terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Complexidade: e a força das pequenas vitórias? Por frei Gilvander

 Complexidade: e a força das pequenas vitórias? Por frei Gilvander Moreira[1]


Em uma sociedade capitalista como a nossa, a interpretação da dinâmica social segundo a perspectiva do materialismo histórico-dialético é algo imprescindível na construção de emancipação humana e tem como características os seguintes traços: “a crítica da causalidade linear e a absolutização da causalidade que exclui a participação de elementos aleatórios, caos e perturbações na definição dos rumos de processos de diferentes naturezas; impossibilidade de eliminar a influência do objeto de medição no objeto medido; relevância das qualidades de auto-organização no funcionamento de diferentes sistemas; importância das situações de incerteza e imprevisibilidade” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 27).

Ao defender o princípio da complexidade, Edgar Morin (2004 e 2008) ensina que de toda parte surge a necessidade de um princípio de explicação mais rico do que o princípio de simplificação (separação/redução), princípio básico da ciência. Porém, ciente de que o paradigma da complexidade, proposto por Edgar Morin (2002) e outros, contribui para a superação de análises dualistas e dicotômicas, mas também ciente de que o paradigma da complexidade pode descambar para uma espécie de relativismo que ofusca a opressão de classe e a superexploração das classes trabalhadora e camponesa perpetrada pelo sistema do capital que, ao sequestrar os meios de produção e realizar o cativeiro da terra, superexplora a força de trabalho, gerando mais-valia e acumulando capital em uma progressão geométrica, não podemos ignorar o que há de bom no paradigma da complexidade. Segundo Ovidio Hernández, o paradigma da complexidade se sustenta em seis princípios: a) princípio dialógico, que é o elo entre os elementos antagônicos inseparáveis; b) princípio de recursividade organizacional, que afirma serem os efeitos eles mesmos produtores das causas; c) princípio hologramático, que afirma que não só a parte está no todo, mas que também o todo está na parte; d) princípio de adaptação e evolução conjunta, que diz que os processos de auto-organização de sistemas complexos se transformam em conjunto com o seu entorno; e) princípio da não proporcionalidade ou não linearidade da relação causa-efeito, que afirma que vitórias de caráter menor podem desenvolver processos de mudanças substanciais, “a força das pequenas vitórias”; f) princípio da sensibilidade às condições iniciais, o qual afirma que uma pequena mudança nas condições iniciais de surgimento e organização de um sistema complexo pode conduzir a resultados muito diferentes (Cf. HERNÁNDEZ, 2005, p. 28-29).

A luta pela terra, por território e por moradia se alimenta da força de pequenas vitórias. “São os pequenos tijolos que sustentam as grandes construções”, dizem muitos camponeses. Acreditar no pequeno, em si mesmo, no/a companheiro/a Sem Terra, Sem Teto, nos Povos Tradicionais e na luta: eis outro traço de emancipação humana presente nos Sem Terra que batalham na luta pela terra, nos Sem Teto que lutam pela moradia e nos Povos Originários que lutam pelo resgate de seus territórios. “O mistério da força e do crescimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) está justamente nas pequenas coisas, que as velhas estruturas nunca valorizaram, assim destruindo-se por terem asfixiado a capacidade de criar de seus integrantes. Os inimigos procuram nossas virtudes nas grandes coisas. Na verdade, estas são apenas a expressão da dedicação que cada Sem Terra tem ao fazer pequenas coisas acontecerem” (BOGO, 1999, p. 152). De fato, nas lutas por direitos, o que à primeira vista parece ser impossível conquistar, com a perseverança na luta, torna-se possível. Com a luta coletiva perseverante o impossível se torna possível.

Como se forma, enquanto construção histórico-cultural, a subjetividade dos sujeitos Sem Terra na luta pela terra, dos Sem Teto na luta pela moradia e dos Parentes Originários na luta pelo resgate de seus territórios? De acordo com a concepção original marxista, Ovidio Hernández afirma: “a subjetividade dos indivíduos é elaborada e ativada no conjunto de condições de sua existência material, de suas relações sociais de grupo e classe, de suas práticas cotidianas e das produções culturais que compõem a subjetividade social, das quais não pode ser deduzida, por outro lado, uma linearidade de determinações” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 37).

A luta pela terra, pela moradia e por território em alguma medida tem a força de desencadear um processo revolucionário? Depende do que se entende por processo revolucionário, que para Ovidio Hernández trata-se de “um conjunto interativo de ações políticas coletivas que inclui ações populares, que impactam profundamente uma sociedade e nela introduzem mudanças em diversas áreas que estabelecem um antes e um depois, no que diz respeito à revolução, para indivíduos, grupos e sociedade como um todo” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 37).

Na luta pela terra, os Sem Terra experimentam que o Estado não promove políticas para o bem comum, não apenas se omite ou é lento em realizar políticas públicas emancipatórias, mas, ao contrário, o Estado é violentador da dignidade humana, dos direitos sociais e, especificamente, do direito à terra. Em uma sociedade capitalista, o Estado se torna vassalo da reprodução do sistema e para isso mantém a terra em cativeiro, não se faz reforma agrária. Mas os Sem Terra na luta pela terra sabem que não basta tomar de assalto o poder político se apropriando do Estado, pois vale a análise feita por Michel Foucault sobre o Estado, o poder e caminho para a revolução, como segue: “Para evitar a experiência soviética e evitar que o processo revolucionário seja derrubado, uma das primeiras coisas a entender é que o poder não está localizado no aparato do Estado, e que nada na sociedade mudará se os mecanismos de poder não forem também transformados, os que funcionam fora, abaixo e nos aparelhos de Estado, ao nível da vida quotidiana, de cada minuto” (FOUCAULT, 1980, p. 60).

Portanto, deve-se usar o paradigma da complexidade para analisar as questões sociais, mas sem recair no complexíssimo paralisante e, acima de tudo, batalhar pelas pequenas mudanças que podem se tornar alavancas de grandes transformações.

Referência

BOGO, Ademar. Lições da luta pela terra. Salvador: Memorial das letras, 1999.

FOUCAULT, Michel. Power/Knowledge. New York: Pantheon Books, 1980.

HERNÁNDEZ, Ovidio S. D’Angelo. Autonomía integradora y transformación social: El desafío ético emancipatorio de la complejidad. La Habana: Publicaciones Acuario Centro Félix Varela, 2005.

MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Tradução: Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro, 2008.

