terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Espiritualidade da Compaixão-misericórdia a partir do Evangelho de Lucas. Por frei Gilvander Moreira

Espiritualidade da Compaixão-misericórdia a partir do Evangelho de Lucas.
Por frei Gilvander Luís Moreira[1]

Pensando no Ano da Misericórdia anunciado pelo papa Francisco e também conectado aos clamores dos injustiçados, refletiremos aqui sobre a Espiritualidade da Compaixão-misericórdia a partir do Evangelho de Lucas.
O Evangelho de Lucas é boa notícia para todo o povo, mas a partir dos injustiçados, em uma região fortemente marcada pela cultura grega que justificava a divisão da sociedade entre intelectuais e trabalhadores manuais. Estes eram obrigados a viver pobres e escravos e só obedeciam, enquanto aqueles tinham o direito de ser ricos, livres e mandavam. As mulheres eram submissas aos homens; viviam no mundo privado da casa (oikia). Os homens, machistas e patriarcais, consideravam as mulheres como objetos, não eram vistas como deusas e nem tão pouco como pessoas. Nada de participação ativa das mulheres. Nem na sociedade, nem nas decisões familiares ou políticas (Lc 10,38‑42). O episódio do encontro de Jesus com Marta e Maria revela que Marta é o protótipo da mulher na cultura grega. Inteiramente absorvida pelas preocupações domésticas (Lc 10,40), não se importando em exercer sua cidadania. Maria participa do mundo público exercendo sua cidadania ao se relacionar com Jesus cara‑a‑cara como pessoa (Lc 10,39). Importante observar que Jesus confirma o jeito de ser de Maria ao afirmar: “Maria escolheu a melhor parte...” (Lc 10,42). Assim Jesus ajuda muito as mulheres a romperem com o patriarcalismo e com o machismo reinante na sociedade.
A mentalidade grega justificava a existência de classes na sociedade como algo normal. Logo era proibido tacitamente contestar o machismo, a escravidão (tida como natural pelo filósofo Aristóteles), a exploração, a divisão entre ricos e pobres. O importante era ser sabido (e não sábio), ter conhecimento teórico. A prática era algo secundário e coisa de escravo. O Império Romano soube usar muito bem a mentalidade grega para “perpetuar” a sua dominação, pois a cultura grega incentivava as pessoas a esquecerem a realidade, conformar‑se dentro de estruturas sociais injustas e buscar consolo em outros mundos.
O Evangelho de Lucas ataca como cupim a espinha dorsal da cultura grega e do Império Romano. Mas o Jesus apresentado por Lucas não vem com um contra‑poder medir forças. Não confronta um poder econômico‑político‑cultural e militar com outro poder. A proposta é infiltração como regra e confrontação como exceção. Infiltrar, sempre; confrontar, às vezes. Isto se dá na radicalização de uma Espiritualidade da Compaixão‑misericórdia. As ações, comportamento e ensinamento de Jesus renovam as pessoas integralmente por dentro e por fora e modificam o meio revolucionando as relações sócio‑político‑econômico‑cultural‑religiosas. Jesus propõe pelo testemunho, não impõe pelo discurso. Deixa que a pessoa responda livremente ao convite para segui‑lo (Lc 4,38‑39). Assim Jesus e seus discípulos(as) vão cativando e irradiando bondade por onde passam.
No Evangelho de Lucas, no grego, há quatro termos para expressar o campo semântico da Compaixão‑misericórdia: 1) Esplangnísthè; 2) Oiktirmones; 3) Éleos; 4) Ilásteti. As traduções portuguesas variam muito. Identificam normalmente Compaixão, Misericórdia, Piedade, Bondade ...
1) As Palavras gregas e seus significados.
1.1) Esplangnisthe (ou Splanchnizomai) ocorre três vezes em Lucas: Lc 7,13; 10,33 e 15,20. São textos exclusivos de Lucas. Não constam dos outros Evangelhos canônicos. Revelam características específicas de Lucas. A melhor tradução para esplangnísthè é Compaixão. Trata‑se de um substantivo! Denota uma realidade física muito humana. Significa o movimento das entranhas humanas (vísceras, ventre, coração,...) causado pela dor do outro ao ser visto. É um revolver das entranhas humanas. É sofrer com, sentir com. É se comover interiormente pela dor do outro. É ficar sensibilizado e afetado pela dor do outro. O sofrimento do outro me contagia e eu passo a sentir com o outro. Psicologicamente compaixão é atender o outro, envolver‑se com o que sofre e assumir com ele a sua dor. É dirigir a minha atenção à pessoa que clama por Misericórdia. É fazer da pessoa, no momento, o absoluto da vida de modo que ela se sinta acolhida, valorizada, compreendida e envolvida. A sede da compaixão para a mãe está no seio materno, nas entranhas (IRs 3,26). Para o pai está no coração (Gn 43,30). A porta de entrada da compaixão no nosso corpo é a visão, via de regra, ou então a audição. É pelo olhar, prioritariamente, ou pelo ouvir que a dor do outro flui para dentro da gente fazendo nossas entranhas e todo o nosso corpo tremer, sentir calafrio, revolver‑se. A compaixão irradia das entranhas humanas (ventre, vísceras, coração) se espalhando por todo o corpo, como uma pedrinha jogada no meio do lago vai repercutindo até às extremidades do corpo. O coração dói, os olhos choram, a cabeça se indigna, todo o corpo treme e daí brota o convite à fidelidade. A compaixão é como um vulcão que vai sacudindo por dentro e nos chacoalhando até irromper nas mãos e nos pés com convite para ações solidárias. “A estrutura da Compaixão consiste em que o sofrimento alheio se interioriza na pessoa ao ser visto; este sofrimento interiorizado gera uma re‑ação (ação, portanto)”[2]. A compaixão está não só no princípio da ação humana, mas acompanha toda a ação humana e deixa marcas indeléveis na pessoa que se deixa guiar pelo outro sofredor. Sendo fiel à dor do outro, com solidariedade, a Misericórdia está efetivada.
