terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

MST: 34 anos de luta em MG, batismo de sangue em Felisburgo. Por Frei Gilvander

 MST: 34 anos de luta em MG, batismo de sangue em Felisburgo. Por Frei Gilvander Moreira[1]


Dia 12 de fevereiro é dia histórico para o campesinato na luta pela terra: dia 12 de fevereiro de 2022 o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Minas Gerais, celebrou 34 anos de luta árdua que custou sangue e muito suor, mas teve também muitas conquistas. Dia 12 de fevereiro celebramos também 17 anos do martírio de Irmã Dorothy Stang, assassinada brutalmente, em Anapu, no Pará, dia 12 de fevereiro de 2005. Após um trabalho de base de dois anos em conjunto com agentes de pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT), das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e de Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) autênticos, em Minas Gerais, o MST cravou sua bandeira em um latifúndio pela primeira vez, na madrugada do dia 12 de fevereiro de 1988, noite chuvosa e período de carnaval – a polícia estaria dando segurança aos carnavalescos? -, em meio a muita tensão. Cerca de 400 famílias ocuparam a fazenda Aruega, que se tornou o Projeto de Assentamento (PA) Aruega[2], no município de Novo Cruzeiro, no Vale do Jequitinhonha. Atualmente, são cerca de 6 mil famílias no MST nas terras mineiras, sendo que destas, 1,6 mil já foram assentadas em 56 assentamentos conquistados, junto ao INCRA[3] de MG (SR-06) e ao INCRA de Brasília e Entorno (SR-28), responsável pelo noroeste de Minas.

Atualmente, o MST em Minas Gerais está organizado em 15 brigadas constituídas nas nove regionais existentes em Minas (Regional Rio Doce, Regional do Triângulo Mineiro, Regional da Zona da Mata, Regional do Sul de Minas; Regional do Norte de Minas, Região da Região Grande BH, Regional do Vale do Mucuri, Regional do Vale do Jequitinhonha e Regional do Centro-Oeste de Minas), - sem contar a regional do Noroeste de Minas - , totalizando mais de 110 áreas entre Assentamentos e Acampamentos dentro da organicidade do MST/MG.



Reconhecendo a importância e a necessidade da formação de base e de lideranças, entre 1991 e 1993, o MST publicou nove “Cadernos Vermelhos”, que são imprescindíveis para a compreensão da Organização Interna do MST. São eles: 1) Sobre o Método Revolucionário de Direção; 2) Normas Gerais do MST; 3) Manual de Organização dos Núcleos; 4) Como Organizar a Massa; 5) Disciplina; 6) Alianças; 7) CHE – E os Quadros de Direção; 8) Marcha Popular pelo Brasil; 9) Documento Básico do MST.

Se em nível nacional o Massacre de Eldorado dos Carajás pode ser considerado um divisor de águas na luta do MST, em Minas Gerais, o massacre de cinco Sem Terra do MST em Felisburgo banhou a mãe terra com o sangue de seus filhos, mas fez germinar sementes de luta. Temos o dever de manter acesa a memória dos mártires de Felisburgo que tombaram na luta pela terra. Por isso, na celebração dos 34 anos do MST em Minas Gerais é necessário falarmos da luta pela terra e o Massacre de Felisburgo também. É impossível compreender a atuação e o fortalecimento do MST no Brasil sem analisar o Massacre de Eldorado e suas repercussões na luta pela terra. Assim também não é possível compreender a luta pela terra em Minas Gerais, a atuação e o fortalecimento do MST em Minas, sem analisar e compreender o Massacre de Felisburgo e suas repercussões na luta pela terra no Vale do Jequitinhonha e em todas as regiões das Minas e dos Gerais. Nessa perspectiva apresentamos aqui um pouco da luta pela terra no município de Felisburgo e o Massacre de cinco Sem Terra no Acampamento Terra Prometida.

Dia 19 de agosto de 2009, o então presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, assinou o Decreto que declarou de interesse social para fins de Reforma Agrária o imóvel rural denominado Fazenda Nova Alegria – 1.182 hectares – situado no Município de Felisburgo, Vale do Jequitinhonha, MG. O INCRA ficou autorizado a repassar o imóvel rural de que trata o Decreto para o assentamento de 40 famílias Sem Terra do MST. Por ironia da história, o motivo do Decreto presidencial não foi o fato de ali terem sido massacrados cinco Sem Terra, mas foi crime ambiental cometido pelo proprietário do latifúndio que não cumpria sua função social e era também fruto de grilagem de terras públicas devolutas. Para entender bem o que significa a desapropriação da Fazenda Nova Alegria, em Felisburgo, urge recordar o que segue.

Dia 20 de novembro de 2004, dia de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra, por volta das 11h15, em um dia chuvoso, 17 jagunços, liderados pelo fazendeiro e empresário Adriano Chafik Luedy, invadiram o Acampamento Terra Prometida, do MST, no município de Felisburgo. Renderam um Sem Terra que estava na guarita do acampamento e, com revólver encostado na sua orelha, o obrigaram a soltar um foguete, que era a senha para reunir todo o povo do acampamento em caso de ameaça ou de necessidade de se reunir com rapidez. O povo começou a se reunir. Adriano Chafik, visto por muitos no local, liderava a operação, perguntando “Cadê a Eni e o Jorge?”, e ordenando “Podem atirar e matar...”. O bando de jagunços – uns encapuzados, outros não – iniciou os disparos. Dentro de poucos minutos assassinaram cinco Sem Terra. Todos os tiros foram à queima-roupa. Feriram mais de 12 pessoas, incendiaram com gasolina dezenas de barracos de lona preta, a barraca da Escola, a barraca de alimentos, a barraca da biblioteca, barracos da Maria Gomes dos Santos (Eni) e do Jorge Rodrigues Pereira. Uma criança de doze anos levou um tiro próximo ao olho. Puseram gado nas lavouras dos Sem Terra. Muitos trabalhadores do acampamento ficaram, desde então, amedrontados e portadores de alguma doença, física ou mental, como consequência daquele crime.[4] Assassinaram covardemente cinco Sem Terra do MST: Iraguiar Ferreira da Silva, 23 anos; Miguel José dos Santos, 56 anos; Francisco Nascimento Rocha, 62 anos; Juvenal Jorge da Silva, 65 anos; Joaquim José dos Santos, 65 anos. A perícia feita atestou que todos os tiros foram à queima-roupa. Cada um dos camponeses assassinados recebeu diversos tiros, um levou quatro tiros no peito, outro levou treze. Feriram outras vinte pessoas Sem Terra.

