo para não morrer queimada. Em nome de Jesus (– Cristina repetiu sete vezes ao longo da sua fala -), eu peço a vocês autoridades para não deixarem acontecer com nossos filhos o que aconteceu comigo e com minha prima. Ponham a mão na consciência, olhem para nós, ponham o coração de vocês em nós e nos tratem como um parente de vocês! Sei que os filhos de vocês, a linhagem de vocês, nunca vão passar pelo que nós passamos, mas eu estou vindo de uma linhagem que se eu não pedir para vocês... Em nome de Jesus, não nos despejem lá da Ocupação Vila Fazendinha, pois se isso acontecer, meu neto será jogado na rua. Nossos pais não tiveram condições de dar um lugar digno para a gente viver. A Praça Raul Soares, aqui no centro de BH, eu conheço como a palma da minha mão, pois era o quintal onde a gente vivia e brincava. Quando nós ocupamos a Vila Fazendinha, lá era tudo abandonado, era local de descarte de lixo, totalmente abandonado pelo Governo de MG que, hoje se diz dono daquele lugar. Eu tenho 38 anos de vida e de luta por dignidade. Agora voltei a estudar, pois tem escola perto da Vila Fazendinha. Eu trabalho como diarista para famílias do bairro Calafate. Na Vila Fazendinha, estamos tendo oportunidade de melhorar nossa vida e construir nossa história, nossos sonhos. Minha mãe morreu por feminicídio, assassinada debaixo do viaduto, onde a gente morava. Eu com nove anos de idade, apaguei o fogo que um rapaz tinha jogado na minha mãe, mas não conseguimos evitar a morte dela. Eu tenho três irmãos em situação de rua, que moram debaixo dos viadutos. Se eu continuar construindo minha casinha ali na Ocupação Vila Fazendinha, eu poderei ajudar meus três irmãos e tirá-los da rua. A gente não quer aluguel social, pois após alguns meses o Governo para de pagar e nos joga na rua novamente. Eu não tenho condições de pagar aluguel, pois perdi meu emprego na pandemia. Se vocês do Governo de MG nos despejarem de lá, para onde iremos e que história eu vou contar para meu neto? Como eu vou ajudar meus irmãos que continuam em situação de rua se formos despejadas? Não somos lixo para sermos despejados. Há 38 anos eu estou lutando por dignidade. Lutamos por um lar para podermos envelhecer com dignidade. Só isso eu peço. Eu não quero que essas crianças passem pelo que eu passei nas ruas de BH. Vivendo ali na Vila Fazendinha, mexendo na horta comunitária eu melhorei a saúde e o meu psicológico que estava todo regaçado quando ali chegamos. Na Ocupação Vila Fazendinha, não tem usuário de droga. Lá as pessoas trabalham, fazem faxina, lá está nossa história e nossos sonhos. Nossas crianças estão nas creches próximas. As igrejas ajudam a gente. Na Ocupação Vila Fazendinha, somos dezesseis famílias, mas uma só grande família. A gente só quer dignidade, que é um direito de todos. Aquele lugar lá só tinha lixo. Agora que estamos cuidando do espaço e dando função social para aquela terra, que estava ociosa, o Governo Zema quer tirar a gente de lá. Isso é muita violência conosco. O mundo é cheio de terra. Por que a gente tem que sofrer tanto? Nós já criamos raízes na Vila Fazendinha. Já conhecemos muita gente ao redor da nossa Ocupação, já fizemos muitas amizades com a vizinhança. Lá, se a gente fizer uma festinha de aniversário, podemos chamar nossos amigos e amigas. Como eu cresci sobrevivendo ‘daqui e dali’, eu não tinha amigos/as. Ali na Ocupação nossas crianças podem brincar, criar raízes e sonhar. Nós amamos aquele local da nossa Ocupação, pois nos traz segurança, paz e vida. É um lugar gostoso de morar. Eu já sofri abuso por morar em lugar descampado, ermo, longe de vizinhança. Nós e nossas crianças precisamos daquele local humilde. Em nome de Jesus, repito e peço a vocês: não nos despejem!”

