PRESOS E FAMILIARES SOB VIOLÊNCIA ATROZ. “LIBERTAI-OS”, DIZ JESUS! Por frei Gilvander Moreira[1]
Falta de acesso à água, dormitórios superlotados, falta de assistência à saúde e dificuldade de acesso à informação são algumas dificuldades enfrentadas pelas pessoas em privação de liberdade - Foto: Arquivo Agência BrasilO Brasil é o
país que tem a 7ª maior população do mundo, mas está em 3º lugar entre os
países no número de encarcerados. Já são mais de 800 mil presos em um sistema
penitenciário já caracterizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como “um estado de coisas inconstitucional”. Contando
quem já cumpriu pena, há no Brasil milhões de famílias com algum parente que já
foi preso ou está preso. Massacres de presos já aconteceram em muitas prisões
no Brasil.[2]
Assisti outro dia ao filme documentário “O
Grito – Regime Disciplinar Diferenciado”, direção de Rodrigo
Giannetto, sobre o sistema penitenciário no Brasil, disponibilizado na
Netflix. Fiquei estarrecido ao ver e ouvir os depoimentos de ex-presidiários,
de mães de presos, de parentes, de advogados/as e constitucionalistas e até do
presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso. O filme O Grito interpela com veemência nossa consciência,
pois conta de forma comovente e instigadora histórias de famílias de
prisioneiros que foram afetadas pela portaria 157/2019 do ex-ministro da
Justiça Sérgio Moro. Portaria que proibiu o contato físico e privou detentos
nos presídios federais de segurança máxima de manter seus laços sociais e
afetivos. Impôs o banimento ao impor a incomunicabilidade do preso.
Hoje,
sofrem de forma brutal não só os presos e suas famílias, mas também
funcionários públicos, como agentes penais e diretores de presídios. No Brasil, o
encarceramento em massa está a todo vapor. Ano a ano aumenta-se
vertiginosamente o número de presos. Ao superexplorar a dignidade humana e
aumentar violentamente a desigualdade socioeconômica, a sociedade capitalista
se torna uma fábrica de “criminosos” e se deleita com requintes de vingança e
sadismo ao empurrar o povo negro, empobrecido e periférico para detrás das
grades. São jogados em presídios superlotados, com insalubridade, comida azeda,
com poucos agentes penitenciários e mal remunerados, o que piora mais a
situação.
A Lei de Execução Penal, Lei n.
7.210/1984, diz que a pena que alguém deve cumprir após ser condenado por ter
cometido um crime é a restrição do direito de ir e vir, ou seja, ficar preso,
mas todos os outros direitos da pessoa humana precisam ser garantidos pelo
Estado. E diz que a pena não deve passar do apenado. Deve-se restringir a
liberdade e não a dignidade humana. Mas na realidade as prisões brasileiras,
salvo honrosas exceções, são masmorras e brutais campos de concentração que
desumanizam, vingam e castigam quem cometeu crime, julgado por um poder
judiciário predominantemente integrado pela classe dominante que mais defende a
propriedade privada capitalista do que o direito à vida e a dignidade humana.
Por vários anos, enquanto conselheiro do
Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais, após receber denúncias
com frequência de maus tratos e tortura em presídios de Minas Gerais, integrando
Comissão de apuração de denúncias, visitei vários presídios da Região
Metropolitana de Belo Horizonte, MG. Calamitosa e horrorosa a situação. Presos
amontoados em celas superlotadas, submetidos ao arbítrio de agentes
penitenciários que, volta e meia, surgiam com uma “tropa de choque” exclusiva
deles para reprimir com brutal covardia. Comida estragada, ausência de banho de
sol, falta de água, condições de insalubridade, ter que dormir em celas com
“boi” fedorento. Com julgamento não concluso no STF, a revista íntima é vexatória
e viola a dignidade humana, humilham mães, avós, esposas ou namoradas... Esta
revista íntima é uma violência atroz perpetrada contra familiares de pessoas
presas. Eis sinais de cárceres sendo na prática
novas senzalas.
40% das
pessoas presas estão presas provisoriamente, ou seja, estão presas sem terem
sido condenadas. Enquanto membros da classe dominante continuam soltos com
manobras judiciais intermináveis após terem sido condenados. 40% dos presos nunca
puderam sentar na frente de um juiz para contar seu lado da história. E o
direito de defesa? E o devido processo legal? E o direito ao contraditório? 70%
das pessoas encarceradas são negras e seus crimes são envolvendo drogas sem
ligação nenhuma com facções. Com tanta tecnologia existente não se estrangula o
tráfico de drogas porque há poderosos que lucram muito.
O sistema carcerário é constituído dos
regimes fechado, semiaberto e aberto. Em 2003 foi criado legalmente e
implantado em 2006 o Regime Disciplinar
Diferenciado (RDD), de restrição drástica, “regime fechadíssimo”. Hoje
temos cinco presídios federais de segurança máxima, com muralhas de nove metros
de altura e com base profunda no solo, paredes capazes de resistir a bombardeio
de alto calibre, celas individuais, onde os presos permanecem isolados 22 horas
por dia. Qual é o ser humano que resiste a esta atroz segregação e infame
isolamento? Visitas com excessiva restrição sem nenhum contato físico, pois
entre o preso e a pessoa visitante há um vidro muito grosso à prova de bala. A
comunicação apenas por interfone com tudo registrado em câmeras que monitoram
tudo em áudio e vídeo.
Os presídios federais não são para
qualquer tipo de preso, mas exclusivamente para presos com ligação com facções.