Atearam fogo no acampamento, reduzindo a cinzas 65 barracas de lona preta, inclusive a barraca da escola, onde 51 adultos faziam, todas as noites, o curso de alfabetização. O Sr. Miguel José dos Santos, por exemplo, terminaria a 4a série primária em 2005. Pendurado no corpo do Sr. Joaquim José dos Santos, irmão de Miguel, foram encontrados dois embornais, um com milho e outro com feijão. Ele tinha semeado durante a manhã toda. Veio almoçar, participou da reunião da coordenação do acampamento, mas, antes de voltar para continuar plantando, foi barbaramente assassinado. Sr. Joaquim, um semeador de sementes crioulas, não transgênicas, foi semeado na terra prometida. Os mártires do Acampamento Terra Prometida não foram sepultados, foram plantados.

Escondidas no meio do mato, a polícia encontrou treze armas usadas no massacre de Felisburgo, inclusive armas de grosso calibre. Policiais encontraram uma nota fiscal da compra das armas e mais munição na sede da Fazenda Nova Alegria, que era do fazendeiro Adriano Chafik.  O exame de balística comprovou que as armas apreendidas foram utilizadas na chacina. Dos 17 acusados de participação nesse massacre, somente dois jagunços foram presos. Como todas as chacinas do Brasil, o crime foi premeditado e anunciado.

Viva a luta, vivam as resistências e as conquistas do MST-MG, nesses 34 anos! “Que a noite escura da dor e da morte passe ligeira, que o som dos nossos hinos anime nossas consciências e que a luta redima nossa pobreza, que o amanhecer nos encontre sorridentes festejando a nossa liberdade” (Ademar Bogo – Terra Sertaneja).

15/02/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Acampamento Pátria Livre, do MST, em São Joaquim de Bicas, MG: mais de 4 anos de luta, 650 famílias.

2 - Palavra Ética na TVC-BH: Denúncia de Despejo no Quilombo Campo Grande, do MST, no sul de MG–26/09/20

3 - Lições da luta/resistência no Quilombo Campo Grande, do MST, sul de MG, após despejo genocida/cruel

4 - PM de MG bombardeando o Quilombo Campo Grande, do MST, em campo do Meio, MG: barbárie - 14/8/2020

5 - Frei Gilvander contra despejo de famílias Sem Terra do MST em Campo do Meio, sul de MG - 07/7/2020

6 - P.A Terra Prometida do MST em Felisburgo/MG produz alimentos saudáveis e Educação do Campo. Vídeo 3

7 - Memória da luta pela terra em Felisburgo/MG: P.A Terra Prometida, local do massacre de 5 Sem Terra.

8 - Sem Terra sobreviventes do massacre de Felisburgo, MG, jamais vão aceitar despejo. Vídeo 2 12/3/20

9 - Palavra Ética com Jorge Rodrigues e Maíra Gomes, sobreviventes do Massacre do MST, em Felisburgo



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Sobre a história e a trajetória dos camponeses Sem Terra assentados no PA Aruega, confira: CARVALHO, Maria da Glória. Lutas e conquistas de camponeses sem terra: a trajetória dos assentados da Fazenda Aruega. (Dissertação). Lavras: UFLA, 2000; ZANGELMI, Arnaldo José. História, identidade e memória no Assentamento Aruega – Novo Cruzeiro/MG. Dissertação (Mestrado em Extensão Rural). Viçosa: UFV, 2007; e ZANGELMI, Arnaldo José. Traduções e bricolagens: mediações em ocupações de terra no Nordeste Mineiro nas décadas de 1980 e 1990. Tese (Doutorado). Rio de Janeiro: UFRRJ,  2014, principalmente os capítulos II (Repressão, resistência e revigoramento da luta pela terra em Minas Gerais) e III (Emergência das novas mobilizações: abrindo caminhos para as ocupações de terra), p. 66-152.

[3] Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

[4] Para maiores informações e detalhes sobre o Massacre de Felisburgo, cf. MOREIRA, Gilvander Luís. Massacre de Felisburgo: o que não pode ser esquecido, publicado no portal Correio da Cidadania, no seguinte link: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8370:social150513&catid=71:social&Itemid=180 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Privatização da fé: riqueza é bênção de Deus? Por Frei Gilvander

 Privatização da fé: riqueza é bênção de Deus? Por Frei Gilvander Moreira[1]


Somente nos anos de 1845 e 1846, na obra A Ideologia Alemã, Karl Marx e Engels analisam o fenômeno religioso como realidade social e histórica produzida materialmente e condicionada pelas relações sociais, “o que significa, é óbvio, que a questão pode ser representada na sua totalidade” (MARX apud LOWY, 2007, p. 300). Após A Ideologia Alemã, poucas vezes Marx se dedicou a escrever sobre religião. Entretanto, sendo questionado sobre o papel da política na Idade Antiga e da religião na Idade Média – como sendo preponderante, alegavam vários pensadores - no primeiro volume de O Capital, em uma nota de rodapé, Marx demonstra sua interpretação materialista da história. Diz ele: “Nem a Idade Media pode viver do Catolicismo nem a Antiguidade da política. As respectivas condições econômicas explicam, de fato, por que o Catolicismo lá e a política aqui desempenham o papel dominante” (MARX apud LOWY, 2007, p. 300).

Filho de pai deísta (aquele que acredita em Deus), não sendo religioso, mas definindo-se como ateu, Marx tinha como herói o deus Prometeu, aquele do mito grego que roubou o fogo dos deuses e o entregou aos seres humanos. Isso foi um ato de rebeldia que lhe rendeu condenação. Marx se interessou pelos filósofos gregos Demócrito e Epicuro. Várias interpretações tacanhas sobre a afirmação ‘religião é ópio do povo’ têm distanciado e gerado uma montanha de preconceitos mútuos entre cristãos e socialistas. Convém recordar que a afirmação de Marx não tem valor ontológico como se Marx quisesse dizer que toda e qualquer religião, independentemente de sua constituição e incidência na história, é intrinsecamente alienadora. Marx jamais quis afirmar isso. Ele teve a coragem de denunciar as religiões históricas que andavam de braços dados com os poderes opressores.