“Que sabedoria é esta que vem do meu povo?!” Com esta sabedoria, altivez e humanismo revelado por Cristina, feminino de Cristo, uma libertadora e salvadora da humanidade, ela é digna de receber o título de Doutora Honoris causa da Universidade do Povo da Rua. Diante do clamor de Cristina, os representantes do Governo de MG e da prefeitura de BH ofereceram apenas migalhas do CadÚnico e disseram que não têm outra moradia igual ou melhor para oferecer para Cristina com suas dezesseis famílias da Ocupação Vila Fazendinha. Entretanto, o Governador Zema colocou à venda a maioria dos 5 mil terrenos da COHAB[2] no estado de Minas Gerais, que padece um déficit habitacional acima de 700 mil moradias. “A ordem é vender o que for possível, vender do Estado”, “privatizar ao máximo”, repetem os burocratas do governo vassalo das grandes indústrias, do agronegócio e das mineradoras.

Esta injustiça que clama aos céus nos remete à parábola bíblica que o profeta Natã contou ao Rei Davi: Havia um ricaço na cidade que tinha muitos rebanhos e bois e outra pessoa extremamente pobre que tinha apenas uma ovelha, que “era como filha para ele” (2Sam 12,3). A um viajante que chegou em sua casa, o rico não quis oferecer nada do seu imenso rebanho – sua riqueza -, mas furtou a única ovelhinha que o pobre tinha e a sacrificou para oferecer a quem tinha batido na sua porta. O rei Davi, espantado e furioso, disse que esse homem enriquecido merecia a morte. O profeta Natã retrucou: “Esse homem é você mesmo!” (2 Sam 12,7). Isso porque o rei Davi tinha feito injustiças e crimes, entre os quais, mandar assassinar Urias, que em hebraico significa “O Senhor é minha luz” (Cf. 2 Sam 12,-1-12).

A terra aprisionada em latifúndios para o agronegócio e a falta de reforma urbana violentam a dignidade de milhões de pessoas. A prefeitura de Belo Horizonte informou na última semana que existem na capital mineira 17 mil lotes vagos e mais de 80 prédios ou casarões abandonados no centro de BH, dentro do perímetro da Av. do Contorno. Nos bairros nobres, há milhares de casas ou apartamentos luxuosos com poucas pessoas, enquanto nas periferias o povo negro sobrevive apertado, quase amontoado. Eis sinais evidentes de que a escravidão não acabou, pois relações sociais escravocratas se reproduzem cotidianamente. Povo sem-terra e sem-teto, UNI-VOS em lutas coletivas por terra, moradia, pão e liberdade!

07/6/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - MÃE PALAVRAS DE FOGO: "Zema, não nos despeje! Nasci na rua. Minha mãe foi morta nas ruas de BH/MG"

2 - Gov. Zema despejando POBRES no centro de BH/MG. "Não somos lixo!" Ocupação Vila Fazendinha. Vídeo 1

3 - Em vigília de natal, mães clamam p/ não serem despejadas da Ocupação Vila Fazendinha em BH- 23/12/21

4 - Ameaça de despejo da Ocupação Vila Fazendinha, em Belo Horizonte, MG. Alto lá! Vídeo 1 – 08/12/21

5 - Crianças e mães CLAMAM para não ser despejadas na Ocupação Vila Fazendinha, Belo Horizonte. Vídeo 2

6 - "O Governo de MG e o TJMG vão despejar a Ocupação Vila Fazendinha em BH e nos jogar na rua?" Vídeo 3

7 - Injusto despejar 30 famílias da Ocupação Vila Fazendinha em BH. Jogá-las na rua? Vídeo 4 - 11/12/21


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Companhia de Habitação do Governo de Minas Gerais.