Espiritualidade da Compaixão-misericórdia a partir do Evangelho de
Lucas.
Por frei Gilvander Luís Moreira[1]
Pensando no Ano da Misericórdia anunciado pelo papa
Francisco e também conectado aos clamores dos injustiçados, refletiremos aqui
sobre a Espiritualidade da Compaixão-misericórdia a partir do Evangelho de
Lucas.
O Evangelho de Lucas é boa notícia para todo o povo,
mas a partir dos injustiçados, em uma região fortemente marcada pela cultura
grega que justificava a divisão da sociedade entre intelectuais e trabalhadores
manuais. Estes eram obrigados a viver pobres e escravos e só obedeciam,
enquanto aqueles tinham o direito de ser ricos, livres e mandavam. As mulheres
eram submissas aos homens; viviam no mundo privado da casa (oikia). Os homens, machistas e patriarcais, consideravam as
mulheres como objetos, não eram vistas como deusas e nem tão pouco como
pessoas. Nada de participação ativa das mulheres. Nem na sociedade, nem nas
decisões familiares ou políticas (Lc 10,38‑42). O episódio do encontro de Jesus
com Marta e Maria revela que Marta é o protótipo da mulher na cultura grega.
Inteiramente absorvida pelas preocupações domésticas (Lc 10,40), não se
importando em exercer sua cidadania. Maria participa do mundo público exercendo
sua cidadania ao se relacionar com Jesus cara‑a‑cara como pessoa (Lc 10,39).
Importante observar que Jesus confirma o jeito de ser de Maria ao afirmar:
“Maria escolheu a melhor parte...” (Lc 10,42). Assim Jesus ajuda muito as
mulheres a romperem com o patriarcalismo e com o machismo reinante na
sociedade.
A mentalidade grega justificava a existência de
classes na sociedade como algo normal. Logo era proibido tacitamente contestar
o machismo, a escravidão (tida como natural pelo filósofo Aristóteles), a
exploração, a divisão entre ricos e pobres. O importante era ser sabido (e não
sábio), ter conhecimento teórico. A prática era algo secundário e coisa de
escravo. O Império Romano soube usar muito bem a mentalidade grega para
“perpetuar” a sua dominação, pois a cultura grega incentivava as pessoas a
esquecerem a realidade, conformar‑se dentro de estruturas sociais injustas e
buscar consolo em outros mundos.
O Evangelho de Lucas ataca como cupim a espinha dorsal
da cultura grega e do Império Romano. Mas o Jesus apresentado por Lucas não vem
com um contra‑poder medir forças. Não confronta um poder econômico‑político‑cultural
e militar com outro poder. A proposta é infiltração como regra e confrontação
como exceção. Infiltrar, sempre; confrontar, às vezes. Isto se dá na
radicalização de uma Espiritualidade da Compaixão‑misericórdia. As ações,
comportamento e ensinamento de Jesus renovam as pessoas integralmente por
dentro e por fora e modificam o meio revolucionando as relações sócio‑político‑econômico‑cultural‑religiosas.
Jesus propõe pelo testemunho, não impõe pelo discurso. Deixa que a pessoa
responda livremente ao convite para segui‑lo (Lc 4,38‑39). Assim Jesus e seus
discípulos(as) vão cativando e irradiando bondade por onde passam.
No Evangelho de Lucas, no grego, há
quatro termos para expressar o campo semântico da Compaixão‑misericórdia: 1) Esplangnísthè; 2) Oiktirmones; 3) Éleos; 4) Ilásteti. As traduções portuguesas variam muito. Identificam
normalmente Compaixão, Misericórdia, Piedade, Bondade ...
1) As Palavras gregas e seus significados.
1.1) Esplangnisthe (ou Splanchnizomai) ocorre
três vezes em Lucas: Lc 7,13; 10,33 e 15,20. São textos exclusivos de Lucas.
Não constam dos outros Evangelhos canônicos. Revelam características
específicas de Lucas. A melhor tradução para esplangnísthè é Compaixão. Trata‑se de um substantivo! Denota uma
realidade física muito humana. Significa o movimento das entranhas humanas
(vísceras, ventre, coração,...) causado pela dor do outro ao ser visto. É um
revolver das entranhas humanas. É sofrer com, sentir com. É se comover
interiormente pela dor do outro. É ficar sensibilizado e afetado pela dor do
outro. O sofrimento do outro me contagia e eu passo a sentir com o outro.
