Nossa Bíblia é cópia da cópia da cópia ... Por frei Gilvander Moreira[1]
Quando eu ainda criança comecei a ter
contato com a Bíblia, pensava que a Bíblia era simplesmente Palavra sagrada,
Palavra de Deus e que devíamos ler e buscar colocar em prática, mas ao estudar
Teologia e principalmente no mestrado sobre hermenêutica bíblica é que fui
descobrir que a Bíblia é literatura construída ao longo de 1.300 anos em um
processo complexo que contou com uma multidão de pessoas que tinham fé no Deus
de Abraão, de Isaac, de Jacó, Javé, Deus solidário e libertador, que fez opção
pelos escravizados/as e se aliou à caminhada e luta por “terra, pão e paz”. A
Bíblia não foi ditada por Deus aos escritores/as dela, mas foi escrita por
homens e mulheres, em seus contextos históricos. Logo, para as pessoas cristãs
– que acreditam no Deus Javé -, a Bíblia é Palavra de Deus, mas segundo pessoas
humanas situadas historicamente com suas belezas e contradições. Ao estudarmos
a Bíblia cristã descobrimos que a Bíblia é cópia da cópia da cópia ... Por isso,
quem lê a Bíblia de forma fundamentalista e se projeta nela tirando conclusões
moralistas está completamente errado e se torna cego guiando cego e, muitas
vezes, deixa de ser pastor/a e passa a ser “lobo travestido de cordeiro”, que não
cuida do rebanho, mas o tosquia. É árido, mas veja abaixo um pouco da
construção da Bíblia.
Temos
muitos Manuscritos de Textos Bíblicos em Hebraico. A Bíblia a que
temos acesso hoje é fruto de cópias de cópias, pois, não existe mais nenhum
texto original de todos os livros da Bíblia escritos na língua hebraica e
aramaica. Estes manuscritos receberam o nome de Códices. Hoje eles não superam
o número de 2.000. A maior parte desses códices foram escritos no século XIV da
Era Cristã (E.C.); cerca de 50 manuscritos do séc. XIII E.C.; e oito do séc.
XII E.C. Poucos são do séc. IX-XI E.C.. Entre esses está o códice dos profetas
de Cairo do ano 895 E.C., escrito por Moisés Asher; o Códice de Aleppo, que
compreendia todo o Primeiro Testamento da Bíblia, foi escrito na segunda metade
do séc. X, e que serviu de base para a nova edição crítica aos cuidados da
Universidade hebraica de Jerusalém. O códice dos profetas de Leningrado, do ano
916 E.C., com a vocalização supralinear babilonês; o Códico B 19ª de
Leningrado, escrito em 1008 E.C. que compreende todo o Primeiro Testamento
bíblico.
A todos esses códices devem ser
acrescidos os fragmentos de códices do séc. VII ao VIII da E.C. que foram encontrados
na sinagoga em Cairo, no Egito, e poucos foram publicados. Graças a esta
descoberta foi possível estudar diversos sistemas de vocalização em uso nos
manuscritos hebraicos até o século XI, conhecida como vocalização de
Tiberíades, que está em uso até hoje.
Muito importante para os estudos
bíblicos foi a descoberta dos manuscritos ou fragmentos bíblicos encontrados
nas grutas de Qumran. De todos os livros do Primeiro Testamento foram
encontrados livros ou fragmentos, exceto o livro de Ester, que remonta ao séc.
III a.E.C. ao I séc da E.C. Foram feitas diversas edições críticas do Texto
Massorético (TM) – entre elas a Bíblia Hebraica Stuttgartensia[2].
O Texto Massorético com a introdução das vogais e a disposição externa
definitiva do texto é obra da escola de Moisè ben Asher, do séc. VIII-X da
E.C. As consoantes remontam certamente
ao séc. I e II da E.C. e foi fixado
criteriosamente por judeus cultos e sábios sob a base de bons manuscritos
antigos.
Temos assim a certeza de poder ler em
nossos dias o texto hebraico com as consoantes na sua forma, muito próximo dos
últimos séculos antes de Cristo ou talvez do seu tempo e das primeiras
comunidades cristãs. Ao confrontar com a tradução da LXX, com o Pentateuco
Samaritano e outros documentos antigos, os estudiosos da história do Texto
Massorético não hesitam em afirmar que o texto hebraico e aramaico não sofreu
mudanças substanciais, por isso não teriam alterado o conteúdo principal.
Temos
várias Traduções da Bíblia Hebraica. As antigas versões da Bíblia foram
muito importantes, porque serviram para a reconstrução do texto bíblico
original. Existem traduções inteiras da Bíblia, seja do Primeiro quanto do
Segundo Testamento, mas não temos mais nenhum manuscrito nas línguas originais.
Mesmo que tenhamos apenas cópias de cópias, estas versões são os textos que
foram lidos, estudados e comentados nas Igrejas e comunidades antigas e nos
oferecem a riqueza de seus comentários aos textos bíblicos.