______. Saberes globais e saberes locais: o olhar transdisciplinar.  Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

______. O problema epistemológico da complexidadePortugal: Biblioteca Universitária, 2002.

24/01/2023

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Esperar lutando por direitos humanos fundamentais: eis o caminho! Por frei Gilvander Moreira

2 - Preservação INTEGRAL da Mata do Jd. América, em BH/MG, JÁ! Abraço à Mata. Fora, construtora Patrimar

3 - MRS derrubou 47 casas em Ibirité/MG, INCLUSIVE a de uma mãe grávida de gêmeos, no Morada da Serra

4 - “MRS usou CITAÇÃO para nos pressionar, COAGIR, dizendo q tínhamos q sair em 15 dias. Acordo injusto"

5 - “MRS Logística S/A no Morada da Serra, em Ibirité/MG, infernalizou nossa vida, com pressão e coação"

6 - “21 casas não tinham necessidade de serem demolidas, no Jd. Ibirité/MG, pela MRS c acordos e coação"

7 - Educação para prática de libertação! - Por frei Gilvander Moreira


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Como superar a fetichização e a coisificação? Por frei Gilvander

 Como superar a fetichização e a coisificação? Por frei Gilvander Moreira[1]


Muitas vezes, a realidade social é vista em termos simplistas, com generalizações, polarizações, dualismos e dicotomias, tais como: tradicional/moderno, rural/urbano, tradicional/racional, emocional/racional, pré-capitalista/capitalista etc., mas ao analisar a realidade social em esquemas dicotômicos acaba-se por pensar ser o mundo ambíguo, o que esconde a dominação de fundo, que é a dominação do trabalho e da terra pelo capital, algo que se constrói pela fetichização das mercadorias e coisificação do ser humano detentor de dignidade e de direitos. E, pior, a ambiguidade se sobrepõe ao antagonismo e à contradição constitutiva da sociedade capitalista, de modo que o que é construído nas teias das condições históricas e materiais aparece como simplesmente imperfeito.

A luta entre sem-terra – oprimidos - versus latifundiários – opressores - , sem-casa versus especuladores da cidade, negros versus racistas, mulheres versus homens machistas e patriarcais, homossexual versus homofóbicos, meio ambiente versus agronegócio e mineradoras, democratas versos bolsonaristas golpistas, não se trata apenas de um conflito entre o bem e o mal. Recair também no modo capitalista de pensar é embaçar e encobrir com uma ‘nuvem de fumaça’ a realidade complexa das relações sociais e históricas que determinam a exploração do trabalho pelo capital. A luta pela terra é travada dentro do capitalismo, onde “o modo de produção capitalista, na sua acepção clássica, é também modo capitalista de pensar e deste não se separa” (MARTINS, 1986, p. IX). Enquanto modo de produção de ideias, levado para todas as classes sociais a partir da classe dominante, o modo capitalista de pensar está introjetado no conhecimento científico tanto quanto no senso comum e diz respeito “ao modo de pensar necessário à reprodução do capitalismo, à reelaboração das suas bases de sustentação – ideológicas e sociais” (MARTINS, 1986, p. IX).

Karl Marx analisa o fetichismo da mercadoria, que gera a alienação na sociedade. Com a mercantilização de tudo na sociedade capitalista, todo sujeito é transformado em mercadoria, que se vende e se compra. O que predomina é “a razão que faz com que as coisas se relacionem umas com as outras como se fossem dotadas de condição humana e que faz com que as relações entre as pessoas pareçam relações entre coisas” (MARTINS, 1986, p. 17).

No livro Sobre o modo capitalista de pensar, o sociólogo José de Souza Martins (1986) nos alerta para a necessidade de uma sociologia crítica e fecunda. Ele denuncia a segmentação do conhecimento em disciplinas especiais como um artifício de abstração que torna múltiplo um objeto que resiste ao rompimento da sua unicidade, aponta a origem ambígua da sociologia como pensamento conservador necessário à constituição da sociedade capitalista e advoga pertinentemente a necessidade de se trabalhar teoricamente a partir de uma visão totalizadora e histórica das situações sociais (Cf. MARTINS, 1986, p. 26-27.51). A luta pela terra, por território e por moradia contribui para a superação desse esquartejamento da realidade em disciplinas especiais e aponta para a importância de se criar visão totalizadora e histórica das situações sociais.

Resgatar historicamente as origens de tudo o que se vai analisar é imprescindível para se compreenderem as condições históricas e materiais que geraram certos tipos de pensamento que são pensamentos capitalistas. O pensamento não é neutro, não parte de tábua raspada, mas “é produto de um estilo de pensamento. O pensamento traduz uma maneira de ver e de viver e, portanto, uma forma de querer generalizada sob ação dos mecanismos de alienação, isto é, de reprodução social” (MARTINS, 1986, p. 48).

Não há como haver emancipação sem criatividade – dimensão poética da vida -, pois a criatividade evita a adaptação, a adequação e o conformismo diante da ordem estabelecida vigente. A luta pela terra, por território e por moradia, ao envolver a participação de todos os Sem Terra, Sem Moradia e Povos Tradicionais distribuídos democraticamente em comissões e tarefas, cultiva e fomenta a criatividade entre os camponeses Sem Terra, os Sem Casa e os Povos desterritorializados, o que desenvolve aspectos emancipatórios. Por alimentar o trabalho poético – criativo – a luta pela terra, por território e por moradia dificulta os processos de fetichização e de coisificação. Por isso também, a luta pela terra, por território e por moradia tem algo de emancipatório. Pesquisando e acompanhando a luta pela terra em várias regiões do país, ainda em 1991, José de Souza Martins alertava: “Uma reforma agrária que não incorpore os projetos e formulações já revelados nas próprias lutas dos lavradores, que não combine as diferentes concepções e práticas alternativas de propriedade, e que ao mesmo tempo não abra a possibilidade de crescimento desses regimes alternativos sem a tutela do capital, poderia se transformar num mero exercício de ficção” (MARTINS, 1991, p. 59-60).

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) e os Movimentos Sociais Populares internamente enfrentam no cotidiano da luta por terra, território e outros direitos socioambientais uma tensão dialética desafiadora entre “agentes da CPT e trabalhadores/as”, outras vezes entre “cúpula de assessoria e base”. Mas, cultivando humildade, paixão pela causa das camponesa e dos camponeses, capacidade de ouvir e levar a sério o que dizem as trabalhadoras e os trabalhadores, dialogar – falar ‘com’ e não apenas falar ‘para’/‘ao’ ou ‘sobre’ - a CPT e os Movimentos Sociais Populares seguem empunhando a bandeira da agricultura camponesa, da luta pela terra, embasando-se nos últimos do campesinato. Lutar pela terra de forma emancipatória exige não recair em nível pessoal, nem em nível comunitário-coletivo no dogmatismo, nem no relativismo, nem no basismo, nem no idealismo e nem no romanticismo. Se a realidade atual é cruel e complexa, não haverá soluções simplistas, mas complexas, processuais e que exigem aprimoramento teórico e prático constante. A interpretação da dinâmica social segundo a perspectiva do materialismo histórico-dialético é algo imprescindível na construção de emancipação humana.

Em síntese, a dominação do capital sobre o trabalho ancorado no aprisionamento da terra está se reproduzindo cotidianamente. O caminho para a superação desta brutal violência social passa necessariamente pela luta pela terra, por território, por moradia e por todos os outros direitos socioambientais. Tudo isso feito articulando os saberes populares construídos no calor das lutas históricas e gerando condições objetivas materiais que viabilizem mudanças de consciência no rumo de emancipação humana.