Michael Lowy, no artigo Marxismo e religião: ópio do povo?, faz um resgate histórico imprescindível para a compreensão da sociologia marxista da religião. Diz ele: “Apesar de seu pouco interesse pela religião, Marx prestou atenção na relação entre protestantismo e capitalismo. Diversas passagens de O Capital fazem referência à contribuição do protestantismo para a acumulação primitiva de capital – por exemplo, por meio do estímulo à expropriação de propriedades da Igreja e campos comunais. Nos Grundrisse, formula – meio século antes do famoso ensaio de Max Weber! – o seguinte comentário significativo e revelador sobre a íntima associação entre protestantismo e capitalismo: “O culto do dinheiro tem seu ascetismo, sua auto-abnegação, seu autosacrifício – a economia e a frugalidade, desprezo pelo mundano, prazeres temporários, efêmeros e fugazes; o correr atrás do eterno tesouro. Daqui a conexão entre o Puritanismo inglês ou o Protestantismo holandês e o fazer dinheiro”” (MARX apud LOWY, 2007, p. 301).

A sintonia entre Marx e Weber neste ponto se verifica. “A semelhança – não a identidade – com a tese do Weber é surpreendente, mais ainda uma vez que o autor da Ética Protestante não pode ter lido esta passagem” (LOWY, 2007, p. 301), já que os Grundrisse de Marx foram publicados pela primeira vez somente no ano de 1940. Não podemos simplesmente importar ideias de fora e nem do passado. Cumpre, por exemplo, ressaltar que no Brasil há uma significativa participação de integrantes de várias igrejas protestantes construindo a Teologia da Libertação e por causa dela estão comprometidos com as lutas por justiça social e, especificamente, com as lutas sociais por terra, moradia, pão, meio ambiente e a superação do capitalismo com todas as discriminações causadas pelo sistema do capital, que é máquina de moer vidas.

No Brasil, atualmente, a crítica contundente de Marx contra o protestantismo pode ser aplicada, guardadas as devidas e evidentes diferenças, ao (neo)pentecostalismo que campeia no meio das massas via igrejas eletrônicas – igrejas empresas - propagandeando a “teologia” (ideologia) da Prosperidade,[2] que, por sinal, é questionada com ardor no livro de Jó, na Bíblia, segundo interpretação bíblica na linha da Teologia da Libertação. Ao vivenciar uma experiência humana que o sacode visceralmente, Jó descobre que Deus, que é mistério de infinito amor, não o ama enquanto ele é rico, sadio e tem família, mas que mesmo perdendo riqueza, saúde e família, é no reino da gratuidade que o amor de Deus acontece. Deus não nos abandona jamais. Assim, Jó refaz sua experiência de Deus na vida: “Antes eu te conhecia só por ouvir dizer, mas agora meus olhos te veem” (Jó 42,5).

Ao analisar as implicações da ética protestante no desenvolvimento do capitalismo, Weber afirma que a ascese protestante “teve o efeito [psicológico] de liberar o enriquecimento dos entraves da ética tradicionalista, rompeu as cadeias que cerceavam a ambição de lucro, não só ao legalizá-lo, mas também ao encará-lo (no sentido descrito) como diretamente querido por Deus” (WEBER, 2004, p. 155). Weber analisou ainda que a ética protestante impulsiona a produção de riqueza privadamente como fruto do trabalho e, pior, exorta ao trabalho exaustivo, sem descanso. Weber, assim, tece sua análise sobre a ascese protestante, o ‘espírito’ do capitalismo: “A ascese lutou do lado da produção da riqueza privada [...] A obtenção da riqueza como fruto do trabalho em uma profissão, a bênção de Deus. [...] Eis, porém, algo ainda mais importante: a valorização religiosa do trabalho profissional mundano, sem descanso, continuado, sistemático, como meio ascético simplesmente supremo é a um só tempo comprovação o mais segura e visível da regeneração de um ser humano e da autenticidade de sua fé, tinha que ser no fim das contas, a alavanca mais poderosa que se pode imaginar da expressão dessa concepção de vida que aqui temos chamado de “espírito” do capitalismo” (WEBER, 2004, p. 156-157).

A classe dominante com política econômica neoliberal que propõe incluir os excluídos pelo consumo e sacerdotes e pastores de igrejas da “teologia” da prosperidade mercantilizada sob um manto religioso nas igrejas (neo)pentecostais estão solapando não só a luta pela terra e pela moradia adequada, mas também a luta por muitos outros direitos sociais, porque veiculam autoajuda e valorização da pessoa individualmente alardeando a “Teologia” da Prosperidade, “um conjunto de crenças e afirmações, surgidas nos Estados Unidos, que afirma ser legítimo ao crente buscar resultados, ter fortuna favorável, enriquecer, obter o favorecimento divino para sua vida material ou simplesmente progredir” (CAMPOS, 1997, p. 363). Dizem que prosperar individualmente, isoladamente, tornando-se rico é bênção de Deus. E, quem mais oferece ofertas e paga religiosamente o dízimo, segundo certos pastores e padres (neo)pentecostais, será mais abençoado e terá crescimento econômico próspero. Buscando um ‘jeitinho brasileiro’, as massas acorrem aos templos (neo)pentecostais – parte deles está no interno da igreja católica também - que encenam curas e alardeiam a realização de milagres no sentido de mágicas que desrespeitam as leis da natureza e da história. O pagamento de dízimo, de ofertas e a compra de CDs, revistas, DVDs e muitos outros ‘penduricalhos’ não são sentidos pelos fiéis – ao ídolo do capital com capa religiosa - como espoliação, mas como caminho para bênçãos pessoais, bênçãos para uns e não para todos, o que revela fé em um deus que discrimina, fé em um ídolo. Assim, nas igrejas pentecostais[3] e nas neopentecostais[4] se privatiza a fé e se usa e abusa do nome de Deus para lucrar e acumular capital sem medidas. Se estivesse vivo fisicamente atualmente no nosso meio, Marx certamente seria implacável contra a exploração do que podemos chamar de capitalismo religioso com religião burguesa. Mas, segundo o método de Marx, temos que afirmar que a intensa febre religiosa como termômetro acusa a superexploração a que a maioria das/os trabalhadoras/es está submetida na fase do capitalismo avançado que transforma a vida no mundo, aqui e agora, em um ‘inferno’. Esfolados no ‘inferno’ do mundo sob os ditames do capital, multidões estão buscando refúgio em igrejas (neo)pentecostais, que são consideradas ‘um pedacinho do céu na terra’ ou um oásis no mundo de violência do capital.