1.2) Oiktirmones é um termo semelhante a esplangnísthè. É um adjetivo. A melhor tradução é misericordioso. Ocorre uma única vez em Lucas: Lc 6,36.
1.3) Éleos aparece 10 vezes no Evangelho de Lucas: Lc 1,50.54.58.72.78; 10,37; 16,24; 17,13; 18,38.39. É um termo mais teológico, é uma visão de fé. É mais amplo que esplangná. É compaixão e fidelidade. Não é apenas se comover, mas é também se fazer solidário. É ser fiel ao clamor por compaixão. É amor misericordioso. É amor fiel e gratuito de Deus. É acolher o outro sofredor. A compaixão (esplangnísthè) é a porta de entrada da casa da misericórdia (éleos). Só consegue ser misericordioso, ou seja, ser solidário e fraterno, quem se deixa contagiar pela compaixão. Só um compassivo pode ser misericordioso. Logo para ser discípulo/a de Jesus de Nazaré e do seu Evangelho é preciso ter a coragem de contemplar cara‑a‑cara o outro sofredor. Quem desvia o olhar do outro que está sofrendo não se comove. Quem racionaliza ao deparar‑se com uma vítima apresentando justificativas teóricas que são, na verdade, “bodes expiatórios”, não se comove também. Não se comovendo, não poderá ser misericordioso. Porém, todo misericordioso é compassivo, mas nem todo compassivo é misericordioso, pois há pessoas que se comovem ao ver o outro sofrendo, mas não dão o passo adiante: fazer‑se fiel ao clamor por misericórdia. “Misericórdia é uma ação, mais exatamente, uma re‑ação frente ao sofrimento alheio interiorizado, que chegou até às entranhas e o coração próprios. Esta reação é motivada exclusivamente por esse sofrimento. O sofrimento alheio interiorizado ‑ compaixão ‑ é o princípio da reação da Misericórdia. Esta se converte no princípio configurador de toda a ação de Deus, porque não está só na origem, mas permanece como constante fundamental em todo o Antigo Testamento (a parcialidade de Deus para com as vítimas pelo mero fato de serem vítimas, a ativa defesa que faz das vítimas e seu desígnio libertador para com elas”[3]. Éleos aparece muito na Septuaginta (LXX). Traduz, quase sempre, o termo hebraico hesed que aparece centenas de vezes no Primeiro Testamento bíblico, sobretudo nos Salmos (127 vezes). Hesed indica o compromisso de Deus dentro da Aliança com o povo. É um termo central na aliança entre Deus e o povo. Na compaixão‑misericórdia de Jesus revela‑se o Hesed de Deus. “Hesed” indica uma profunda atitude de bondade. “Quando esta disposição  se estabelece entre duas pessoas, estas passam a ser, não somente benévolas uma para com a outra, mas ao mesmo tempo, reciprocamente fiéis por força de um compromisso interior, portanto também em virtude de uma fidelidade para consigo próprias”[4] A Bíblia de Jerusalém traduz éleos por Misericórdia.
1.4) Ilásteti aparece uma vez no Evangelho de Lucas: Lc 18,13 na boca do publicano. É o imperativo do verbo (H)ilaskesthai. A palavra grega, normalmente traduzida por: “Tem piedade ou seja propício!” Quer dizer: Seja propício para comigo! Ou seja, tire de mim aquilo que me impede de relacionar com você, meu Deus! Ou seja, a pessoa que clama por (H)ilásmos sente que quebrou a aliança com Deus, que não está amando como é amada e reconhece‑se incapaz de restabelecer a aliança com Deus. Sente que a aliança foi quebrada e somente por iniciativa de Deus pode ser restabelecida. É um termo com conotação jurídica que visa através de um rito de propiciação restabelecer a comunicação com Deus. Quem clama por (H)ilásmos reconhece que Deus é bondoso, misericordioso, maior que nossa fragilidade. Deus é miseriordiosíssimo. Deus é éleos, (misericórdia) e, por isso, podemos clamar por (H)ilásmos.
2)      As Palavras gregas nas frases.
2.1) O termo Esplangnisthe aparece três vezes no Evangelho de Lucas, em passagens exclusivas do terceiro evangelho. Demonstram características específicas de Lucas.
l) Em Lc 7,13 diz que Jesus ao ver a viúva de Naim no enterro do seu único filho: “ ... ficou comovido... ou “ ... ficou cheio de íntima compaixão”. Esta é a única frase do Evangelho aonde Lucas diz explicitamente que Jesus “ficou cheio de íntima compaixão”.
2) Em Lc 10,33 onde diz que um samaritano, ao se aproximar de uma pessoa         despojada, espancada e caída à margem da estrada: “...viu‑o e moveu‑se de compaixão”. Aqui o compassivo não é Jesus, mas um samaritano.
3) Em Lc 15,20 onde, na parábola do Pai misericordioso, diz que o Pai ao ver de longe o filho que retornava à casa paterna: “.. viu‑o e encheu‑se de Compaixão”. Nos três termos aparecem a compaixão a partir de um contato quase físico. É pelo ver que se desperta a compaixão.

2.2) O termo Éleos como substantivo ocorre seis vezes no Evangelho de Lucas:
l) Em Lc 1,50: “A sua misericórdia (éleos) perdura de geração em geração”.
2) Em Lc 1,54: “Socorreu Israel, seu servo, lembrando de sua Misericórdia (éleos)”.
3) Em Lc 1,58, onde o nascimento de João Batista é visto pelos vizinhos e parentes como fruto da misericórdia (éleos) de Deus para com Isabel. Duas vezes ocorre no cântico de Zacarias.
4) Em Lc 1,72, o nascimento de João Batista é celebrado como: “... para fazer Misericórdia (éleos) com nossos pais” e para cumprir a aliança feita com o povo. Deus, por ser misericordioso, fez a aliança com o povo e, por ser misericordioso, permanece fiel à aliança contribuindo para com a libertação-salvação de todos.
5) Em Lc 1,78, os termos éleos e esplangná aparecem combinados. Aí “graça ao misericordioso coração (entranhas do nosso Deus), João Batista é profeta para “preparar os caminhos do Senhor”(Lc 3,4). Nestes cinco casos, o termo éleos se refere a Deus. Fazem reminiscência do termo hebraico hesed do Primeiro Testamento. Revelam que o Deus misericordioso do Primeiro Testamento continua agindo no Segundo Testamento.
6) Em Lc 10,37, no arremate da parábola do bom samaritano, o termo éleos aparece combinado com o termo grego poiésas (verbo fazer no pretérito perfeito do indicativo). Jesus, após contar a parábola do bom samaritano, pergunta ao escriba: “ ‑ Qual dos três, ... se tornou o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes? “ O escriba responde: “ ‑ Aquele que fez (poiésas) misericórdia (éleos) para com ele.”

No começo, o samaritano teve compaixão (esplangnísthè), mas no final do episódio, Jesus não pergunta: Quem teve compaixão? Mas: “Quem fez Misericórdia (poiésas e éleos)?” (Lc 10,37). Compaixão só é insuficiente! É necessário misericórdia. Não basta se comover interiorizando o sofrimento alheio! É preciso exercer a solidariedade libertadora e emancipatória, não como cumprimento de um dever, ou de uma norma; mas como consequência espontânea da comoção que desperta o amor gratuitamente.

2.2.1) O termo éleos como verbo aparece quatro vezes no Evangelho de Lucas:

l) Em Lc 16,24, onde diz que morreu um rico granfino que se banqueteava cotidianamente. Na mansão dos mortos, atormentado, vê Abraão, e, no seu seio, Lázaro, o pobre leproso, e exclama: “Pai Abraão, tem compaixão de mim!” Ou seja, “compadece‑te de mim!” Aqui o insensível quando cai em sofrimento e ao ver outro sofredor reconhece a sua condição de frágil e clama por misericórdia (éleos).
2) Em Lc 17,13, onde diz que dez leprosos vêm ao encontro de Jesus e clamam: “Jesus, mestre, tem compaixão de nós!”.
3) Em Lc 18,38, onde diz que um cegado, em situação de rua em Jericó, ao ouvir que Jesus passava perto dele pôs‑se a gritar: “Jesus, Filho de Davi, tem compaixão (éleos) de mim!”
4) Em Lc 18,39, onde diz que o cegado sendo silenciado gritava mais alto ainda: “Filho de Davi, tem compaixão de nós!”
Nestes casos, exceto Lc 16,24, são os injustiçados (cegados em situação de rua, leprosos ...) que clamam a Jesus por misericórdia. Interessante é que os sofredores não clamam por compaixão  (esplangnísthè), mas por misericórdia (éleos). Os sofredores e injustiçados não querem que os outros fiquem apenas comovidos, sensibilizados, pela dor deles, mas esperam que os outros deem um passo adiante: que sejam misericordiosos. Ou seja, que pratiquem a misericórdia exercendo solidariedade libertadora, não a que acomoda e tranquiliza consciência. A maior esperança dos injustiçados é que Jesus seja misericordioso para com eles e não apenas se comova com a dor deles.
2.3) O termo Oiktirmon(es) ocorre uma vez no singular e outra vez no plural no Evangelho de Lucas em uma passagem exclusiva de Lucas. Em Lc 6,36 onde é usado para caracterizar a fisionomia de Deus: “Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso”. São as pessoas que se auto‑julgam, se condenando ou não, na medida em que responde livremente ao projeto de Deus. Deus não julga, não condena, mas perdoa e doa a si mesmo aos outros.
2.4) O termo Ilásteti aparece uma única vez no evangelho de Lucas. Em Lc 18,13 em uma parábola contada por Jesus com o objetivo de questionar os fariseus. Estes se consideravam justos e salvos, não ladrões, não adúlteros, não publicanos. Eram os separados. Parte do povo considerava os fariseus como modelos de piedade e como a realização desse ideal que haviam concebido os escribas, os homens da ciência divina. Segundo Flávio Josefo, os fariseus tinham fama de serem mais piedosos que os demais e de observar conscienciosamente a Lei (cf. Guerra Judia 1,1,110). Jejuavam duas vezes por semana (a Lei prescrevia jejuar um vez por ano); Eram dizimistas fiéis. Jesus mostra que a oração farisaica não vale. O publicano é apresentado como modelo. É humilde. Bate no peito dizendo: “Meu Deus, tem piedade (ilásteti) de mim, pecador”. Não se absolutiza e reconhece a verdadeira fisionomia de Deus: compaixão‑misericórdia. O publicano faz a caminhada difícil para o único lugar que realmente interessa:  para dentro de nós mesmos. Por experienciar um Deus misericórdia neste mergulho em si mesmo e em Deus, o publicano se abre ao outro e clama: Piedade! Eis o caminho que uma Espiritualidade da Compaixão‑misericórdia apresenta para o nosso processo de humanização.
Referência.
JOÃO PAULO II. Encíclica Dives in Misericordia, de 30/11/1980, Doc. Pontifício n. 193.
SOBRIÑO, J., El Principio~Misericordia, Bajar de la cruz a los pueblos crucificados, col. “Presencia Teológica”, 67, Editorial Sal Terrae, Bilbao, España, 1992.

Belo Horizonte, MG, Brasil, 06 de janeiro de 2016.



[1] Assessor da CPT, do CEBI, de CEBs e do SAB; doutorando em Educação na FAE/UFMG. Esse texto aqui está publicado no Livreto “2016, ano da Misericórdia”. São Paulo: Província Carmelitana de Santo Elias, 2016, p. 29-36. gilvanderlm@gmail.comwww.freigilvander.blogspot.com.br Face: Gilvander Moreira
1  J. SOBRIÑO. El Principio~Misericordia, p. 26.
1  Ibidem, p. 33.
2  JOÃO PAULO II. Encíclica "Dives in Misericordia, de 30/11/1980, Doc. Pontifício n. 193, nota 52, p. 15.

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