Referência

MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência: a questão política no campo. 3a edição. São Paulo: HUCITEC, 1991

______. Sobre o modo capitalista de pensar. 4ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1986.

17/01/2023

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Educação para prática de libertação! - Por frei Gilvander Moreira

2 - “Todo mundo aqui no Jd. Ibirité/MG foi coagido e forçado a sair das 21 casas. MRS está nos matando"

3 - Esperar lutando por direitos humanos fundamentais: eis o caminho! Por frei Gilvander Moreira


4 - Frei Carlos Mesters: CF/22 -Fraternidade e Educação. “Fala com sabedoria, ensina com amor”(Pr 31,26)


5 - “Arborizemos nosso ambiente! Educação ambiental e práxis ecológica” (Rosimeire Maria, de Arinos, MG)


6 - Frei Gilvander X Seguranças da Vale S/A e Educação Indígena Xukuru-Kariri, em Brumadinho/MG. Vídeo 7


7 - P.A Terra Prometida do MST em Felisburgo/MG produz alimentos saudáveis e Educação do Campo. Vídeo 3


8 - Frei Gilvander apoia greve dos trabalhadores e trabalhadoras em Educação de Betim, MG 12 2 2020




[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Terrorismo nas sedes dos Três Poderes em Brasília: sem punição não terá fim. Por Frei Gilvander

 Terrorismo nas sedes dos Três Poderes em Brasília: sem punição não terá fim. Por Frei Gilvander Moreira[1]

Ato Público e Marcha em Belo Horizonte, MG, em repúdio aos ataques terroristas nas sedes dos Três Poderes, em Brasília. Foto: Divulgação Revista Piauí - Praça da Estação, em Belo Horizonte.09/01/2023.

Estarrecido com os ataques terroristas, fascistas, golpistas, bolsonaristas, acontecidos em Brasília nas sedes dos Três Poderes da República Federativa do Brasil, patrimônio da humanidade, no domingo, dia 08 de janeiro de 2023, uma semana após Luiz Inácio Lula da Silva ter tomado posse pela terceira vez para ser presidente do Brasil nos próximos quatro anos. Ele governará para o bem do povo brasileiro para reconstruir o Brasil destruído sob todos os aspectos pelo desgoverno anterior. O vandalismo e a devastação perpetrada nas sedes dos Três Poderes foram imensos economicamente e simbolicamente incalculáveis. Na história do Brasil após a redemocratização não se tinha vista crimes tão horrendos.

Diante dos brutais crimes (são muitos!) cometidos pelos terroristas precisamos, primeiro, ter o melhor diagnóstico sobre o que aconteceu. Segundo, precisamos compreender como foram preparados os ataques, quem foram os criminosos, os mandantes, os financiadores, os mentores do terrorismo, os cúmplices, os coniventes, os omissos. Isso para tirarmos todas as lições destes ataques para que a democracia seja fortalecida e a barbárie contida. Deste mal é preciso tirar muitas boas lições.

Após chegarem a Brasília em mais de cem ônibus, em aviões e muitos em automóveis, com a cumplicidade das forças de segurança do Distrito Federal (Polícia Civil e Militar) que não organizaram a contenção dos golpistas e terroristas, mas “os escoltaram” até a Praça dos Três Poderes, onde invadiram o Congresso Nacional (Senado e Câmara dos Deputados), o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Palácio do Planalto sem encontrar quase nenhuma resistência das poucas forças de segurança presentes no momento da invasão, vandalizaram e depredaram tudo. Centenas de vidraças quebradas. Salas, salões e auditórios devastados com requintes de barbárie. Portas arrombadas. Urinaram e defecaram em várias salas. Destruíram um mural com fotos dos ex-presidentes do Brasil no Palácio do Planalto. Danificaram obras de arte de como “As Mulatas” de Di Cavalcanti (no valor de oito milhões de reais), de Portinari e outros/as artistas; destruíram bens históricos. Documentos, mobília, equipamentos eletrônicos, alimentos e até armas foram roubados. Roubaram até uma réplica do documento original da Constituição de 1988 do STF. Enfim, cuspiram ódio nos Três Poderes e em patrimônio histórico-cultural da humanidade.

Alguém já viu patriota destruir os símbolos da própria pátria? Travestidos de patriotas e de pessoas religiosas, não eram nem patriotas e nem religiosos, mas sim “sepulcros caiados” cheios de hipocrisia e violência. O Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), órgão assessor da UNESCO, divulgou nota de repúdio à destruição de Patrimônio da Humanidade no Brasil nas sedes dos Três Poderes, na qual diz: “O ataque terrorista perpetrado pelas forças antidemocráticas contra o conjunto moderno de Brasília, inscrito pela UNESCO, representa não só uma agressão ao povo e ao patrimônio cultural brasileiro, mas um CRIME CONTRA A HUMANIDADE COMO UM TODO. Esses crimes são hoje passíveis de julgamento pelo Tribunal Pena Internacional (TPI), que em 2016, em um precedente marcante, condenou Ahmad al-Faqi Al Mahdi por crimes de guerra, pela destruição de importantes edifícios históricos na cidade de Timbuktu no Mali.

O número de criminosos é muito maior do que os 300 presos na contenção do vandalismo e os 1.200 detidos na manhã seguinte no acampamento ao lado do QG do Exército em Brasília. Na tentativa de invasão do Capitólio nos Estados Unidos 900 criminosos foram presos. Há vários tipos de criminosos terroristas envolvidos na execução, na preparação, na sustentação e no apoio ao gravíssimo atentado contra a Democracia brasileira. Há os que participaram dos ataques e que foram filmados por câmeras de drones da Polícia Federal e pelas Câmeras das sedes dos Três Poderes. Estes deixaram mais do que a digital nos crimes. Além destes, há as autoridades de forças de segurança que participaram, violando flagrantemente sua missão como agente do Estado brasileiro. Há autoridades políticas, civis e militares, cúmplices e coniventes, tais como o Governador do Distrito Federal (DF), Ibaneis Rocha, que foi afastado do cargo por 90 dias pelo ministro Alexandre de Moraes, por conduta “dolosamente omissiva”; o ex-secretário de segurança do DH, Anderson Torres, que, aliás, estava em Miami, onde está o ex-inominável, que precisa, com urgência, ser responsabilizado como autor intelectual e fomentador destes ataques terroristas, pois durante mais de quatro anos incentivou e alimentou os criminosos estilhaçando o regime democrático. Ameaçou o tempo todo que poderia dar golpe. E ao fugir “confessou” que não deu o golpe por falta de apoio. A todos criminosos recordamos o que diz o profeta Malaquias “Todos os que cometem injustiças serão como palha na fornalha acesa. E deles não sobrarão nem raízes e nem ramos” (Mal 3,19).

Há indícios seríssimos de que empresários do agronegócio financiaram estes atos terroristas. Os mandantes destes ataques terroristas precisam ser presos preventivamente e terem seus bens bloqueados para pagarem as reformas nas sedes dos Três Poderes. Não é justo que o povo brasileiro trabalhador arque com as despesas das reformas urgentes e necessárias.