Referências

CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um empreendimento neopentecostal. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Simpósio; São Bernardo do Campo: UMESP, 1997.

LOWY, Michael. Marxismo e religião: ópio do povo?. In: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas. Buenos Aires: CLACSO, p. 298-315, 2007.

WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

08/02/2022. 

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Celebração da Teologia da Libertação na Ocupação Paulo Freire, em Belo Horizonte, MG. 31/05/15

2 - Curso Teologias da Libertação para os nossos dias – Aula 02. Por Marcelo Barros - 29/7/2020

3 - Teologia Canastreira/Dom Mauro Morelli/2ª Pré-Romaria/XXI Romaria/Águas/Terra/MG/7ª Parte./05/8/2018

4 - “Os evangélicos farão parte da derrota do Bolsonaro" (Pastor Henrique Vieira). Não ao abuso da fé!

5 - Gratidão, emoção, amor, fé e alegria: Culto da Vitória do Beco Fagundes, Betim/MG: Despejo suspenso.

6 - “Fé e coragem!” Culto e Vigília no Beco Fagundes, Betim/MG, sob pressão infernal por despejo injusto

7 - COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro

8 - "Paulo em Gálatas: Que tipo de fé liberta?" - Para o Mês da Bíblia/2021 - Frei Gilvander -13/8/2021



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Um dos estudos significativos sobre a teologia da prosperidade é a tese de Marcelo Silveira, na USP, de 2007, na área de Letras: O Discurso da Teologia da Prosperidade em Igrejas Evangélicas Pentecostais, disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde-07022008- 113110/publico/TESE_MARCELO_SILVEIRA.pdf 

[3] As principais igrejas pentecostais criadas no Brasil, a partir de 1910, são a Congregação Cristã no Brasil, a Igreja Evangélica Assembleia de Deus, a Igreja do Evangelho Quadrangular, a Casa da Bênção, a Igreja Pentecostal Deus é Amor e a Igreja Pentecostal O Brasil Para Cristo. Há centenas de outras igrejas pentecostais.

 

[4] As principais igrejas neopentecostais – as que mais crescem ultimamente -, criadas no Brasil, a partir de 1976, são a Igreja Universal do Reino de Deus, a Igreja Internacional da Graça de Deus, a Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra e a Igreja Apostólica Renascer em Cristo.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Rodoanel na RMBH será brutalmente devastador. Por Frei Gilvander

 Rodoanel na RMBH será brutalmente devastador. Por Frei Gilvander Moreira[1]

Abraço Ato Público contra o Rodoanel na RMBH no Cemitério do Povo Negro Escravizado, de Santa Luzia, MG. Foto: Alenice Baeta

De forma autoritária e eleitoreira, ouvindo muito o grande empresariado, falsos ambientalistas e com “farsas de audiências públicas”, ignorando as críticas e propostas contundentes de Movimentos Socioambientais e de militantes dos direitos humanos e socioambientais, sem comprovar a necessidade, o (des)Governo de Minas Gerais, Romeu Zema, lançou, na 2ª quinzena de janeiro de 2022, o edital de licitação para empresas que queiram entrar na concorrência para construir o famigerado “Rodoanel” na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), MG. Com mais de 100 quilômetros de extensão e largura de 200 a 500 metros, com milhares de desapropriações de moradias e sítios, entre os quais estima-se que estejam mais de dez mil moradias, 50 igrejas, 20 UPAs, dezenas de escolas, cemitério do povo escravizado em Santa Luzia, áreas ambientais, sítios históricos e arqueológicos, áreas próximas a muitos mananciais, o tal de “rodoanel” será uma estrada da morte rasgando 14 municípios da RMBH[2]. Tudo isto pode ser visto no mapa com trajeto/traçado do esboço de rodoanel. Trata-se de um megaprojeto de interesse do grande capital recheado de mentiras e manipulações. Primeiro que não será rodoanel, pois não passará ao redor da RMBH, mas a rasgará brutalmente ao meio. Segundo, que será na prática “um terceiro rodoanel”, pois o primeiro é a Av. do Contorno em Belo Horizonte; o segundo, o Anel Rodoviário. Após o “rodoanel” vão querer construir um quarto, quinto ... “anel”. BH não é o planeta Saturno com seus sete anéis. Recorde-se que ao construir a Av. do Contorno  e o Anel Rodoviário, o Governo de MG e a elite divulgaram que seria a solução para todos os problemas de trânsito, mas não foi. O “rodoanel” também não será. Absurdo também é promover licitação antes de se fazer o Licenciamento Ambiental. Pior é que se diz no esboço de projeto que “a empresa licitada terá o direito de definir o trajeto final”. Isso é o Estado de joelhos diante dos interesses do grande capital.

Qualquer alternativa de trajeto/traçado de “Rodoanel” na RMBH será brutalmente devastadora socioambientalmente, culturalmente, economicamente e ecologicamente. Defender apenas “melhorar” o trajeto, ajeitar aqui ou ali, é, na prática, apoiar a devastação que virá independentemente de qual seja o traçado. Defender só “meu quintal”, “minha serra”, “meu bairro”, “minha cidade”, é miopia ambiental e postura cúmplice disfarçada de moderada, pois a RMBH é um só ecossistema, um só “corpo”: o que acontece com um membro reflete em todo o corpo. Quando a Comissão liderada por Aarão Reis recomendou a construção da nova capital de Minas Gerais aos pés da Serra do Curral e do Curral Del Rey, um dos grandes motivos foi porque havia no final da década de 1890 mananciais na região capazes de abastecer uma cidade de até 3 milhões de habitantes. Porém, BH e as 34 cidades da RMBH têm hoje quase 6 milhões de habitantes, sendo a terceira maior região metropolitana do Brasil. A crise hídrica em BH e RMBH já se tornou grave. Já são milhares de bairros das 34 cidades e periferia de BH que convivem com a escassez de água. No início de 2021, uma criança de 5 anos morreu atropelada por um caminhão pipa que estava abastecendo a Ocupação Vitória, com 5 mil famílias sem-água desde 2013, na região da Izidora, em BH. O “rodoanel”, se construído, será hidrocida, porque levará BH e RMBH da grave crise hídrica ao colapso hídrico, pois irá rasgar brutalmente muitos mananciais, áreas de proteção ambiental, como toda a porção oeste da belíssima Serra do Rola Moça e a APA[3] Lajinha em Ribeirão das Neves, por exemplo, e irá induzir mais ainda a já acentuada conurbação de BH e RMBH, pois, se 7 mil famílias se assentaram nas margens do Anel Rodoviário com apenas 27 Km, ao longo do “rodoanel” mais de 70 mil famílias se assentarão em ocupações legais ou ilegais.

É mentira dizer que o “rodoanel” vai “desafogar” e será a solução para os problemas de trânsito em BH e RMBH, por vários motivos: a) Não será uma rodovia pública, mas na prática privada com pedágio mais caro do Brasil. Estima-se um pedágio acima de 35 centavos por Km, o que resultará em um pedágio acima de 70 reais para ir e voltar passando pelo “rodoanel”. Quem da classe trabalhadora ou da classe média poderá pagar este pedágio durante 5 ou 6 dias por semana? E isso torna-se ainda mais grave, porque induzirá à cobrança de pedágios no Anel Rodoviário e até de grandes avenidas, o que irá piorar muito o trânsito em BH e RMBH.  Estima-se que apenas nos dois primeiros anos de funcionamento do “rodoanel” a empresa concessionária do “rodoanel” lucrará mais de 2 bilhões de reais de pedágio: mais empobrecimento para o povo. A solução para os problemas de mobilidade em BH e RMBH passa por três propostas imprescindíveis: 1) Ampliar o metrô de Belo Horizonte para várias cidades da região metropolitana; 2) Resgatar o transporte de passageiros por meio de trens das 34 cidades da RMBH para BH, existente décadas atrás; 3) Melhorar o transporte público através de ônibus.

O “rodoanel” também sufocará a agricultura familiar que (r)esiste na RMBH. Brumadinho, Ibirité, Ribeirão das Neves, Mário Campos e outros municípios da RMBH têm sido ao longo de muitas décadas um celeiro de produção de hortas e hortifrutigranjeiros, mas o “rodoanel” sacrificará muitos mananciais, induzirá a ocupação urbana nas duas margens do rodoanel e, assim, reduzirá muito a produção de alimentos na RMBH. Também irá mutilar territórios de povos e comunidades tradicionais, como por exemplo, das comunidades quilombolas de Santa Luzia, no vale do rio das Velhas. Com o “rodoanel” teremos menos alimentos produzidos e maior infraestrutura para a ampliação da mineração em BH e RMBH, por isso o tal “rodoanel” é denominado de forma bem apropriada como “RODOMINÉRIO”, porque pelo trajeto fica claro que será autoestrada para escoar a produção de minério, o que deixará BH e RMBH com veias abertas. Este projeto tecnocida do governo Zema, se efetivado, vai incentivar a instalação e a expansão da mineração em BH e na RMBH, o que vai agravar muito a destruição socioambiental desta região.

O megaprojeto do rodoanel é inaceitável também, porque será construído com 3,5 bilhões de reais oriundos do acordão do Governo de MG com a mineradora Vale S/A. Será cuspir na memória das 272 pessoas sepultadas vivas – martirizadas! - no crime/tragédia da Vale S/A em conluio com o Estado usar dinheiro sujo de sangue e de lama tóxica criminosa para fazer outro crime maior e continuado.

BH e RMBH e todo o quadrilátero ferrífero, que é também um quadrilátero aquífero, já padecem com mais de 300 anos de mineração devastadora. É urgente e necessário conquistarmos Mineração Zero em BH e RMBH. Construir “rodoanel” é pavimentar estrada para ampliar a mineração na região, o que é absurdo dos absurdos. Se continuar a mineração em BH e RMBH, teremos em breve a desertificação de toda a RMBH. As comunidades golpeadas pela mineração, as comunidades da periferia e as pessoas sensatas estão clamando: Basta de mineração devastadora que está nos levando para um Apocalipse final.

A história recente do Brasil demonstra que tentar conciliar com os interesses do grande capital nos levou ao bolsonarismo que, com políticas fascistas e genocidas, está devastando o povo brasileiro e o meio ambiente. Urge construirmos cidades sustentáveis, sob o signo da Ecologia Integral, como exorta o papa Francisco. Enfim, o rodoanel é obra faraônica, tecnocida, eleitoreira, ecocida, hidrocida, cavalo de troia, estrada da morte, dragão do Apocalipse, um caso típico de projeto de cunho “Racista Ambiental”.

Belo Horizonte, MG, 1º/02/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Frei Gilvander na ALMG: "Qualquer Alternativa de Rodoanel na RMBH será brutalmente devastadora."

2 - Grito dos Atingidos: “Aprovar o rodoanel será violentar de novo os atingidos da Bacia do Paraopeba

3 - Qualquer alternativa de traçado de RODOANEL na RMBH será devastadora (Frei Gilvander/Rádio América).

