PLATAFORMA DE TERRITÓRIOS TRADICIONAIS, FERRAMENTA PARA DEMARCAÇÃO! Por frei Gilvander Moreira[1]
Curso/Encontro em Brasília, na Escola Superior do Ministério Público da União. Foto: Reprodução do site do MPFEnquanto uma gigantesca nuvem de fumaça
tinha se formado e se mantinha na maior parte do Brasil[2],
adoecendo milhões de pessoas e com incêndios que incineram vivos milhões de
seres vivos, em uma realidade brutal que mostra o exaurimento do modelo de
sociedade capitalista, máquina brutal de moer vidas, barbárie que nos empurra
para o colapso final das condições de vida no planeta Terra, neste contexto, com
mais de 300 participantes, presencialmente e on-line, entre membros e
servidores do Ministério Público Federal (MPF), representantes do Poder Público
Federal e da sociedade civil, Movimentos Sociais, organizações
não-governamentais e professores/as de Universidades, dias 17, 18 e
Discutimos estratégias para consolidar e
ampliar uso da Plataforma de Territórios Tradicionais[3],
que é um portal na internet criado para acolher a autodeclaração de Povos e
Comunidades Tradicionais apresentando seus Territórios Tradicionais, inclusive.
Já que o Estado está sendo mais do que omisso e moroso, mas cúmplice de quem
não quer a demarcação dos Territórios Tradicionais, as Comunidades Tradicionais
podem e devem apresentar ao Estado, via autodeclaração seus Territórios
Tradicionais.
A Plataforma de Territórios Tradicionais
é fruto de parceria entre o MPF, a Agência de Cooperação Técnica Alemã (GIZ) e
o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), criado pelo
presidente Lula. Elaborada e alimentada pelos Povos e Comunidades Tradicionais,
a Plataforma utiliza o georreferenciamento para que as Comunidades registrem
seus modos de vida, histórias, demandas, ameaças territoriais e contribuições à
conservação da sociobiodiversidade. Ela também fornece um panorama da situação
fundiária desses Povos no Brasil, a fim de respaldar políticas e mecanismos
efetivos para a proteção dos territórios tradicionais. Atualmente, a Plataforma
conta com 357 territórios cadastrados, dos quais 208 já aprovados pelo Conselho
Gestor.
Se há o Cadastro Ambiental Rural (CAR),
que é feito por autodeclaração pelos proprietários de terra, por que não há um
autocadastro de Povos e Comunidades Tradicionais? Lançada em 2020, a Plataforma
de Territórios Tradicionais busca preencher esta lacuna no Estado brasileiro. Além
de usarem o Protocolo de Consulta, as Comunidades Tradicionais agora podem e
devem se autocadastrar na Plataforma de Territórios Tradicionais para dizerem
que existem e dar um passo importante na luta pela autodemarcação de seus
Territórios.
Dr. Wilson Rocha, do MPF, enfatizou: “O objetivo de nosso trabalho é que o Poder
Público se aproprie da Plataforma para conhecer e levar em conta os Territórios
não demarcados na condução de suas políticas públicas. Precisamos observar o
Enunciado 47, da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, que reconhece a
autodeclaração territorial, e trabalhar para aprimorar a governança fundiária
em nosso país no sentido de reconhecer a posse tradicional como um direito fundamental.”
No MPF, 6ª Câmara tem a missão de
defender os Povos Tradicionais. E 4ª Câmara do MPF tem a tarefa de cuidar e
defender as Unidades de Conservação. Os Povos e as Comunidades Tradicionais não
podem ser expulsos das Unidades de Conservação, primeiro porque estavam lá
muito antes da criação das Unidades de Conservação, segundo, porque não podemos
aceitar um ambientalismo que exclua o direito ancestral de posse que famílias
tradicionais exercem. Terceiro, a experiência demonstra que os Povos Tradicionais
são guardiões das florestas, do cerrado... e não podem ser arrancados de seus
espaços de vida históricos.