Psicologicamente compaixão é atender o outro, envolver‑se com o que sofre e
assumir com ele a sua dor. É dirigir a minha atenção à pessoa que clama por
Misericórdia. É fazer da pessoa, no momento, o absoluto da vida de modo que ela
se sinta acolhida, valorizada, compreendida e envolvida. A sede da compaixão
para a mãe está no seio materno, nas entranhas (IRs 3,26). Para o pai está no
coração (Gn 43,30). A porta de entrada da compaixão no nosso corpo é a visão,
via de regra, ou então a audição. É pelo olhar, prioritariamente, ou pelo ouvir
que a dor do outro flui para dentro da gente fazendo nossas entranhas e todo o
nosso corpo tremer, sentir calafrio, revolver‑se. A compaixão irradia das
entranhas humanas (ventre, vísceras, coração) se espalhando por todo o corpo,
como uma pedrinha jogada no meio do lago vai repercutindo até às extremidades
do corpo. O coração dói, os olhos choram, a cabeça se indigna, todo o corpo
treme e daí brota o convite à fidelidade. A compaixão é como um vulcão que vai sacudindo
por dentro e nos chacoalhando até irromper nas mãos e nos pés com convite para
ações solidárias. “A estrutura da Compaixão consiste em que o sofrimento alheio
se interioriza na pessoa ao ser visto; este sofrimento interiorizado gera uma
re‑ação (ação, portanto)”[2]. A compaixão está não só no princípio
da ação humana, mas acompanha toda a ação humana e deixa marcas indeléveis na
pessoa que se deixa guiar pelo outro sofredor. Sendo fiel à dor do outro, com
solidariedade, a Misericórdia está efetivada.
1.2) Oiktirmones é um termo semelhante a esplangnísthè.
É um adjetivo. A melhor tradução é misericordioso. Ocorre uma única vez em
Lucas: Lc 6,36.
1.3) Éleos aparece 10
vezes no Evangelho de Lucas: Lc 1,50.54.58.72.78; 10,37; 16,24; 17,13;
18,38.39. É um termo mais teológico, é uma visão de fé. É mais amplo que esplangná. É compaixão e fidelidade. Não
é apenas se comover, mas é também se fazer solidário. É ser fiel ao clamor por
compaixão. É amor misericordioso. É amor fiel e gratuito de Deus. É acolher o
outro sofredor. A compaixão (esplangnísthè)
é a porta de entrada da casa da misericórdia (éleos). Só consegue ser misericordioso, ou seja, ser solidário e
fraterno, quem se deixa contagiar pela compaixão. Só um compassivo pode ser
misericordioso. Logo para ser discípulo/a de Jesus de Nazaré e do seu Evangelho
é preciso ter a coragem de contemplar cara‑a‑cara o outro sofredor. Quem desvia
o olhar do outro que está sofrendo não se comove. Quem racionaliza ao deparar‑se
com uma vítima apresentando justificativas teóricas que são, na verdade, “bodes
expiatórios”, não se comove também. Não se comovendo, não poderá ser
misericordioso. Porém, todo misericordioso é compassivo, mas nem todo
compassivo é misericordioso, pois há pessoas que se comovem ao ver o
outro sofrendo, mas não dão o passo adiante: fazer‑se fiel ao clamor por misericórdia.
“Misericórdia é uma ação, mais
exatamente, uma re‑ação frente ao sofrimento alheio interiorizado, que chegou
até às entranhas e o coração próprios. Esta reação é motivada exclusivamente
por esse sofrimento. O sofrimento alheio interiorizado ‑ compaixão ‑ é o
princípio da reação da Misericórdia. Esta se converte no princípio configurador
de toda a ação de Deus, porque não está só na origem, mas permanece como
constante fundamental em todo o Antigo Testamento (a parcialidade de Deus para
com as vítimas pelo mero fato de serem vítimas, a ativa defesa que faz das
vítimas e seu desígnio libertador para com elas”[3]. Éleos
aparece muito na Septuaginta (LXX). Traduz, quase sempre, o termo hebraico hesed que aparece centenas de vezes no Primeiro
Testamento bíblico, sobretudo nos Salmos (127 vezes). Hesed indica o compromisso de Deus dentro da Aliança com o povo. É
um termo central na aliança entre Deus e o povo. Na compaixão‑misericórdia de
Jesus revela‑se o Hesed de Deus. “Hesed” indica uma profunda atitude de
bondade. “Quando esta disposição se estabelece entre duas pessoas, estas
passam a ser, não somente benévolas uma para com a outra, mas ao mesmo tempo,
reciprocamente fiéis por força de um compromisso interior, portanto também em
virtude de uma fidelidade para consigo próprias”[4] A Bíblia de Jerusalém traduz éleos por
Misericórdia.