Estes manuscritos foram submetidos às
condições de transmissão próprias de seu tempo, por esta razão é muito importante
o estudo, o confronto crítico de cada um deles, para poder reconstruir a sua
história, o quanto possível com o seu original. Sabemos que alguns capítulos
e/ou versículos foram escritos na língua aramaica e tantos outros foram
traduzidos para esta língua.
Toda
a Bíblia Hebraica foi traduzida para o Aramaico. Os textos
originais em aramaico que integram a Bíblia Hebraica são muito poucos na
proporção do texto hebraico. Todos os demais textos hebraicos da Biblia
hebraica foram traduzidos para o aramaico, após o exílio da Babilônia e
receberam o nome de Targumim.
Os Targumim
– plural de Targum - tem o significado de “interpretação”, no plural,
“Interpretações”. Essas traduções possibilitaram aos descendentes dos Povos
bíblicos, sediados na região da Babilônia, a terem acesso ao texto sagrado em
hebraico, por meio da tradução para o aramaico. Com o passar dos anos os
descendentes não falavam mais na língua materna e consequentemente não
aprendiam mais a ler e escrever na língua dos pais, o hebraico.
Havia até uma tradução separada de cada uma das
partes da Bíblia Hebraica: a Torá (Instruções/Lei) os Nevivim (Profetas) e os Ketuvim
(Escritos).
Do Targum Jerosolimitano II eram
conhecidos apenas alguns fragmentos, mas ele foi encontrado completo na
Biblioteca do Vaticano. Além de ser escrito em ótimo aramaico, sua importância
também está na antiguidade do texto. Dele se originaram o Targum Ionatan, que é
também conhecido por Jerosolimitano I, e o Targum Onkelos do séc. IV da E.C.
Este último teve grande aceitação entre os judeus pela sua fidelidade ao texto
hebraico e por trazer poucas paráfrases arbitrárias.
Dos
livros proféticos anteriores e proféticos propriamente ditos há a tradução de
Ionatkan ben Uzziel, que mais se parece com uma paráfrase do que uma verdadeira
tradução.
Por
fim, os Escritos que correspondem aos livros sapienciais, cuja tradução é obra
de diversos autores, seja pelo seu estilo, como pela variedade de línguas. Os
livros de Jó, Salmos e Provérbios trazem uma tradução literal do texto
hebraico, enquanto o Cântico dos Cânticos a tradução é parafraseada e livre.
Na
crítica textual para a reconstrução do texto original, os Targumim tem maior ou
menor importância segundo a fidelidade ou não, ao texto original, de quem os
traduziu. Mas esses são importantes para a história antiga da hermenêutica
bíblica.
Tradução Siríaca da Peshita de certa
forma foi favorecida pela proximidade da língua siríaca com o hebraico e o
aramaico. Ela continha grande parte do Primeiro Testamento, mas não era
completa e foi feita no II séc. da E.C., mas em seguida ela foi completada com
os livros deuterocanônicos tomados de uma tradução da LXX, exceto o
Eclesiástico, que foi traduzido do hebraico. Esta tradução é muito fiel, clara
pela elegância da língua. Contudo, ela foi deteriorada pela infiltração de
lições da LXX, ainda assim, ela continua sendo um ótimo subsídio para a crítica
documental do Primeiro Testamento.
As traduções
árabes do Primeiro Testamento hebraico foram feitas ainda na Idade Média,
seja do texto hebraico, grego ou siríaco, pelo fato de ser um texto recente e
em forma parafraseada, pouco servem para reconstituir o texto hebraico
antigo.
Referências
BÍBLIA HEBRAICA
STUTTGATENSIA.
Stuttgart, Germany, Gesamtherstellung Biblia-Druck, 1967/77, 1983.
MARTINI Carlo M.; BONATTI D. Pietro. Il Messaggio della salvezza, Introduzione Generale. Torino: Elle Di C, 1990. p. 185-215.
04/01/2024
Obs.: As
videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1
– Um Tom de resistência - Combatendo o fundamentalismo cristão na política
2 - Bíblia:
privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no
Palavra Ética
3
- Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri,
Brumadinho/MG. Vídeo 5
4 - Agir ético
na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos
reunidos)
5 - Andar no
amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG -
Set/2022
6 - Toda a
Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e
CEBI-MG, set 2022
7 - Chaves de
leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e
CEBI/MG –Set./22
8 - Estudo:
Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino
9 - Carta aos
Efésios: Agir ético faz a diferença! - Por frei Gilvander - Mês da Bíblia/2023
-02/07/2023
10 - Bíblia,
Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste
11 - Contexto
para o estudo do Livro de Josué - Mês da Bíblia 2022 - Por frei Gilvander -
30/8/2022
12 - CEBI: 43
anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção
pelos Pobres
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT,
CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2] BÍBLIA HEBRAICA STUTTGATENSIA. Stuttgart, Germany,
Gesamtherstellung Biblia-Druck, 1967/77, 1983.