Logo, empresários e políticos que tenham cometido crimes de “colarinho branco”
não são jogados em presídios federais, ou seja, não são violentados brutalmente
na sua dignidade. Ou seja, braço pesadíssimo do Estado em cima da classe
empobrecida e mão leve com os da classe dominante. E, pior, chamam isto de
Justiça.
Os depoimentos doloridos de pais, mães e
parentes de presos demonstram que as famílias também estão sendo afetadas
violentamente pelas penas atribuídas aos seus filhos, o que é inconstitucional.
Adoecimento mental, ansiedade e depressão estão levando presos e agentes
penitenciários ao suicídio em número cada vez mais alarmante. Cortar os
vínculos de comunicação com a família é brutalidade que empurra o preso para o
adoecimento. Ninguém é de ferro para resistir sobreviver sem contato pelos
menos com sua família e com pessoas que mais amam. Os presos estão pedindo
socorro.
O STF reconheceu, dia 04 de outubro de
2023, a violação massiva de direitos fundamentais no violento sistema prisional
brasileiro. Com a conclusão do julgamento da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) 347, o STF deu prazo de seis meses (Prazo vencido
dia 04/04/2024!) para que o Governo Federal elaborasse um plano de intervenção
para resolver a situação de desumanidade nos presídios, com diretrizes para
reduzir a superlotação dos presídios, o número de presos provisórios e a
permanência em regime mais severo ou por tempo superior ao da pena. As
condições degradantes dos presídios degradam as pessoas, ao invés de
ressocializar transformam os presídios em fábricas de criminosos.
Já está demonstrado que o sistema prisional
que ressocializa é o das APACs, Associação de Proteção e Assistência aos
Condenados, “prisões alternativas” com apenas dezenas de presos, onde os presos
são respeitados na sua dignidade, tratados com amor e cuidado. “Aqui entra o homem, o delito fica lá fora.”
Eis o lema que rege a vida diária nas APACs.
Por que não se segue a criminologia
defendida por Eugenio Raúl Zaffaroni, jurista e magistrado argentino, que
propõe imputar ao Estado parte da pena de um criminoso pelos direitos que foram
negados a ele antes de ele cometer um crime, sendo que na maioria das vezes o
jovem é empurrado para o crime pelas violações de direitos que sofre desde o
ventre materno?
Após ser
criado na Galileia (periferia da Palestina), convivendo com o povo empobrecido,
Jesus de Nazaré, antes de se tornar mestre, se tornou discípulo do grande
profeta João Batista. Ao saber que o profeta João Batista tinha sido
encarcerado em uma prisão de Segurança Máxima[3] e condenado à pena de morte,
Jesus foi tomado por uma ira santa e sentiu dentro de si a voz do Pai: “É
chegada a minha hora!” (Mc 1,14). Por solidariedade a um preso Jesus
começou sua missão pública.
Na pequena
sinagoga de Nazaré, Jesus lançou seu programa de ação pública: libertação
integral de todos. “Vim para libertar os presos!” (Lc 4,18). Isto se
trata de libertação política, pois quem prende é a polícia a mando do rei,
poder político. Logo, todo preso é um preso político.
Pelo seu ensinamento libertador, respaldado por uma prática amorosa e libertadora, Jesus Cristo reintegra os violentados, entre os quais estão os presos. Por isso, Jesus foi preso e condenado à morte. Na cruz (regra do Império Romano para escravizados e subversivos!), Jesus acolheu outro prisioneiro, dizendo-lhe: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43). Assim, segundo os evangelhos, Jesus inicia sua missão pública acolhendo o clamor de um preso e termina estendendo a mão ao outro preso. Por uma sociedade sem prisões sigamos lutando!
1º/10/2023.
Obs.: As videorreportagens nos
links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 - Maria
Criseide e Wellington, INOCENTES, mas pena 15 anos de prisão, presos a 4 anos,
tortura/estupro
2 - Jorge
Almeida, militante da luta pela Reforma Agrária em MG: 4,5 anos presos, poeta,
de Buritis/MG
3 - II
Palavra Ética na TVC/BH: APAC de Lagoa da Prata/MG. Jeito humano de lidar com
os presos
4 - Palavra Ética na TVC/BH: Direitos Humanos dos presos, c/
Aylton Magalhães/DPE/MG. 02/04/16
5 - Dona Tereza
defende direitos dos presos de MG e critica promotores da área criminal.
14/03/16
6 - Palavra
Ética com frei Fernando Brito: preso 4 anos nos porões da ditadura militar.
21/11/2012
7 - Pastoral
Carcerária: José Raimundo de Freitas, após 38 anos preso, artista. 2a parte.
20/05/2012
8 - Dona Teresa - Presidenta do Grupo dos parentes
dos presos - DIREITOS HUMANOS - 10/12/2011
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela
FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia
pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em
Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI e Ocupações Urbanas; autor de livros e
artigos. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– Canal no you tube: https://www.youtube.com/@freigilvander – Facebook:
Gilvander Moreira III
[2] “56 mortos em presídio em Manaus, dia 02/01/2017”. Essa é a informação
oficial. No massacre do Carandiru, em 02/10/1992, em São Paulo, SP, oficialmente
foram 111 mortos, mas segundo o padre da Pastoral Carcerária, na época, o
massacre pode ter atingido letalmente mais de 200 presos. Em um
presídio de Ponte Nova, MG, no dia 23 de agosto de 2007, 25 presos morreram
queimados durante um incêndio. Outros oito presos foram queimados vivos
[3] Pesquisas arqueológicas indicam
que, provavelmente, João Batista tenha sido encarcerado na Prisão de
Maquerontes, uma das fortalezas do rei Herodes.