4 - “Qualquer traçado de RODOANEL na RMBH será brutalmente devastador”. ABRAÇO em Santa Luzia/MG-Vídeo 9

5 - “Fora, Rodoanel da RMBH!” Na TVC/BH no Palavra Ética. Fora, Rodominério ecocida e hidrocida –18/8/21

6 - Luta contra o Rodoanel na RMBH no Palavra Ética da TVC/BH: Rodoanel não vai resolver ... – 28/08/21

7 - Povo fica indignado ao saber da brutalidade do Rodoanel no Barreiro em BH e RMBH. Vídeo 2 - 25/09/21

8 - ALÇA NORTE do Rodoanel/RODOMINÉRIO de BH e RMBH: Lugares, Pessoas, Bens Naturais/Culturais Ameaçados

9 - ALÇAS SUDOESTE E OESTE do Rodoanel de BH e RMBH: Lugares, Pessoas, Bens Naturais/Culturais Ameaçados

10 - Alça Sul do Rodoanel/RODOMINÉRIO de BH e RMBH: Lugares, Pessoas, Bens Naturais e Culturais Ameaçados



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; da Coordenação do Movimento de BH e RMBH “Somos Todos contra o Rodoanel”; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Belo Horizonte, Betim, Brumadinho, Contagem, Ibirité, Mário Campos, Igarapé, Nova Lima, Pedro Leopoldo, Confins, Ribeirão das Neves, Sabará, Santa Luzia e Vespasiano. 

[3][3] Área de Proteção Ambiental. 

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Que tipo de religião liberta? Por Frei Gilvander

 Que tipo de religião liberta? Por Frei Gilvander Moreira[1]


Para reconstruirmos a sociedade a partir das vítimas dos escombros e da devastação causada pelo capitalismo, agronegócio e bolsonarismo, tornou-se imprescindível compreendermos de forma libertadora o fenômeno religioso: questão religiosa, religiosidade, ideologia da prosperidade, religião reduzida a autoajuda, intimismo espiritual, moralismos e fundamentalismos com fundo religioso, uso em vão do nome de Deus para enganar as pessoas, lucrar e acumular capital. O contexto religioso atual integra tudo isso. Há também, graças às forças de vida, fenômeno religioso libertador sendo vivenciado por milhares de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), Pastorais Sociais, Movimentos Sociais e por pessoas que pertencem à religiões de matriz africana ou indígena.

A sociologia da religião explica em grande parte como compreender o fenômeno religioso em geral, mas a Teologia da Libertação também é imprescindível para a compreensão da dimensão religiosa do campesinato na luta pela terra e do povo marginalizado nas periferias das cidades na luta por moradia, pão e dignidade. O filósofo e sociólogo da religião Michael Lowy afirma: “A emergência do cristianismo revolucionário e da teologia da libertação na América Latina (e em outras partes do mundo) abre um capítulo histórico e eleva novas e excitantes questões que não podem ser respondidas sem uma renovação da análise marxista da religião” (LOWY, 2007, p. 298). Não é mais possível considerar a participação de sujeitos cristãos na luta pela terra como se fosse uma exceção dentro de uma igreja conservadora e opressora. Para muitos “a morte do padre Camilo Torres, que tinha se unido à guerrilha colombiana, foi considerada um caso excepcional, ocorrida em 15 de fevereiro de 1966. Mas o crescente compromisso de cristãos  inclusive muitos religiosos e padres  com as lutas populares e sua massiva inserção na revolução sandinista claramente mostrou a necessidade de um novo enfoque” (LOWY, 2007, p. 298).

Digo mais: sem a participação de milhares de pessoas cristãs teria sido muito difícil e teria tardado muito mais o nascimento da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Partido dos Trabalhadores (PT), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST, já com 38 anos em 2022) e de outros movimentos socioterritoriais que travaram a luta pela terra nas décadas de 1980 e 1990 e na primeira década do século XXI no Brasil. A partir da Teologia da Libertação, muitos pensadores na área da Teologia passaram a usar como método de análise da realidade o materialismo histórico-dialético, de Karl Marx, para analisar as contradições da realidade, explicitar as causas das injustiças sociais e, assim, convocar os/as injustiçados/as para o engajamento em lutas de emancipação política, social e humana. Por assumir esse compromisso, muitas lideranças cristãs foram assassinadas. Cito alguns padres, freiras e inclusive um arcebispo: padre Camilo Torres, na Colômbia, dia 15 de fevereiro de 1966; padre Antônio Henrique Pereira Neto, auxiliar de Dom Hélder Câmara, em Recife, PE, dia 27 de maio de 1969; padre Rodolfo Lukenbein e o índio Borro Simão, na Terra indígena Merure, no Mato Grosso, dia 15 de julho de 1976; Santo Dias da Silva, em São Paulo, dia 30 de outubro de 1979; o arcebispo Dom Oscar Romero, em San Salvador, dia 24 de março de 1980; irmã Cleusa Rody Coelho, em Labrea, no estado do Amazonas, dia 28 de abril de 1985; padre Ezequiel Ramin, em Cacoal, em Rondônia, dia 24 de julho de 1985; padre João Bosco Burnier, em Ribeirão Cascalheira, no Mato Grosso, dia 11 de outubro de 1985; padre Josimo Tavares, em Imperatriz, no Maranhão, dia 10 de maio de 1986; padre Gabriel Maire, em Cariacica, no Espírito Santo, dia 23 de dezembro de 1989; 19 trabalhadores Sem Terra do MST massacrados brutalmente pela Polícia Militar do Pará, na “Curva do S”, em Eldorado dos Carajás, PA, dia 17 de abril de 1996; irmã Dorothy Stang[2], em Anapu, no Pará, dia 12 de fevereiro de 2005 etc. Em 34 anos, de 1985 a 2019, foram assassinados na luta pela terra no Brasil 1483 camponeses, uma média de 43,6 camponeses por ano. Quase todas estas lideranças camponesas eram pessoas religiosas, de uma fé libertadora. Sentiam impelidas a se comprometer com a luta pela terra também por uma motivação religiosa. A lista é muito grande, principalmente de leigas/os que se comprometeram com a caminhada das CEBs e abraçaram a luta pela terra na Comissão Pastoral da Terra (CPT), ou no MST, ou no Conselho Indigenista Missionário (CIMI) ou em vários outros movimentos camponeses socioterritoriais. Não dá para citar todos.