1.4) Ilásteti aparece uma vez no Evangelho de Lucas: Lc 18,13 na boca do publicano. É
o imperativo do verbo (H)ilaskesthai.
A palavra grega, normalmente traduzida por:
“Tem piedade ou seja propício!” Quer dizer: Seja propício para comigo! Ou
seja, tire de mim aquilo que me impede de relacionar com você, meu Deus! Ou
seja, a pessoa que clama por (H)ilásmos
sente que quebrou a aliança com Deus, que não está amando como é amada e
reconhece‑se incapaz de restabelecer a aliança com Deus. Sente que a aliança
foi quebrada e somente por iniciativa de Deus pode ser restabelecida. É um
termo com conotação jurídica que visa através de um rito de propiciação
restabelecer a comunicação com Deus. Quem clama por (H)ilásmos reconhece que Deus é bondoso, misericordioso, maior que
nossa fragilidade. Deus é miseriordiosíssimo. Deus é éleos, (misericórdia) e, por isso, podemos clamar por (H)ilásmos.
2) As Palavras gregas nas frases.
2.1) O termo Esplangnisthe aparece três vezes no Evangelho de Lucas, em passagens exclusivas do
terceiro evangelho. Demonstram características específicas de Lucas.
l) Em Lc 7,13 diz que Jesus ao
ver a viúva de Naim no enterro do seu único filho: “ ... ficou comovido...
ou “ ... ficou cheio de íntima compaixão”. Esta é a única frase do Evangelho
aonde Lucas diz explicitamente que Jesus “ficou cheio de íntima compaixão”.
2) Em Lc 10,33
onde diz que um samaritano, ao se
aproximar de uma pessoa despojada, espancada e caída à margem da
estrada: “...viu‑o e moveu‑se de compaixão”. Aqui o compassivo não é Jesus, mas
um samaritano.
3) Em Lc 15,20
onde, na parábola do Pai misericordioso, diz que o Pai ao ver de longe o filho que retornava à casa paterna: “.. viu‑o e
encheu‑se de Compaixão”. Nos três termos aparecem a compaixão a partir de um
contato quase físico. É pelo ver que
se desperta a compaixão.
2.2) O termo Éleos como substantivo ocorre seis
vezes no Evangelho de Lucas:
l) Em Lc 1,50: “A sua misericórdia
(éleos) perdura de geração em geração”.
2) Em Lc 1,54: “Socorreu Israel,
seu servo, lembrando de sua Misericórdia (éleos)”.
3) Em Lc 1,58,
onde o nascimento de João Batista é visto pelos vizinhos e parentes como fruto
da misericórdia (éleos) de Deus para com Isabel. Duas vezes ocorre no cântico de
Zacarias.
4) Em Lc 1,72, o
nascimento de João Batista é celebrado como: “... para fazer Misericórdia (éleos) com nossos pais” e para cumprir a
aliança feita com o povo. Deus, por ser misericordioso, fez a aliança com o
povo e, por ser misericordioso, permanece fiel à aliança contribuindo para com
a libertação-salvação de todos.
5) Em Lc 1,78, os
termos éleos e esplangná aparecem combinados. Aí “graça ao misericordioso coração
(entranhas do nosso Deus), João Batista é profeta para “preparar os caminhos do Senhor”(Lc 3,4). Nestes cinco casos, o
termo éleos se refere a Deus. Fazem
reminiscência do termo hebraico hesed
do Primeiro Testamento. Revelam que o Deus misericordioso do Primeiro
Testamento continua agindo no Segundo Testamento.
6) Em Lc 10,37,
no arremate da parábola do bom samaritano, o termo éleos aparece combinado com
o termo grego poiésas (verbo fazer no
pretérito perfeito do indicativo). Jesus, após contar a parábola do bom samaritano,
pergunta ao escriba: “ ‑ Qual dos três, ... se tornou o próximo do homem que
caiu nas mãos dos assaltantes? “ O escriba responde: “ ‑ Aquele que fez (poiésas) misericórdia (éleos) para com ele.”
No começo, o samaritano teve compaixão (esplangnísthè), mas no final do
episódio, Jesus não pergunta: Quem teve compaixão? Mas: “Quem fez Misericórdia (poiésas e éleos)?” (Lc 10,37). Compaixão só
é insuficiente! É necessário misericórdia. Não basta se comover interiorizando
o sofrimento alheio! É preciso exercer a solidariedade libertadora e
emancipatória, não como cumprimento de um dever, ou de uma norma; mas como consequência
espontânea da comoção que desperta o amor gratuitamente.
2.2.1)
O termo éleos como verbo aparece
quatro vezes no Evangelho de Lucas:
l) Em Lc 16,24, onde diz que morreu um rico granfino que se banqueteava
cotidianamente. Na mansão dos mortos, atormentado, vê Abraão, e, no seu seio,
Lázaro, o pobre leproso, e exclama: “Pai
Abraão, tem compaixão de mim!” Ou seja, “compadece‑te de mim!” Aqui o insensível quando cai em sofrimento e
ao ver outro sofredor reconhece a sua condição de frágil e clama por misericórdia
(éleos).
2) Em Lc 17,13,
onde diz que dez leprosos vêm ao encontro de Jesus e clamam: “Jesus, mestre, tem compaixão de nós!”.
3) Em Lc 18,38,
onde diz que um cegado, em situação de rua em Jericó, ao ouvir que Jesus passava perto dele pôs‑se a gritar: “Jesus, Filho de Davi, tem compaixão (éleos)
de mim!”
4) Em Lc 18,39,
onde diz que o cegado sendo silenciado gritava mais alto ainda: “Filho de Davi, tem compaixão de nós!”
Nestes casos, exceto Lc 16,24, são os injustiçados
(cegados em situação de rua, leprosos ...) que clamam a Jesus por misericórdia.
Interessante é que os sofredores não clamam por compaixão (esplangnísthè), mas por misericórdia (éleos). Os sofredores e injustiçados não
querem que os outros fiquem apenas comovidos, sensibilizados, pela dor deles,
mas esperam que os outros deem um passo adiante: que sejam misericordiosos. Ou
seja, que pratiquem a misericórdia exercendo solidariedade libertadora, não a
que acomoda e tranquiliza consciência. A maior esperança dos injustiçados é que
Jesus seja misericordioso para com eles e não apenas se comova com a dor deles.
2.3) O termo Oiktirmon(es) ocorre uma vez no singular e outra vez no plural no Evangelho de Lucas
em uma passagem exclusiva de Lucas. Em Lc 6,36 onde é usado para caracterizar a
fisionomia de Deus: “Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso”.
São as pessoas que se auto‑julgam, se condenando ou não, na medida em que
responde livremente ao projeto de Deus. Deus não julga, não condena, mas perdoa
e doa a si mesmo aos outros.
2.4) O termo Ilásteti aparece uma única vez no evangelho de Lucas. Em Lc 18,13 em uma parábola contada por Jesus com o objetivo de questionar os fariseus. Estes se consideravam justos e salvos, não ladrões, não adúlteros, não publicanos. Eram os separados. Parte do povo considerava os fariseus como modelos de piedade e como a realização desse ideal que haviam concebido os escribas, os homens da ciência divina. Segundo Flávio Josefo, os fariseus tinham fama de serem mais piedosos que os demais e de observar conscienciosamente a Lei (cf. Guerra Judia 1,1,110). Jejuavam duas vezes por semana (a Lei prescrevia jejuar um vez por ano); Eram dizimistas fiéis. Jesus mostra que a oração farisaica não vale. O publicano é apresentado como modelo. É humilde. Bate no peito dizendo: “Meu Deus, tem piedade (ilásteti) de mim, pecador”. Não se absolutiza e reconhece a verdadeira fisionomia de Deus: compaixão‑misericórdia. O publicano faz a caminhada difícil para o único lugar que realmente interessa: para dentro de nós mesmos. Por experienciar um Deus misericórdia neste mergulho em si mesmo e em Deus, o publicano se abre ao outro e clama: Piedade! Eis o caminho que uma Espiritualidade da Compaixão‑misericórdia apresenta para o nosso processo de humanização.
Referência.
JOÃO PAULO II. Encíclica Dives in Misericordia, de 30/11/1980, Doc. Pontifício n. 193.
SOBRIÑO, J., El Principio~Misericordia, Bajar de la cruz a los pueblos crucificados, col. “Presencia Teológica”, 67, Editorial Sal Terrae, Bilbao, España, 1992.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 06 de janeiro de 2016.
[1] Assessor da CPT, do CEBI, de CEBs e do SAB; doutorando em Educação na
FAE/UFMG. Esse texto aqui está publicado no Livreto “2016, ano da Misericórdia”.
São Paulo: Província Carmelitana de Santo Elias, 2016, p. 29-36. gilvanderlm@gmail.com – www.freigilvander.blogspot.com.br
Face: Gilvander Moreira