A Constituição Federal de 1988 prescreve
a demarcação de terras indígenas e o reconhecimento de terras quilombolas.[4] Na
velocidade atual, em passo de tartaruga, o Estado precisará de mais de 2.000
anos para demarcar (se demarcar!) os Territórios dos Povos e Comunidades
Tradicionais. Lideranças de Povos e Comunidades Tradicionais denunciam: “Não temos direito a Escola Indígena,
Quilombola, e a muitas outras políticas públicas, porque nossos Territórios não
foram ainda demarcados. Demarcar os Territórios é a reivindicação mãe que
viabiliza a conquista de muitos outros direitos.” Com um ano e nove meses
de governo Lula, somente dez Territórios Tradicionais foram demarcados.
O MPF abrigou o Projeto Territórios
Vivos que levou à construção da Plataforma para reforçar a luta dos Povos
Tradicionais com Territórios não demarcados. O Enunciado 47 da 6ª Câmara do MPF
estimula os procuradores do MPF a defender os direitos dos Povos Tradicionais. A
ex-Procuradora Geral da República Dra. Raquel Dodge, presente na abertura do
Curso/Encontro, diagnosticou: "Usando
instrumentos tradicionais não temos conseguido o Reconhecimento e a Demarcação
de Territórios dos Povos Tradicionais. Temos que arrumar novos instrumentos. A
criação da Plataforma de Territórios não demarcados inova nesta luta justa."
Os Povos estão cansados e perigosamente
correndo o risco de perderem seus Territórios não demarcados. Enquanto não
emanciparmos todas as pessoas e os Povos e Comunidades Tradicionais, que passa
necessariamente pela superação do aprisionamento da terra, pelo fim do
cativeiro da terra[5],
ou seja, acesso à terra a começar pelo campesinato e Povos e Comunidades
Tradicionais, a abolição de relações sociais escravocratas estará inconclusa.
A FUNAI nos últimos anos tem devolvido
dinheiro do seu orçamento, porque não consegue implementar várias políticas
públicas indígenas. Em 2016, os golpistas fizeram reformas estruturantes, entre
as quais a aprovação da Emenda Constitucional 95, que reduziu drasticamente o
orçamento para políticas públicas, acabou com a possibilidade de o Estado realizar
políticas públicas que beneficiem o povo. De 2019 a 2022, com a extrema direita
no Poder Executivo Federal, houve assédio institucional que desmontou a
estrutura do Estado. Há um imenso passivo a ser superado. Ledo engano esperar
que o governo federal vai conseguir reconstruir o que foi desmontado, pois está
manietado por um Congresso Nacional com ampla maioria de direita e de extrema
direita, ou seja, inimigos dos Povos.
A história da luta dos Povos Tradicionais
mostra o Estado violando os Territórios dos Povos com a implantação de Parques
nacionais e estaduais e outras grandes obras de interesse do capital. A Constituição
Federal (CF/88) determinou a criação de Unidades de Conservação ambiental. A
ideia de espaços vazios é um mito, viabiliza colonização do cerrado e da
Amazônia. A CF/88 precisa ser lida integralmente. Desde Luzia encontrada por
arqueólogos na Região Metropolitana de Belo Horizonte, com idade estimada de 11
mil anos, o bioma Cerrado tem sido ocupado por muitos Povos Tradicionais:
Sertanejos, Geraizeiros, Veredeiros, Groteiros, Pescadores, Vazanteiros,
Apanhadores de flores sempre-viva etc. A Amazônia sempre foi ocupada por Povos
Amazônidas Tradicionais. Nos Pampas, entre os Pampeiros estão há muitos séculos
pescadores artesanais, Povos Indígenas como os Guarani, Kaingang e Charrua etc.
No Pantanal vivem há
séculos os Pantaneiros em uma grande diversidade cultural. Na Caatinga estão os
catingueiros. Enfim, todos os Territórios sempre foram muito ocupados por
muitos povos Tradicionais.