Precisam ser responsabilizados também os corresponsáveis ideológicos e religiosos, vários deles identificados entre os participantes destes atos terroristas. Ideias e crenças movem as pessoas. Assistimos nos últimos anos um grande número de falsos pastores, padres bolsonaristas e outros líderes religiosos “assediando” muita gente que, ingenuamente ou cegado, acabou por acreditar no tsunami de mentiras que jorravam das bocas destes falsos pastores e profetas que conduzem o povo para o matadouro. Estes o profeta Miqueias desmascara: "vocês que têm horror ao direito e entortam tudo o que é reto" (Miq 3,9). Usaram e abusaram do nome de Deus, de Jesus e de textos bíblicos para fomentarem ódio, intolerância e uma série de discriminações na convivência social. Hipocritamente se diziam “defensores de Deus, da Família e da Pátria”, mas na prática são idólatras travestidos em vestes e discursos religiosos, são destruidores das famílias brasileiras, pois no fundo o que querem é continuar devastando a Amazônia, invadindo territórios indígenas, com garimpo e agronegócio desertificador dos territórios. E não são patriotas, mas patriotários, pois insistem em solapar a nossa Pátria, as instituições e valores democráticos. O profeta Miqueias não alivia com estes: “Os chefes de vocês proferem sentença a troco de suborno; seus sacerdotes ensinam a troco de dinheiro, e seus profetas são mercenários” (Miq 3,11).

Com o ex-ministro do STF Aires de Brito digo: “O terrorismo não acabará enquanto financiado, estimulado e aplaudido. E continuará matando a Democracia ... até que seja severamente punido." Aos golpistas terroristas dedicamos as palavras duras de Jesus Cristo no Evangelho de Mateus: "Ai de vocês que amarram pesados fardos e os colocam no ombro dos outros, mas vocês mesmos não estão dispostos a movê-los, nem sequer com um dedo" (Mt 23,4). De fato, esses golpistas apoiaram o desgoverno do inominável que condenou mais de 33 milhões de pessoas a passarem fome no Brasil. Mais de 400 mil mortos pela covid-19 poderiam estar vivos se o povo tivesse sido vacinado sem atraso de vários meses e se não tivesse sido implementada política negacionista da ciência. Os cortes brutais nas políticas públicas mataram muita gente. "Ai de vocês hipócritas! Vocês exploram as viúvas e roubam suas casas e, para disfarçar, fazem longas orações. Por isso, vocês vão receber uma condenação severa” (Mt 23,14). Isso mesmo: o que não admitem, mas na prática querem é continuar roubando “as viúvas de hoje”, que são os Povos Indígenas, os quilombolas, o povo negro, periférico secularmente escravizado no nosso país. Querem mesmo é continuar saqueando os territórios (Amazônia e todos os outros biomas), com agronegócio desertificador de territórios e mineração que deixa terra arrasada onde se instala. Os terroristas sabem que o presidente Lula e a frente ampla que o elegeu têm compromisso com a implementação de políticas públicas que efetive justiça agrária, ambiental, urbana, trabalhista e previdenciária. No fundo, os terroristas são egoístas. Muitos deles faziam fila para comprar iates e helicópteros, sem pagar nem IPVA, enquanto o governo que eles sustentavam humilhava o povo na fila do osso, pela fome imposta.

Enfim, é hora de apuração urgente de todos os responsáveis e corresponsáveis pelos ataques terroristas. Punição, já, para que não voltem a tentar atentar contra a democracia. Ovo de serpente, se não for abortado, gera serpentes venenosas e letais. Sem punição não terão fim as ações antidemocráticas e violadoras de direitos humanos.

10/01/2023.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Ato Público/Marcha em BH/MG: repúdio aos ataques terroristas na sede dos Três Poderes. "SEM ANISTIA!"

2 - Presidente Lula fala sobre ataques terroristas em Brasília nas Sedes dos Três Poderes dia 08/01/2023

3 - Ministro da Justiça, Flávio Dino, e Ministro Alexandre Padilha sobre ataques terroristas em Brasília

4 - “SEM ANISTIA, SEM PERDÃO! PRISÃO PARA BOLSONARO E TERRORISTAS!" Ato Público/Marcha. BH/MG. Vídeo 2



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Despejar 40 mil famílias na beira da ferrovia? Por frei Gilvander

 Despejar 40 mil famílias na beira da ferrovia? Por frei Gilvander Moreira

Nos primeiros dias do ano de 2023, eu poderia escrever sobre o renascimento da esperança com a posse do presidente Lula e com o fim do desgoverno do inominável “irresponsável, desumano, criminoso, genocida, negacionista e obscurantista”. Poderia escrever sobre os destaques da posse do Lula, entre os quais o Lula subindo a rampa do Palácio do Planalto ao lado de pessoas representando o povo brasileiro injustiçado: o ancião cacique Raoni Metuktire; o Francisco, menino negro; Aline, mulher negra, 3ª geração de catadora de materiais recicláveis; um jovem com deficiência por paralisia cerebral; um trabalhador metalúrgico; Jucimara, cozinheira; Murilo, professor; Flávio, artesão e uma cachorrinha que acampou na vigília ao lado da sede da Polícia Federal em Curitiba, onde Lula ficou injustamente preso 580 dias. Lula recebendo a faixa presidencial pelas mãos do povo injustiçado: momento histórico, emocionante, pleno de amor, de esperança! 

Eu poderia ainda escrever desejando que 2023 seja inspirador! Que floresça em nós o que temos de melhor para fazermos acontecer, verdadeiramente, um feliz ano novo, que sejamos pessoas humanas - justas, éticas, amorosas, solidárias, responsáveis socialmente, ambientalmente e geracionalmente. Que estejamos irmanados/as nas lutas necessárias para reconstruirmos o Brasil com justiça econômica, solidariedade social, sustentabilidade ambiental, respeito à imensa diversidade cultural e religiosa! Que a luz divina e os espíritos ancestrais nos guiem!  Poderia ainda escrever: “Ditadura, nunca mais!” “Anistia a criminosos, jamais!” “Democracia para sempre!”, como enfatizou Lula ao discursar. É tempo de esperançar nas lutas concretas por direitos. É tempo de coletivizar, de aquilombar, ampliar as lutas pelo bem comum, tempo de união e reconstrução. 

Entretanto, concordando com a professora idealizadora da Faculdade de Educação da UFMG[1] e militante de uma educação transformadora, Magda Becker Soares, que se encantou na madrugada do dia 1º/01/23, ao afirmar que “a arma social de luta mais poderosa é o domínio da linguagem”, preciso escrever sobre a luta árdua, justa e necessária de cerca de 40 mil famílias que estão sobrevivendo há muitas décadas na beira da ferrovia de Mateus Leme, em Minas Gerais, até o Espírito Santo, passando por 40 cidades. Na maioria destas cidades, milhares de famílias estão sob a espada de processos individuais de despejo movidos pelas empresas Ferrovia Centro-Atlântica S/A, dona da ferrovia, e pela megaempresa MRS Logística S/A, que é dona dos trens que transportam os minérios que são arrancados das veias abertas de Minas Gerais e jogados nos navios. A mineradora Vale S/A é a maior acionista (dona) controladora destas empresas. Há milhares de processos de despejo na justiça estadual e na justiça federal. Em Betim e Belo Horizonte, por exemplo, há centenas de processos em várias varas cíveis. 