Caiu no imaginário comum do marxismo vulgar que Marx seria ateu por considerar a ‘religião como ópio do povo’. Precisamos resgatar historicamente a evolução da compreensão da religião como ópio do povo. Quem a considerou assim, em qual contexto histórico e por quê? Fazendo sociologia marxista da religião, Michael Lowy coloca a questão religiosa como ópio, assim compreendida por vários pensadores antes de Marx. Diz ele: “A conhecida frase “a religião é o ópio do povo” é considerada como a quintessência da concepção marxista do fenômeno religioso pela maioria de seus partidários e oponentes. O quão acertado é este ponto de vista? Antes de qualquer coisa, as pessoas deveriam enfatizar que esta afirmação não é de todo especificamente marxista. A mesma frase pode ser encontrada, em diversos contextos, nos escritos de Immanuel Kant, J. G. Herder, Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer, Moses Hess e Heinrich Heine. Por exemplo, em seu ensaio sobre Ludwig Borne (1840), Heine já a usava  de uma maneira positiva (embora irônica): “Bem-vinda seja uma religião que derrama no amargo cálice da sofredora espécie humana algumas doces, soníferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, esperança e crença”. Moses Hess, em seu ensaio publicado na Suíça, em 1843, toma uma postura mais crítica (mas ainda ambígua):A religião pode tornar suportável [...] a infeliz consciência de servidão [...] de igual forma o ópio é de boa ajuda em angustiosas doenças”” (LOWY, 2007, p. 299).

Religião no sentido de ópio aparece no artigo de Marx Sobre a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de 1844, onde Marx assim se expressa: “A angústia religiosa é ao mesmo tempo a expressão da dor real e o protesto contra ela. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como o é o espírito de uma situação sem espírito. É o ópio do povo” (MARX apud LOWY, 2007, p. 300). Aqui nesta citação, ainda fala o jovem Marx, discípulo de Feuerbach, ainda neo-hegeliano. Por isso, trata-se strictu sensu de uma afirmação pré-marxista. Marx não tinha ainda desenvolvido o método do materialismo histórico-dialético, o que considera as relações sociais materiais na sua totalidade como sendo as que geram todas as representações espirituais, morais, jurídicas, etc. Marx não falava ainda de classes sociais e nem de luta de classes como sendo a espinha dorsal da sociedade capitalista. Mas Marx já percebia o caráter contraditório e dialético da religião como suspiro ou protesto, coração de um mundo sem coração, espírito de uma situação sem espírito.

Ao resgatar o Jesus histórico que viveu no nosso meio consolando os/as injustiçados/as, incomodando os opressores dos pobres poderes da política, da economia e da religião, e, acima de tudo, ensinando e testemunhando um jeito de conviver e de construir fraternidade real com justiça econômica, solidariedade social e partilha de poder político, a Teologia da Libertação dinamiza a dimensão libertadora do fenômeno religioso, o que passa por compreendermos a íntima relação que existe entre as dimensões espiritual e social do Evangelho de Jesus Cristo. Nisto acreditamos e por isto lutamos, pois sabemos que muitas formas religiosas são idolátricas e abusam do nome de Deus para fins escusos.

Referências

LOWY, Michael. Marxismo e religião: ópio do povo?. In: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas. Buenos Aires: CLACSO, p. 298-315, 2007.

Belo Horizonte, MG, 25/01/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Gratidão, emoção, amor, fé e alegria: Culto da Vitória do Beco Fagundes, Betim/MG: Despejo suspenso.

2 - “Fé e coragem!” Culto e Vigília no Beco Fagundes, Betim/MG, sob pressão infernal por despejo injusto

3 - Janeiro de 2022. As lutas do Povo Mineiro, com Frei Gilvander Moreira

4 - Live-tributo ao Frei Cláudio van Balen: Seu imenso legado pastoral, teológico, ético e espiritual ..

5 - O verdadeiro sentido do Natal, com os freis Carlos Mesters e Gilvander Moreira

6 - Frei Gilvander: Evangelho na Missa Afro em Santa Luzia, MG. "Rodoanel, destruição na RMBH". Vídeo 5

7 - "Quem é, o que fez e ensinou Maria, a mãe de Jesus, segundo os Evangelhos?" - Frei Gilvander–15/7/21

8 - A preocupação com os Pobres é Evangelho de Jesus Cristo. Impossível ser pessoa cristã e capitalista



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Cf. no link https://www.youtube.com/watch?v=1rwuGGn4wF4 , reportagem da TV Brasil, em Caminhos da reportagem: um sonho, a terra, mostra os conflitos agrários na região de Anapu, no Pará, onde foi assassinada a Irmã Dorothy Stang e onde atuam agentes de pastoral da CPT. Lá estão ameaçados de morte o padre Amaro Lopes Souza, o Márcio Rodrigues, o Geraldo Lourenço Pereira e as freiras Jane Dwyer e Kátia Webster, missionárias de Notre Dame, colegas de Dorothy Stang, dentre outros, todas/os companheiras/os de Dorothy Stang que seguem firmes na luta pela terra e por direitos sociais. Há muitos grileiros de terra e ameaçadores na região, entre os quais o fazendeiro Silvério Fernandes.

 

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Como o Estado impede a reforma agrária? Por Frei Gilvander

 Como o Estado impede a reforma agrária? Por Frei Gilvander Moreira[1]


Como fruto da luta renhida pela terra, o campesinato organizado conseguiu inscrever na Constituição de 1988 (CF/88) também o artigo 186, que enumera os requisitos indispensáveis para que a propriedade atenda à função social e que já havia sido incluído no Estatuto da Terra, passa a ter a natureza jurídica de princípio fundamental. Pelo artigo 186 da CF/88 toda propriedade deve cumprir, simultaneamente, conforme os graus de exigência fixados em lei – Lei 8629/93, quatro critérios: a) o aproveitamento racional e adequado: deve ser produtiva; b) a utilização adequada dos recursos e preservação do meio ambiente: não pode ser monocultura, por exemplo; c) a observância das disposições que regulam as relações de trabalho: não pode haver desrespeito às leis trabalhistas; e d) a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores: participação dos trabalhadores no lucro da propriedade.

Para driblar o imperativo constitucional de desapropriar os latifúndios improdutivos e que não cumprem sua função social, o Estado brasileiro começou a usar uma série de subterfúgios, tais como estimular o uso de terras públicas e observar apenas os índices de produtividade e não os outros três critérios prescritos no art. 186 da Constituição Federal. Fernando Henrique Cardoso, então presidente do Brasil, aprovou no Congresso Nacional a Lei 8.629/93, mantida pelos governos Lula, Dilma, Temer - o xerife do golpe de 31 de agosto de 2016 – e o inominável, lei que proíbe vistoria em fazendas que sejam ocupadas durante dois anos. Agravante: os índices de produtividade estabelecidos, cujos parâmetros foram regulamentados pela Lei 8.629/93, permanecem desatualizados há 46 anos, desde 1975. É óbvio que nos últimos 46 anos, com todo o aparato tecnológico usado na agricultura e pecuária, a produtividade aumentou em uma progressão geométrica. Por isso, a não atualização dos índices de produtividade é algo flagrantemente inconstitucional. Concordamos com Ariovaldo Umbelino, ao avaliar os dois mandatos do presidente Lula: “A política de reforma agrária do governo do PT está marcada por dois princípios: não fazê-la nas áreas de domínio do agronegócio e, fazê-la apenas nas áreas onde ela possa “ajudar” o agronegócio” (OLIVEIRA, 2010, p. 308).

Ainda em 2009, em parceria com Delze dos Santos, no artigo MST: 25 anos de luta por reforma agrária, reconhecíamos que a ocupação de terras tornou-se a marca do MST. “É a forma mais eficiente, eficaz e necessária para forçar o Governo a cumprir a sua parte na tarefa da reforma agrária. [...] Desde a sua formação o MST aprendeu que somente ocupando a propriedade que não cumpre a função social conseguem os trabalhadores mover a máquina do Governo e fazer um pouco de reforma agrária. O MST descobriu que reforma agrária não se espera de braços cruzados, mas se conquista na luta, inclusive com ocupações” (LAUREANO; MOREIRA, 2009, p. 23).

Na luta pela terra não dá para ignorar o governo, pois “apenas o governo pode desapropriar terras, conceder indenizações, garantir crédito aos assentados, estabelecer uma política agrária e executá-la” (COMPARATO, 2003, p. 56), ou, pelo menos, comprar fazendas em um regime de reforma agrária de mercado, o que é ceder aos interesses do capital, pois ao se burlar o estatuto constitucional da desapropriação de latifúndios para fins de reforma agrária se fortalece o mercado de terras, peça basilar no capitalismo brasileiro. Boaventura Souza Santos (2007), por exemplo, em Para além do pensamento abissal, nos ajuda a entender como o pensamento moderno é basicamente um pensamento abissal e sacrificial, que justifica a desterritorialização. É abissal, porque cria abismos: um lado é o da existência, o outro é o da inexistência. Boaventura mostra como o Direito, ao legitimar a apropriação da terra como propriedade privada capitalista, tem sido uma arma brutal de sacrificar identidades. O sociólogo de Coimbra afirma que no campo do conhecimento, o pensamento abissal consiste na concessão à ciência moderna do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso. Nessa perspectiva, a luta pela terra e por reforma agrária é desqualificada como algo falso e anacrônico pela ideologia dominante ao veicular o posicionamento dos detentores dos poderes econômico e político. A propaganda dos capitalistas que investem no campo para obter mais-valia à custa da expropriação do campesinato afirma como verdadeiro o agronegócio, projeto agropecuário que sufoca todo e qualquer tipo de reforma agrária e causa uma imensa devastação socioambiental. Relações de subordinação dos camponeses ao capital quando as grandes empresas agropecuárias do agronegócio pelas condições materiais de enorme poder econômico submetem as famílias camponesas da região dos grandes projetos agropecuários aos seus interesses forçando um grande número de camponeses, quando pequenos proprietários, a praticarem o que se chama de ‘agronegocinho’, que é atrelar sua pequena propriedade rural e sua produção aos interesses do capitalista que está ao lado. Isso se faz através de financiamento para se plantar o que interessa aos empresários das monoculturas, através do arrendamento das pequenas propriedades, da venda de sementes com a oferta de técnicos para acompanhar a produção e, consumando com a compra antecipada da produção. Enfim, uma grande empresa do agronegócio, além de comprar a produção dos camponeses, acaba controlando as terras dos pequenos proprietários e reduzindo-os a simples serviçais do capital. Nesse contexto os órgãos ambientais via de regra são implacáveis com os camponeses que provocam alguma agressão ambiental. “Por que se deveria exigir dos sem-terra uma consciência ecológica que nossas elites, com toda a sua educação e o seu cosmopolitismo, nunca têm?” (LEROY, 2010, p. 292).

Referências

COMPARATO, Bruno KonderA Ação Política do MST. São Paulo: Expressão Popular, 2003.

LEROY, Jean Pierre. Territórios do futuro: educação, meio ambiente e ação coletiva. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll/Lamparina Editora, 2010.

MOREIRA, Gilvander Luís; LAUREANO, Delze dos Santos. MST: 25 anos de luta por reforma agrária. In: Veredas do Direito, Belo Horizonte, Vol. 6, n. 11, p. 11-29, nota 5, p. 17, Jan. – Jun./2009.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A questão agrária no Brasil: não reforma e contrarreforma agrária no governo Lula. In: Vv.Aa. Os anos Lula: contribuições para um balanço crítico 2003-2010. Rio de janeiro: Garamond, p. 287-328, 2010.

SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 78, p. 3-46, 2007.

Belo Horizonte, MG, 18/01/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Luta pela terra e pela moradia, com justiça agrária e urbana (Frei Gilvander no Dom Debate) –21/7/21



2 - Povo Kiriri e a luta indígena pela terra em Minas Gerais - Por CPT, CEDEFES e Povo Kiriri



3 - Acampamento Dênis Gonçalves, do MST, em Goianá, MG - luta pela terra. Frei Gilvander - 26/8/2010.


4 - Acampamento Eloy Ferreira, do MST, Engenheiro Navarro/MG: luta pela terra. Frei Gilvander. 02/9/2010



5 - MST na luta pela terra no sul de MG - Grito dos Excluídos - Frei Gilvander/luta por direitos/07/9/10



6 - Palavra Ética: Luta pela terra e por moradia em Pirapora e em Santa Luzia, MG. E L. Boff - 29/02/20



7 - 160 famílias na luta pela terra em Pirapora, MG, há 20 anos. Despejar é injusto/violência. 17/2/2020



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III