Dia 7 de fevereiro de 2007, o presidente
Lula, pelo Decreto 6.040, instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais que incorpora a Convenção 169
da OIT[6]. A
Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais surge para viabilizar o
que prescreve o Decreto 6.040 e a Convenção 169. No Livro Comunidades imaginadas, de 1983, o pensador Benedict Richard
O'Gorman Anderson discute as diferenças entre Comunidades imaginadas,
idealizadas, e comunidades reais, onde as pessoas se conhecem mutuamente.
Os Povos e Comunidades Tradicionais
continuam padecendo de grande invisibilidade. Só os Quilombolas entraram no
censo do IBGE de 2022. A Plataforma de Territórios Tradicionais busca ampliar a
visibilidade e potencializar as lutas concretas pela demarcação de seus
territórios e os outros direitos. No Censo do IBGE, de 2022, em Belo Horizonte
e Região Metropolitana, 6.476 pessoas se autodeclararam INDÍGENAS, em contexto
urbano, desterritorializados.[7]
No Brasil, há um passado colonial
capitalista que insiste em se reproduzir. Grande problema do Brasil é que somos
um país sem memória. Deixar as pessoas invisíveis é ótimo para matá-las aos
poucos. Faz bem assistir ao filme História
de amor e fúria, do diretor Luiz Bolognesi, de 2013, com enredo que, mesclando ficção e
realidade, conta a história de um homem que está vivo há 600 anos no Brasil.
O protagonista passa por momentos marcantes da história do país, desde os
conflitos indígenas na época da invasão dos portugueses, passando pela Balaiada,
no Maranhão, pela ditadura militar de 1964 a 1985 e a guerra
pela água em um futuro não tão distante em 2096, podendo ser bem antes com
o avanço da Emergência Climática e dos Eventos Extremos.
Em uma sociedade capitalista com lógica
colonialista, a terra e o Território deixam de ser importantes. A idolatria da
vida em cidades mercantilizadas desenraiza as pessoas e as arranca do campo. Passa
a valer estudar e ser mão de obra para o mercado. Meu pai José Moreira de
Souza, sempre dizia diante de convites para deixar o campo e ir morar na
cidade: “Nasci na roça e na roça vou
morrer.” Com esta determinação, terminou seus dias aqui na Terra, na beira
do rio Claro, em Arinos, MG.
Plataforma de Territórios Tradicionais:
que beleza! A terra é matriz do poder. No sistema capitalista quem manda são as
grandes empresas transnacionais, tais como Nestlé, Bayer, Bradesco, Vale S A,
entre outras. A comida envenenada servida ao povo brasileiro com exagero de
agrotóxico e os enlatados estão gerando pessoas com ansiedade. Falta-nos a
alimentação de verdade dos Territórios Tradicionais. Comida de verdade era a
feita pela vovó a partir das hortas agroecológicas.
Precisamos de um novo mote de mobilização
de lutas concretas por direitos. A educação no Brasil tem que ser diversa, com
vários Ministérios da Educação e Cultura (MECs). A Corte Interamericana de
Direitos humanos fala em muitos julgados de Direitos Territoriais e não de
direito de propriedade. O poeta Olavo Bilac advertia: "Não se curve nem diante de seus pais".
Não se curve diante de quem ameaça seus direitos.
Sem Territórios, os Povos e Comunidades
Tradicionais não serão solução para frear as brutais mudanças climáticas. Os
custos socioambientais e os prejuízos dos grandes projetos do capital foram
sempre jogados sobre os Povos e a Natureza. Emitir título de propriedade
coletiva não é garantia jurídica. É preciso autodemarcação e soberania sobre o
Território.
A Procuradoria Geral da República afirma
no enunciado 47: "A autodeclaração é
legítima e gera direitos que devem ser respeitados". A posse
tradicional é imprescindível, é direito que precisa ter primazia sobre o
direito de propriedade.
Existem 45 milhões de terras públicas na
Amazônia que ainda não foram destinadas. Serão destinadas para quem? Para Povos
e Comunidades Tradicionais? O Governo Lula quer destinar 30 milhões de hectares
de terras públicas para Comunidades Tradicionais, seguindo a Lei de Florestas
Públicas, de 2006. Há terras públicas da União, estadual e privadas em
Territórios Tradicionais. Que se abra a matrícula para as Comunidades
Tradicionais!