Na cidade Ibirité, região metropolitana de Belo Horizonte, MG, por exemplo, a megaempresa MRS Logística S/A, no segundo semestre de 2022, requereu judicialmente reintegração de posse de várias áreas ao lado da ferrovia. Após uma juíza de 1ª instância ter indeferido o pedido de reintegração de posse, a MRS iniciou um brutal processo de pressão sobre as famílias que “sob coação” assinaram acordos com indenizações muito injustas. Trinta e seis casas já foram demolidas, sendo 21 casas no bairro Jardim Ibirité e outras 15 casas no bairro Morada da Serra. No bairro Jardim Ibirité, quatro famílias resistem bravamente à investida de despejo. Moram no local há mais de 50 anos, distante da ferrovia de 30 a 50 metros, em área plana, em casas que não apresentam nenhum risco geológico, sem risco de desabamento ou deslizamento, sem risco nos quintais e estando fora da área de servidão da ferrovia, segundo a Lei Federal nº 6.766/79, que estabelece faixa de 15 metros de largura a partir do limite da faixa de domínio, chamada de faixa não edificada. Em alguns casos, pode haver a aplicação da Lei nº 13.913/19, reduzindo a faixa para 5 metros. O Art. 4 da Lei Federal 13.913/19 permite a permanência de edificações na faixa de domínio das ferrovias. 

A Defesa Civil da prefeitura de Ibirité, dia 26/12/22, avaliou in loco as cinco casas que resistem e disse para os moradores que as casas não estão em risco, conforme vídeo feito pelos moradores.[2] Laudo imparcial do geólogo Dr. Carlos von Sperling demonstra também o que todos a olhos vistos percebem: todas as cinco casas estão fora da área de servidão da ferrovia, estando distante para além de 20 metros da ferrovia. Logo, não é e nunca foi propriedade da MRS Logística S/A e tampouco há qualquer vestígio de posse exercida por essa empresa. A posse qualificada pelo exercício da função social é exercida pelos moradores há décadas e eles são legítimos possuidores com direito subjetivo à regularização fundiária plena. 

Ressalto que a Lei Federal 13.465/2017, que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, em seu § 4º, estabelece que na Reurb-S de imóveis públicos, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e as suas entidades vinculadas, quando titulares do domínio, ficam autorizados a reconhecer o direito de propriedade aos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado por meio da legitimação fundiária. Reurb-S significa Regularização Fundiária Urbana Social e é conceituado como o procedimento por meio do qual se garante o direito à moradia daquelas pessoas que residem em assentamentos informais localizados nas áreas urbanas. De acordo com a Lei Federal 13.465, de 2017, a REURB consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes. 

Como a MRS Logística S/A já demoliu 21 casas no quarteirão, após acordos com sérios indícios de coação, restando apenas quatro famílias com cinco casas (o sr. Lázaro e família têm uma casa velha de mais 50 anos e uma casa nova no mesmo lote), mesmo que a juíza de 1ª instância tenha proibido a demolição das casas e arbitrado multa de duas vezes o valor das casas, é óbvio que se as famílias forem retiradas das suas moradias, as casas serão demolidas ao arrepio da proibição judicial, pois a MRS preferirá pagar a multa ou recorrer judicialmente para conquistar uma eventual redução da multa. Isso será muito mais lucrativo para a empresa, pois terá o quarteirão todo anexado ao seu patrimônio, podendo fazer no local um empreendimento econômico de grande porte. Por isso, frisamos que a proibição de não demolir as casas e multa em caso de demolição não garantem a incolumidade das casas, caso as famílias sejam retiradas das casas sem nenhuma necessidade e muito menos o retorno das famílias às suas residências no final de janeiro de 2023. 

Se não há risco nas casas, nem nos quintais e se estão fora da faixa de servidão, quais os interesses não confessados que estão por trás movendo um processo de higienização e de racismo estrutural? Estando as famílias vivendo há mais de 50 anos no centro da cidade de Ibirité, é óbvio que o valor econômico dos terrenos ocupados valorizou muito. A comunidade do Jd. Ibirité está diante do Estádio Municipal da cidade. Há interesse em apropriar do quarteirão onde foram demolidas 21 casas para ampliar a área de estacionamento do Estádio? O famigerado Rodoanel da Região Metropolitana de Belo Horizonte, melhor dizendo, Rodominério, caso seja construído, passará próximo da área ou poderá inclusive passar na área? A Vale S/A e a MRS têm interesse em construir um terminal de carregamento de minério na área? Ou o interesse é apropriar-se de todo o quarteirão, de 40 a 50.000m2, para repassar para uma construtora fazer no local prédios? Ou ...?

Trata, sim, de racismo estrutural, porque nas cidades onde milhares de famílias estão sob processos de despejo por estarem na beira da ferrovia, existem também na margem da ferrovia clubes, casarões, prédios privados e públicos, sede e galpões de empresas, casas luxuosas. Em Ibirité a prefeitura, o Fórum e um shopping estão a poucos metros da ferrovia. Entretanto, ameaçados de despejo estão apenas famílias empobrecidas. Isto é racismo estrutural, inadmissível, violação de direitos humanos fundamentais.

          Importante mencionar ainda que em recente decisão - 31/10/2022 -, Ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou e o Plenário do STF referendou que os tribunais estaduais e federais instalem Comissões de Conflitos Fundiários para mediar e conciliar em eventuais despejos, antes de qualquer decisão judicial. Deixa claro, também, que além das decisões judiciais, quaisquer medidas administrativas que resultem em remoções devem ser avisadas previamente, as comunidades afetadas devem ser ouvidas, com prazo razoável para a desocupação e com medidas para resguardo do direito à moradia, proibindo em qualquer situação a separação de integrantes de uma mesma família.

          O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), nos termos da Portaria-Conjunta nº 1.428/PR/2022, instituiu a Comissão de Conflitos Fundiários no âmbito do TJMG, sobre a qual destacamos: “... São atribuições da Comissão de Conflitos Fundiários: I - servir de apoio operacional aos magistrados competentes para julgamento de ações dessa natureza; II - mediar conflitos fundiários de natureza coletiva, rurais e urbanos, de modo a evitar o uso de força pública no cumprimento de mandados de reintegração de posse ou de despejo e restabelecer o diálogo entre as partes, atuando sempre de forma auxiliar o juízo onde tramita a ação correspondente…”

No laudo geológico geotécnico imparcial se demonstra com fotos de voos de drone: “Não há nas paredes das moradias, isto é, de todas as moradias e nos respectivos muros divisórios, qualquer comprometimento das estruturas. Não há também nos terrenos das propriedades qualquer indício de instabilidade, isto é, não há qualquer indício de ruptura, indício de movimento de massa ou rastejo.”

O laudo do geólogo Dr. Carlos von Sperling diz: “Sobre as moradias já demolidas pela MRS: A partir de uma análise comparativa, possibilitada entre moradias que ainda permanecem e moradias demolidas, ou seja: Por uma observação das condições estruturais das casas ainda não demolidas; Pelas condições geológicas uniformes que abrangem todas as áreas; Pelas condições geotécnicas, de solo silto areno argilosos, resultantes dos maciços granito-gnássicos, propiciando elevado ângulo de atrito; Pelas condições geométricas (construtivas) geomorfológicas, mostrando uma área plana, sobre a qual situam-se todas as edificações, e taludes de cortes de elevada inclinação. Conclui-se que a remoção dessas moradias obedeceu a critérios não técnicos, desconhecidos.”

No laudo geológico geotécnico consta ainda: “Os taludes já são estáveis há dezenas de anos, aliás, as moradias também já estão estabelecidas há dezenas de anos, não cabe a esse técnico (Carlos von Sperling Gieseke – Geólogo, com 50 anos de experiência) maiores contestações ou explicações técnicas quanto à necessidade dessas contenções.”

CONCLUSÕES FINAIS do laudo geológico geotécnico do geólogo Dr. Carlos von Sperling: “1. As moradias e as áreas não apresentam qualquer justificativa técnica, geológica/geotécnica, para uma demolição; 2. As Áreas de Servidão não foram ocupadas pelas atuais moradias; 3. Os atuais moradores foram prejudicados nas atuais circunstâncias socioambientais, impostas pelas demolições já executadas.”

Portanto, o despejo das quatro famílias do Jd. Ibirité, em Ibirité, MG, não pode acontecer, pois será tremendamente injusto.  Caso a empresa MRS continue insistindo nesta brutal violência, o processo precisa ir para a Comissão de Conflitos Fundiários do TJMG, para o CEJUSC (Central de Conciliação do TJMG) e continuar na Mesa de Negociação do Governo de Minas Gerais, que, aliás, já realizou Reunião Plenária virtual em regime de urgência, dia 28/12/22, e tratou deste gravíssimo conflito fundiário, urbano e social, que acabou com o Natal e virada de ano das famílias e de quem está lutando na defesa delas. 

É evidente que quase todas as 21 casas do Jd. Ibirité, demolidas pela MRS, estavam fora da faixa de domínio da MRS como estão as casas das quatro famílias que resistem. Ao lado das casas tem rua asfaltada, as famílias pagam conta de água (COPASA) e de energia (CEMIG) há várias décadas e pagam IPTU também. E tem contrato de compra e venda. Portanto, são casas e lotes sobre os quais as famílias têm o direito de regularização fundiária segundo a Lei 13.465 para a obtenção da escritura e do registro sobre casas e lotes que possuem há tantas décadas. Esperamos a participação do Governo Federal, agora com o presidente Lula, na resolução deste conflito de forma justa, ética e pacífica, conflito que envolve cerca de 40 mil famílias ao longo de mais de 1.200 Km de ferrovia em 40 cidades de Minas e do Espírito Santo. 

O caso de Ibirité, analisado acima, é um recorte de uma injustiça sistêmica e estrutural que está acontecendo em territórios em dezenas de cidades de Minas Gerais e certamente em centenas de cidades Brasil afora. É necessário fazer um mapeamento para identificar onde a MRS Logística S/A e Ferrovia Centro-Atlântica S/A estão criando conflitos fundiários, urbanos e sociais nos territórios em comunidades de vulnerabilidade social. Despejo, jamais! Respeito ao direito das famílias continuarem morando nas casas onde moram de 30 a 50 anos, SIM! Em casos em que se comprovar de forma cabal risco às famílias, exigimos reassentamento prévio e adequado em condições semelhantes ou melhores, como assegura o Estatuto das Cidades e Tratados Internacionais que tem o Brasil como signatário.

03/01/2023


Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - "Pressão infernal da MRS está nos adoecendo aqui no Jd. Ibirité, Ibirité/MG Não saímos nem mortos"


2 - Veja o terror que a MRS está pondo em dezenas de famílias em Ibirité/MG: "Vão acabar matando my mãe"


3 - Defesa Civil de Ibirité/MG e geólogo Dr. Carlos: "As casas do Jd. Ibirité não têm risco nem avaria"


4 - Geólogo Dr. Carlos von: "As casas do Jd. Ibirité em Ibirité/MG estão seguras sem risco geológico"


5 - Socorro! Olhe o massacre que a MRS está fazendo com crianças, mães e avós no Jd. Ibirité, Ibirité/MG


6 - "Pressão p nos despejar está adoecendo a gente. Aqui não tem risco". Fora, MRS do Jd. Ibirité, MG


7 - Quintais produtivos e casas sem risco, mas MRS já demoliu 21 casas. Resistem 4 no Jd. Ibirité, MG


8 - Mística indígena na luta contra despejo no Jd. Ibirité, Ibirité/MG. MRS demoliu 36 casas. Injustiça!


9 - Rede de Apoio às famílias do bairro Jd. Ibirité, Ibirité/MG, só cresce: Indígenas ... DESPEJO, NÃO!


10 - "Se precisar, virá 220 famílias da Ocupação Terra Prometida para evitar despejo no Jd. Ibirité, MG



[1] Universidade Federal de Minas Gerais.

[2] Defesa Civil de Ibirité/MG e geólogo Dr. Carlos: "As casas do Jd. Ibirité não têm risco nem avaria". Cf. vídeo no link https://www.youtube.com/watch?v=e94vqeTtSJY

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Teoria prática e prática teórica, em movimento: eis o caminho! Por frei Gilvander

 Teoria prática e prática teórica, em movimento: eis o caminho! Por frei Gilvander Moreira[1]

(Con)vivemos em meio a uma contradição social, fruto de uma organização social heterônoma e desigual, em uma sociedade capitalista que idolatra o mercado e a acumulação de capital à custa do sangue da maioria do povo. É praticamente impossível alguém existir na sociedade atual realmente conforme suas próprias determinações, sendo um anarquista radical, pois irá encontrar inúmeras barreiras impostas por outros que moldam e ditam o que se torna dominante.

Na luta pela terra, por território, por moradia e outros direitos socioambientais vários conceitos são constituídos pelos Sem Terra, Sem Teto, Indígenas, tais como: cumplicidade na luta, Sem Terra, Sem Teto, militante, lutador/a etc. Esses conceitos expressam a ‘fina flor’ da luta pela terra, por território e por moradia enquanto pedagogia emancipatória. ‘Cumplicidade na luta’ se refere à concepção segundo a qual o êxito ou o fracasso da luta depende de todos/as e não apenas das lideranças. Pela ‘cumplicidade na luta’ desenvolve-se a corresponsabilidade e a noção que diz “se mexer com qualquer Sem Terra, Sem Teto, Indígena, Quilombola etc., mexe comigo” ou a ideia de que as vitórias dependem da dedicação e do empenho de todas/os nas tarefas que lhe são designadas. “Sem Terra” se refere ao sem-terra que não é um mero expropriado e explorado, mas se tornou um sujeito protagonista na luta pela terra, aquele que defende nas lutas coletivas o seu direito à terra, mas nunca deixa de ser solidário com quem foi expropriado da terra e ainda não se engajou na luta por ela. Sem Teto, da mesma forma. ‘Militante’ se refere àquele/a para quem o sentido da vida não está apenas em participar do que foi instituído pela classe dominante mentora e reprodutora do sistema do capital, mas em transformar o que está aí como dado, revolucionando-o; é fazer a história com as próprias mãos. ‘Lutador/a’ se refere a quem está doando a própria vida na luta por direitos humanos fundamentais.

O engajamento dos sem-terra e dos sem-teto na luta pela terra e a perseverança na luta estão ligados diretamente ao tamanho e à qualidade do apoio e do acompanhamento recebido. As/os militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e muitos outros movimentos sociais, as/os agentes de pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o povo das ocupações sempre reconhecem que é graças ao apoio e acompanhamento experimentados como algo concreto que se mobilizam as pessoas para a luta coletiva por direitos e para a perseverança na luta.

Inspira-nos na reflexão teórica sobre luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana o pensador cubano Ovidio D’Angelo Hernández, que analisa a íntima relação existente entre autonomia integradora e transformação social, um desafio ético emancipatório da complexidade. Hernández advoga a construção de uma autonomia integradora, que é diferente de autonomia segundo o iluminismo, pois não se trata apenas de esclarecimento de consciência. Hernández delineia uma práxis teórica emancipatória latino-americana que passa pela pesquisa-ação participativa como método e inclui a articulação entre os processos micro e macro de transformação social. Busca-se integrar saberes buscando a construção de um pensamento alternativo ao pensamento único colonizador e neoliberal. Hernández faz distinção entre transformação e autotransformação social, o que é enfatizado pelo papel proativo e autorreferente dos próprios sujeitos sociais.

Na América Afro-Latíndia estamos diante da emergência de novas epistemes, novas formas de conhecimento, tais como as que são exercitadas na Filosofia da Libertação, na Teologia da Libertação, na Pedagogia da Libertação e em muitos outros conhecimentos que são construídos com base na luta coletiva dos/as injustiçados/as. A pedagogia de emancipação humana, por exemplo, aposta na educação popular como uma ferramenta fundamental de transformação social e cultural. Isso é feito muito mais fora da escola do que na escola, mais nas lutas coletivas pela terra, por território, por moradia e por todos os outros direitos sociais do que em processos de educação formal que “se parece mais com uma forma de adestramento, disciplinarização, treinamento e docilização dos indivíduos, do que como meio de transformação e de revolução social”, afirma Paulino José Orso (ORSO, 2008, p. 51).

Para a pedagogia de emancipação humana não há separação entre teoria e prática, mas há teoria prática e prática teórica, em movimento, na contradição e na dialógica. Da mesma forma que não faz sentido separar o jovem Marx do velho Marx, o primeiro e o segundo Foucault, ou os diversos momentos da obra de Paulo Freire, devemos olhar a obra dos/as pensadores/as no seu conjunto e interpretá-la à luz das intenções fundamentais, dentro do movimento dialético e contraditório da realidade.

Para Ovídeo Hernández o conceito ‘conscientização’ “designa un proceso de acción cultural y sociopolítica en el que se involucran hombres y mujeres “para transformar la realidad y transformarse a si mismos” [...], se trata – según palabras de Freire en su libro Acción cultural para la libertad – de un proceso continuo que implica una praxis, en el sentido de la relación dialéctica entre acción y reflexión [...] que implica una inserción crítica en la historia (HERNÁNDEZ, 2005, p. 17).

Portanto, no próximo período desafiador para o povo brasileiro, urge aprimorarmos compromisso com as lutas sociotransformadoras articulando de forma emancipatória teoria prática e prática teórica, em movimento, na contradição e na dialógica. Eis o caminho para fazermos a história com nossas próprias mãos.

 

Referência

HERNÁNDEZ, Ovidio S. D’Angelo. Autonomía integradora y transformación social: El desafío ético emancipatorio de la complejidadLa Habana: Publicaciones Acuario Centro Félix Varela, 2005.

SANTOS, Ariovaldo. Mundialização, educação e emancipação humana. In: ORSO, Paulino José; GONÇALVES, Sebastião Rodrigues; MATTOS, Valci Maria (Orgs.). Educação e lutas de classes. São Paulo: Expressão Popular, p. 39-47, 2008.

29/12/2022

 Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Frei Carlos Mesters: CF/22 -Fraternidade e Educação. “Fala com sabedoria, ensina com amor”(Pr 31,26)

2 - “Arborizemos nosso ambiente! Educação ambiental e práxis ecológica” (Rosimeire Maria, de Arinos, MG)

3 - Frei Gilvander no Ato Interreligioso da Educação. Educação que liberta. Sind-UTE/MG, BH/MG - Vídeo 2

4 - Ato Interreligioso da Educação: Valorização e Educação que liberta e humaniza. Sind-UTE/MG, BH

5 - Frei Gilvander X Seguranças da Vale S/A e Educação Indígena Xukuru-Kariri, em Brumadinho/MG. Vídeo 7

6 - P.A Terra Prometida do MST em Felisburgo/MG produz alimentos saudáveis e Educação do Campo. Vídeo 3

7 - Frei Gilvander apoia greve dos trabalhadores e trabalhadoras em Educação de Betim, MG 12 2 2020


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Educação para prática de libertação. Por frei Gilvander

 Educação para prática de libertação. Por frei Gilvander Moreira[1]

Legenda: Movimentos Sociais de luta pela terra de Alagoas realizam a Jornada de Luta em Defesa da Reforma Agrária, contra a fome e a miséria, em Maceió, dia 25/07/2022. Foto: Gustavo Marinho

Em 1967, sob as agruras dos Anos de Chumbo da ditadura militar-civil-empresarial no Brasil, diante do terror do autoritarismo político que exilava, reprimia, torturava e matava os “cérebros da sociedade”, Paulo Freire escreve Educação como prática da liberdade. Apaixonado pelo potencial transformador do ser humano e indignado com todo e qualquer tipo de opressão, Freire advoga que a educação precisa ser prática de liberdade e de libertação. Passados cinquenta e cinco anos, a classe trabalhadora e o campesinato continuam sob uma brutal superexploração econômica, política e social. A liberdade preconizada pelo sistema do capital é palavra vazia, liberdade abstrata. Há grades invisíveis por todo lado nos transpassando, inclusive. Controle que beneficia quem está no poder econômico e político é o que não falta. A mãe terra continua em cativeiro. Os dados do Censo Agropecuário 2006 já demonstravam essa superexploração econômica: 1% dos imóveis rurais com mais de mil hectares ocupando 43% do território brasileiro, enquanto 47% dos imóveis com menos de 10 hectares ocupando apenas 2,7% do território. As propriedades do agronegócio, 16% das propriedades, ocupando 76% de área e gerando apenas 26% de mão de obra (trabalho), enquanto 84% das pequenas propriedades de até 200 hectares da Agricultura Familiar em apenas 24% de área gerando 74% de mão de obra (trabalho) e produzindo 70% dos alimentos que chegam à mesa do povo brasileiro. Dados que demonstram que a agricultura familiar é a que mais produz alimentos e a que mais gera emprego. O agronegócio em monoculturas com tecnologia de ponta gera desempregado. Estes dados mostram concentração fundiária reproduzindo injustiça agrária. Pior é que nas últimas décadas tem acontecido crescimento da concentração fundiária. Por exemplo, conforme o Cadastro do INCRA, entre 2003 a 2010, as pequenas propriedades foram reduzidas de 27% para 23,70%, as médias propriedades, de 21,10% para 19,9%, enquanto as grandes propriedades (latifúndios) cresceram de 51,3% para 55,8%.

Essa injustiça econômica tem sido sustentada e fomentada pelo Estado brasileiro através do financiamento ao agronegócio e sufocamento da agricultura familiar camponesa. “Segundo o Censo Agropecuário (2006), a agricultura familiar utiliza apenas 14% do crédito disponibilizado pelos bancos, embora, seja responsável por 70% dos alimentos que vão para a mesa do brasileiro, enquanto que o agronegócio utiliza 86% do total desse crédito, e 70/% do que produzem destinam-se à exportação (commodities)” (LUCAS; VALE, 2014, p. 8).

Nesse contexto de brutal desigualdade socioeconômica, uma educação política emancipatória torna-se uma necessidade. Criada por Dermeval Saviani, “no início dos anos de 1980”, a pedagogia histórico-crítica (SAVIANI: 2013, p. XV) parte do pressuposto de que é viável, mesmo em uma sociedade capitalista, “uma educação que não seja, necessariamente, reprodutora da situação vigente, e sim adequada aos interesses da maioria, aos interesses daquele grande contingente da sociedade brasileira, explorado pela classe dominante” (SAVIANI, 1991, p. 94). Entretanto, educação não se dá apenas no sentido restrito do que ocorre nas escolas que, em uma sociedade de classes antagônicas, pode desvelar – provocar emancipação - ou encobrir o sentido real – fetichizar a realidade - das relações sociais capitalistas. Urge compreender o caráter amplo da educação “entendida como aprendizado pelo qual o ser social incorpora certos conhecimentos que lhe permitem compreender e agir sobre a realidade que o cerca, é um ato que marca a própria materialidade do homem” (SANTOS, 2008, p. 39) como uma “dimensão ineliminável, indissociável do ser” (SANTOS, 2008, p. 40). Para se reproduzir uma sociedade capitalista renova continuamente todos os meios de produção e, com ele, todas as relações sociais. “Se o capital precisa subordinar todas as forças sociais existentes com o intuito de convertê-las em elementos propulsores da sociedade regida pela lógica da produção de mercadorias, emerge como desdobramento necessário que o complexo educativo deve, necessariamente, ser direcionado e potencializado por meio de mecanismos específicos e dentro de espaços que guardem suas especificidades” (SANTOS, 2008, p. 43).

Nessa engrenagem não há educação neutra ou imparcial no capitalismo, pois o sistema educacional formal cumprirá, salvo exceções, a missão de disseminar e repassar os conhecimentos que viabilizam a reprodução do sistema do capital. Para ser emancipatória a educação precisa ser para além do capital, conforme defende István Mészáros (2007) no texto A Educação para além do capital.

No livro Pedagogia Histórico-Crítica: Primeiras AproximaçõesDermeval Saviani evidencia uma grande divisão: de um lado, as teorias pedagógicas críticas; de outro lado, as teorias pedagógicas não críticas. Para ele, uma teoria pedagógica é crítica se “leva em conta os determinantes sociais da educação” (SAVIANI, 1991, p. 93); é não crítica se “acredita […] ter a educação o poder de determinar as relações sociais, gozando de uma autonomia plena em relação à estrutura social” (SAVIANI, 1991, p. 93). Saviani enfatiza que “faz-se necessário retomar o discurso crítico que se empenha em explicitar as relações entre a educação e seus condicionamentos sociais, evidenciando a determinação recíproca entre a prática social e a prática educativa” (SAVIANI, 2013, p. XVI). Tendo como guia o conceito de “modo de produção”, Saviani, na pedagogia histórico-crítica, busca “explicitar como as mudanças das formas de produção da existência humana foram gerando historicamente novas formas de educação, as quais, por sua vez, exerceram influxo sobre o processo de transformação do modo de produção correspondente” (SAVIANI, 2013, p. 2).

Em 16 de julho de 1969, Theodor Adorno esteve pela última vez na Rádio de Frankfurt e concedeu sua 8ª e última conferência naquela rádio, intitulada “Educação e emancipação”, que passou a ser o título do livro que contém as oito conferências apresentadas na rádio (ADORNO, 1995). Adorno se esforçava teoricamente para fortalecer uma educação política para a contestação e a resistência, buscando a construção de uma democracia como uma sociedade em processo constante de emancipação. “A exigência de emancipação parece ser evidente numa democracia” (ADORNO, 1995, p. 169).

Portanto, é fundamental que a educação seja trabalhada como instrumento de libertação dos seres humanos da condição de oprimidos e contribua para sua emancipação na sociedade como forças transformadoras, críticas, politizadas e responsáveis por todas as pessoas que a integram, com respeito aos seus direitos fundamentais, à sua dignidade, construindo o bem comum na nossa única Casa Comum, o planeta Terra.

Referência

ADORNO, Theodor Wiesengrund. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

LUCAS, Kelson Serafini; VALE, Ana Rute do. Assentamento Primeiro do Sul: passado de luta, presente de resistência e futuro de incertezas, p. 7-22. In: Geografia Ensino & Pesquisa, v. 18, n.1, jan./abr./2014. Disponível em file:///C:/Users/GILVANDER/Downloads/7417-64941-1-PB%20(2).pdf

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. In: MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo do século XXI. São Paulo: Boitempo, p. 195-223, 2007.

SANTOS, Ariovaldo. Mundialização, educação e emancipação humana. In: ORSO, Paulino José; GONÇALVES, Sebastião Rodrigues; MATTOS, Valci Maria (Orgs.). Educação e lutas de classes. São Paulo: Expressão Popular, p. 39-47, 2008.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11ª edição revista. Campinas, SP: Autores Associados, 2013.

_____Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. São Paulo: Cortez Editora e Editora Autores Associados, 1991.

20/12/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - “Arborizemos nosso ambiente! Educação ambiental e práxis ecológica” (Rosimeire Maria, de Arinos, MG)

2 - Frei Gilvander no Ato Interreligioso da Educação. Educação que liberta. Sindute-MG, BH/MG - Vídeo 2

3 - Ato Interreligioso da Educação: Valorização e Educação que liberta e humaniza. Sindute-MG, BH

4 - Frei Gilvander X Seguranças da Vale S/A e Educação Indígena Xukuru-Kariri, em Brumadinho/MG. Vídeo 7

5 - P.A Terra Prometida do MST em Felisburgo/MG produz alimentos saudáveis e Educação do Campo. Vídeo 3

6 - Frei Gilvander apoia greve dos trabalhadores e trabalhadoras em Educação de Betim, MG 12 2 2020


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 7 - Frei Carlos Mesters: CF/22 -Fraternidade e Educação. “Fala com sabedoria, ensina com amor”(Pr 31,26)