Identificar sítios arqueológicos ajuda a
proteger os Territórios Tradicionais. O IPHAN[8]
precisa se dedicar a identificar os sítios históricos e arqueológicos.
A ausência de demarcação é uma brutal
violência. A falta de reconhecimento e demarcação das terras dos Povos
tradicionais têm provocado o aumento de violência contra os legítimos donos dos
territórios. Existem de 500 lideranças populares em Programas de Proteção só no
programa nacional.
O jurista e advogado Carlos Marés aponta:
"A primeira consequência do direito
de existir é o direito à territorialidade." Os Povos Tradicionais
lutam pelos territórios para garantir o direito à territorialidade. A
autodefinição, autodeclaração é direito exclusivo dos Povos. Nenhum outro tem
poder para dizer se o povo existe ou não. Ninguém pode exigir critérios para
definir Povos. A autodeclaração dos Povos com seus Territórios é uma ótima
forma de fortalecer a conservação e a preservação dos territórios. A
autodeclaração é uma injunção e não uma alternativa. O Estado e a sociedade
devem reconhecer e pronto. Uma idosa quilombola: "Eu vou morrer sem vocês reconhecerem nosso Território? Nós já o autorreconhecemos."
Dra. Edelamare Melo, subprocuradora do
Ministério Público do Trabalho, presente no Curso/Encontro: "Temos que repensar a noção de trabalho, pois
trabalho escravo contemporâneo acontece não apenas em relação formal de
contrato, mas a negação do direito aos Territórios gera uma escravização dos
Povos e Comunidades Tradicionais."
De Povos extintos há também Territórios
Tradicionais não habitados que são sagrados, que devem ser preservados.
A cúpula do MPF precisa ser mais comprometida e dedicar um número maior de procuradores para defender os Povos e Comunidades Tradicionais. Não podem ser só 45 no Brasil, menos de dois por estado. Não pode continuar priorizando o criminal.
24/09/2024
Obs.: As videorreportagens no link,
abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 - Dr.
Wilson Rocha, do MPF, no Quilombo Lapinha: "Plataforma de Territórios
Tradicionais, ferramenta"
2 - Dr.
Wilson Rocha/MPF Plataforma de Territórios Tradicionais no Quilombo Lapinha,
VII Colóquio. v.11
3 - “PLATAFORMA
DE TERRITÓRIOS TRADICIONAIS, LUTAS NO PA E MG”, Quilombo Lapinha no VII
Colóquio. Vídeo8
4 - Marta,
de Moçambique; Universidades e Crianças no Quilombo Lapinha, no VII Colóquio
Inter. Vídeo 18
5 - Na
Ilha da Ressaca indo p rio São Francisco, Zilah: luta do Quilombo Lapinha, VII
Colóquio. Vídeo 17
6 - Isabel,
quilombola da Lapinha: “Sou mulher da roça, desta terra não saio...” VII
Colóquio. Vídeo 16
7 - História
emocionante do Quilombo Lapinha, por Manoel, Leninha: VII Colóquio
Internacional. Vídeo 15
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela
FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia
pelo ITESP/SP; mestre em Exegese e Hermenêutica Bíblica pelo Pontifício
Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI e Lutas Populares.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Imagens da NASA via satélites
mostrou a maior parte do Brasil coberto por nuvem de fumaça, dia 16/09/24.
[3]
Veja a Plataforma de Territórios Tradicionais no site: https://territoriostradicionais.mpf.mp.br/#/inicial
[4] Cf. art. 215, 231 e 232 da CF 88
e Art. 68 da ADCT.
[5]
Se não leu ainda, sugiro a leitura do livro O Cativeiro da Terra, de
José de Souza MARTINS. 9ª edição. São Paulo: Contexto, 2013.
[6] Organização Internacional do
Trabalho da ONU, Organização das Nações Unidas.
[7] Leia http://gilvander.org.br/site/luta-e-resistencia-indigena-na-rmbh-cresce-e-fortalece-por-frei-gilvander-moreira/
[8] Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional.