terça-feira, 18 de julho de 2023

Mineradoras Santa Paulina e Minar insistem em DEVASTAR Ibirité e Itabirito, em MG: violência brutal inadmissível. Por frei Gilvander

  Mineradoras Santa Paulina e Minar insistem em DEVASTAR Ibirité e Itabirito, em MG: violência brutal inadmissível. Por frei Gilvander Moreira[1]


Após trinta horas de viagem de ônibus de Belo Horizonte, MG, até Rondonópolis, MG, estamos aqui no 1º dia do XV Intereclesial das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), com o Tema “CEBs: Igreja em saída na busca da vida plena para todos e todas” e o lema “Vejam! Eu vou criar novo céu e uma nova terra” (Is 65), com cerca de 1.500 representantes de CEBs de todo o Brasil. Estou longe fisicamente de Minas Gerais, mas com o coração em muitas lutas por justiça socioambiental nas minas e nos gerais. Partilho abaixo dois Manifestos que foram escritos de forma coletiva, com minha participação, na esperança de que sejam instrumentos para ampliar a Rede de Apoio às lutas justas, necessárias e urgentes para que o município de Ibirité, na região metropolitana de Belo Horizonte, MG, seja de fato Território Livre de Mineração e que o povo do município de Itabirito, no colar metropolitano da capital mineira, já tão sacrificado pela mineração devastadora, não permita a insanidade de aceitar mineração dentro da Estação Ecológica de ARÊDES. Leiam abaixo e divulguem, por favor.

1 - MANIFESTO PELO FECHAMENTO DA MINERAÇÃO SANTA PAULINA NA SERRA DO ROLA-MOÇA EM IBIRITÉ, DIVISA COM SARZEDO E BELO HORIZONTE, MG

Parque Estadual da Serra do Rola-Moça (PESRM), situado nos municípios de Belo Horizonte, Brumadinho, Ibirité e Nova Lima, MG, com seus 3.941,09 hectares de área, é o terceiro maior parque em área urbana do Brasil. Criado através do decreto estadual nº 36.071, de 27 de setembro de 1994. É considerado área de proteção especial de mananciais, essenciais para o abastecimento de água da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Abrange, em seus domínios, várias nascentes e cabeceiras de rios, destacando-se as Áreas de Proteção Especial (APEs): Taboões, Rola-Moça, Bálsamo, Barreiro, Mutuca e Catarina, mananciais que abastecem parte da população de Belo Horizonte, Ibirité e Brumadinho. Adjacente ao PESRM, a Estação Ecológica de Fechos (EEFechos), um importante remanescente florestal, também um importante manancial de água que abastece a cidade de Belo Horizonte. A grande variedade de ecossistemas encontrados nesta região, contendo formações vegetais tanto da Mata Atlântica, quanto do Cerrado e de campos de altitude, faz com que a mesma seja dotada de uma extraordinária riqueza natural peculiar, que sofre violentas pressões tanto pela exploração mineral quanto pela alocação de empreendimentos imobiliários, em seu entorno. Preservar o PESRM se tornou uma necessidade para a sobrevivência de quase 6 milhões de pessoas da RMBH e de uma riquíssima biodiversidade.

A extração de minério na área do PESRM começaram em 1937 com a concessão de lavra ao Departamento Nacional de Produção, tendo funcionado até o final dos anos 2000 com base nas famigeradas Autorizações Ambientais de Funcionamento quando foram interditadas por força de ação ajuizada pelo Ministério Público de Minas Gerais (MP/MG). Desde então a Mineração Santa Paulina levou 7 (sete) anos para que ao final tivesse em 2021 indeferido seu pedido de Licença Ambiental para voltar a explorar minério na Mina da Boa Esperança localizada entre Ibirité e Sarzedo, por evidentes razões de inviabilidade ambiental.

Com as atividades minerárias paralisadas em razão da ausência de licenças ambientais necessárias, a Mineração Santa Paulina, embora tenham sido comprovadas operações ilegais nesse período, terminou reduzindo a área a um cenário de destruição – crateras brutais - que permanece há anos sem adoção das medidas de recuperação necessárias. Em nova tentativa de operar legalmente na área, a Mineração Santa Paulina buscou licenciar então a atividade de reaproveitamento de bens metálicos dispostos em pilha estéril ou rejeitos, pedido que teve sua rejeição recomendada por extenso parecer emitido pelo setor técnico da Superintendência Regional do Meio Ambiente (SUPRAM) da Secretaria de estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD).

Entretanto, de maneira incompreensível e absurda o Superintende do órgão resolveu autorizar a retirada de mais de 1 milhão de toneladas sem qualquer tipo de licenciamento ambiental. A retomada das atividades minerárias pela Mineração Santa Paulina causou grande comoção popular, indignação e reinvindicações pelas comunidades atingidas com diversas representações dirigidas ao Ministério Público de Minas Gerais, apontando os múltiplos e brutais impactos negativos, danos ambientais e atividades poluidoras, decorrentes da retomada da retirada de minério e escoamento da produção através do trânsito de veículos de transporte da Mineração Santa Paulina em estrada clandestinamente aberta e em estreitas estradas de terra que interligam os municípios de Ibirité e Sarzedo, causando múltiplos e violentos danos às comunidades lindeiras aos trechos trafegados, especialmente centenas de famílias horticultoras. Inicialmente estão previstas 120 (cento e vinte) viagens diárias com pesados caminhões passando a cada 6 (seis) minutos, das 06H00 às 18H00.

Diante dessa concreta e gravíssima ameaça ao Parque Estadual da Serra do Rola-Moça e a seus mananciais de abastecimento público, aos ecossistemas e ao bem estar das populações atingidas, a produção de alimentos que alimenta a inteira região metropolitana de Belo Horizonte, o Ministério Público de MG ajuizou a Ação Civil Pública 5009765-16.2023.8.13.0114 que tramita perante a 3ª Vara Cível da Comarca de Ibirité. Dentre várias razões exposta pelo Ministério Público de MG (MP/MG), destaca-se que a Fazenda Boa Esperança, onde se encontra a Mineração Santa Paulina, situa-se na zona de amortecimento do Parque Estadual Serra do Rola Moça, nos limites de área de Conservação e Proteção Integral, afirmando que o empreendimento minerário da Mineração Santa Paulina “provoca e provocará impactos negativos, correspondendo, fundamentalmente, à ocupação dos espaços naturais, com prejuízos inevitáveis à fauna e à flora”, porquanto que o empreendimento minerário não conta com licenciamento ambiental clássico, precedido de estudo de impacto ambiental e de relatório de impacto ambiental (EIA e RIMA).

Assim o Ministério Público de MG exige como pertinente ao caso, a) a imediata suspensão de todas as atividades desenvolvidas pela Mineração Santa Paulina; b) a abstenção de promover qualquer intervenção no Parque Estadual da Serra do Rola-Moça e/ou no seu entorno/zona de amortecimento; c) a abstenção de transitar caminhões e transportar minério (ou materiais afins), especialmente no entorno do Parque Estadual da Serra do Rola-Moça (incluindo a sua zona de amortecimento); d) recuperação de todas as áreas degradadas e alteradas no empreendimento, por meio da elaboração, no prazo máximo de 30 (trinta) dias, e ulterior execução de Plano de Fechamento de Mina (PAFEM) ou Plano de Recuperação de Área Degradada (PRAD); d.1) O PAFEM/PRAD deve contemplar a efetiva, integral e definitiva reparação ambiental da área onde foram desenvolvidas as atividades minerárias, sendo elaborado por equipe técnica com ART e contando cronograma de execução a ser rigorosamente seguido. d.2) O referido PAFEM/PRAD não poderá contemplar quaisquer medidas que impliquem em lavra de minério existente na área do empreendimento; e) a adoção de todas as medidas emergenciais e de segurança aptas a assegurar a estabilidade de todas as estruturas existentes no empreendimento minerário – nas crateras -, enquanto elas existirem, inclusive daquelas estruturas cuja operação será paralisada, devendo, ainda, ser garantida a neutralização de todo e qualquer risco à população e ao meio ambiente natural, cultural e artificial; f) a contratação, no prazo máximo de 30 (trinta) dias, de auditoria técnica independente com reconhecida expertise, para o acompanhamento das medidas de recuperação das áreas degradadas e garantia de segurança das estruturas do local, sem prejuízo do cumprimento da legislação no tocante à realização de auditorias ordinárias e extraordinárias e da apresentação dos relatórios previstos em normas específicas e/ou solicitados por órgão competente; g) a observância das recomendações e adoção das providências recomendadas pela equipe de auditoria técnica independente e pelos órgãos competentes, nos prazos assinados, que objetivem a integral recuperação da área do empreendimento; h) no prazo máximo de 30 (trinta) dias, elabore um plano de comunicação com a comunidade, a fim de que as intervenções ocorram de forma transparente com a população diretamente afetada. Todos os trabalhos deverão passar pelo crivo dos órgãos de Estado/Município competentes, no que aplicável. Requereu também o Ministério Público, ainda, cautelarmente, com o objetivo de assegurar a integral reparação de danos, o bloqueio do valor de R$ 20.000.000,00(vinte milhões de reais) em contas de titularidade da Mineração Santa Paulina.

A Juíza Renata Souza Viana postergou a análise da tutela de urgência conforme descrito acima para após a realização da Audiência de Conciliação, que ocorrerá de forma presencial, na quinta-feira, dia 20/07/2023 às 17:00, em Ibirité, MG, razão pela qual é imprescindível a manifestação por escrito por meio de notas próprias de Movimentos Sociais e Organizações de Defesa dos Direitos Humanos, sociais e ambientais a serem encaminhadas ao Ministério Público e à juíza do caso, mas também pela presença no momento da Audiência de Conciliação, de entidades, movimentos socioambientais, coletivos de luta por direitos, lideranças dos âmbitos ambiental, social, cultural, religioso e político. Haverá Ato Público na Praça do Fórum em Ibirité, MG, dia 20/07/23, a partir das 14 horas. Convocamos a quem puder ir participar.

Esse Manifesto pelo Fechamento da Mineração Santa Paulina na Serra do Rola-Moça é destinado a colher assinaturas de todas as pessoas preocupadas com as ameaças de morte ao Parque Estadual Serra do Rola Moça e a seus Mananciais de Abastecimento Público, fundamentais para a vida e o bem estar de todos os quase 6 milhões de pessoas da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Derrotar o projeto de devastação da Mineração é agora mais urgente do que nunca!

2 - MANIFESTO da rede de proteção da ESTAÇÃO ECOLÓGICA DE ARÊDES (EEA), em Itabirito, MG: repudiamos com veemência o PL 387 que visa minerar em ARÊDES

Nós, representantes da Sociedade Civil, amigos/a e Rede de Apoio da Estação Ecológica Estadual de Arêdes (EEA), em Itabirito, MG, vimos à presença de Vossa Excelência e aos Excelentíssimos (as) Senhores (as) Secretários(as) de Estado e Deputados(as) Estaduais de Minas Gerais, à Senhora Diretora Geral do IEF e ao Ministério Público Estadual expressar a nossa grande indignação quanto às graves consequências da proposta presente no Projeto de Lei 387/2023 que propõe alterar (desafetar) os limites da Estação Ecológica de ArêdesEsse brutal, violento e injusto PL 387 visa possibilitar que áreas de relevante importância para os objetivos de criação desta Unidade de Conservação sejam destinadas a exploração minerária, atendendo à ganância tão somente de uma empresa mineradora, a Minar, que tanto degradou a região no passado, desconsiderando os demais aspectos socioambientais, tão necessários para garantir o desenvolvimento sustentável no Estado de Minas Gerais.



Não obstante proporcionar uma significativa alteração da dinâmica da Estação Ecológica de Arêdes, criada pelo Decreto Estadual nº. 45.397 de 14 de junho de 2010, alterado pelo Decreto Estadual nº.  46.322 de 30 de setembro de 2013, com fundamento na Lei n°. 19.555 de 09 de agosto de 2011, este Projeto de Lei 387 retira uma grande e importante gleba da área original dessa relevante Unidade de Conservação, sem que os critérios técnicos tenham sido evidenciados e devidamente analisados e segundo a nossa percepção, sem que tenha havido maiores discussões com a sociedade. Essa alteração de limites gera inclusive, os seguintes graves conflitos:

1.     Desafetação de cerca de 280 mil metros quadrados (cerca de 28 hectares)  da bacia hidrográfica do Córrego do Bação (cabeceira do Alto Rio das Velhas), que alimenta nascentes que abastecem 80% da população da cidade de Itabirito. A água necessária para abastecimento humano sofrerá risco de ter sua bacia hidrográfica descaracterizada, sob a pena de se perder definitivamente um bem comum que já está escasso. A crise hídrica se agrava em uma progressão geométrica. Preservar as nascentes e os mananciais se tornou uma necessidade para a sobrevivência da população. Não é aceitável, nem justo e ético que uma atividade econômica proponha explorar estas áreas;

2.     A área onde a mineradora Minar pretende ocupar com sua escavação e demais estruturas formará um obstáculo linear de pelo menos mil metros, o que inviabilizará definitivamente o Corredor Ecológico que hoje liga as bacias do rio Paraopeba e rio das Velhas, prejudicando diretamente um dos objetivos de criação do Monumento Natural Estadual da Serra da Moeda. Um corredor ecológico integra porções de ecossistemas naturais ou seminaturais, ligando unidades de conservação, que possibilitam entre elas o fluxo de genes e o movimento da biota, facilitando a dispersão de espécies e a recuperação de áreas degradadas, bem como a manutenção de populações que demandam para sua sobrevivência áreas com extensão maior do que aquela das unidades individuais.

3.     Destruição do último campo ferruginoso que restou protegido na Serra de Itabirito. Este campo nativo, que está em alto grau de conservação, é considerado Zona Primitiva da Estação Ecológica sendo essencial para o desenvolvimento de pesquisas, guarda um remanescente embrionário formado a 60 milhões de anos e indispensável para propiciar a recuperação das áreas exploradas pelas mineradoras do entorno (mineradoras Vale S/A, Gerdau, SAFM e Herculano). Para o conjunto de características naturais relevantes da Estação Ecológica de Arêdes, este campo nativo mantem a representatividade dos ecossistemas que antes existiam no quadrilátero ferrífero e aquífero, e na Serra de Itabirito especificamente, e hoje caminham aceleradamente para a extinção. Será a nossa geração a última a poder ver este ecossistema na natureza? O PL 387, se for aprovado, devastará tudo isso.

4.    Redução do valor cultural e paisagístico do Complexo Arqueológico de Arêdes, pela sua fragmentação e destruição de estruturas componentes. Trata-se de Complexo Histórico-Arqueológico oriundo do séc. XVIII composto por conjuntos e unidades isoladas (casas, capela, muros, currais, casa de fundição, canais, catas antigas, dentre outros), confeccionados em alvenaria de pedra, portanto, exemplar raro da arquitetura vernacular mineira, com acabamentos variados, compostos por blocos de canga e ou de quartzito em cantaria. Quem irá querer conhecer um patrimônio em local onde também estará acontecendo a exploração minerária com todos seus impactos, barulhos, poeiras e riscos? Como este patrimônio poderá fruir para nossa sociedade? Hoje a Estação Ecológica pode receber escolas e demais visitantes, no entanto, este PL 387 prevê que, à montante das áreas propícias para visitação e passeios escolares, estará uma atividade com tantos parâmetros de segurança a serem atendidos devido ao grau de risco elevado da atividade. Isto não pode ser conciliado. Não aprendemos nada com os crimes brutais e hediondos das mineradoras em conluio com o Estado em Bento Rodrigues/Mariana e em Brumadinho, que afetaram drasticamente as bacias dos vales dos rios Doce e Paraopeba? Quantos outros crimes cada vez mais brutais deixaremos acontecer com a ação devastadora das mineradoras?

5.     Estamos em um momento de transição, os governos e populações das cidades mineradoras buscam a diversificação econômica e a possibilidade de se desenvolver de forma limpa. Os municípios e as comunidades precisam com urgência se libertarem da mineriodependência que escraviza e superexplora o povo e os ecossistemas cada vez mais. Não é possível mais que uma atividade econômica impeça o desenvolvimento de outras. Assim como o Distrito de São Gonçalo do Bação, o Monumento Natural da Serra da Moeda, a Serra do Curral e a nossa Estação Ecológica de Arêdes, em Itabirito e tantos outros bens potenciais para o turismo e com seu valor intrínseco devem ser leoninamente defendidos, por nós que nos importamos com nossa terra.

Assim sendo, apelamos a Vossas Excelências que arquivem definitivamente o Projeto de  Lei 387, que se for aprovado, abrirá caminho para brutal devastação da Estação Ecológica de Arêdes e sacrificará nascentes e córrego que estão na cabeceira do rio das Velhas e comprometerá inclusive o abastecimento público de Belo Horizonte e Região Metropolitana. A mineradora Minar já degradou de forma brutal esta região no passado. O PL 387 só gerará lucro e acumulação de capital para a mineradora Minar e retirará dos nossos descendentes o restante deste precioso bem cultural, histórico, arqueológico e natural, que temos a obrigação de proteger, como Coletividade. O Governo de Minas Gerais e os deputados/as também têm a obrigação de garantir a preservação da Estação Ecológica de Arêdes. Pelo expresso acima, repudiamos com veemência o PL 387 e exigimos o seu arquivamento. Fora, PL 387/23 que atende a lobby da mineradora Minar e outras mineradoras.

18/07/23

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Henrique Lazarotti defende o Meio Ambiente e repudia mineração Santa Paulina, em Ibirité, MG, na ALMG

2 - Alenice, do CEDEFES, na ALMG: mineradora Santa Paulina insiste em devastar ambiente e acabar c águas

3 - Luana, mãe: mineradora Santa Paulina coloca em risco crianças da Comunidade do Capão, em Sarzedo, MG

4 - Frei Gilvander: Mineradora Santa Paulina e Gov de MG acabarão c águas de Ibirité e de 160 de BH/MG?

5 - Mineradora Santa Paulina em Ibirité/Sarzedo/MG acabará c água de 700 mil pessoas /Agricultura Familiar

6 - Crateras da mineração Santa Paulina em Ibirité, MG, clamam por revitalização. Vídeo 7 - 31/10/2019

7 - Veja belezas da Estação Ecológica de ARÊDES, em Itabirito/MG, que podem ser devastadas com PL 387/23


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Carta aos Efésios: “não roube mais!”. Por frei Gilvander

 Carta aos Efésios: “não roube mais!”. Por frei Gilvander Moreira[1]


Como subsídio para o mês da Bíblia de 2023, sobre a Carta aos Efésios, partilhamos mais um pequeno texto, o quarto, fruto de leitura atenta dos seis capítulos da “Carta aos Efésios”[2]. Destacamos alguns flashes ao longo da “Carta aos Efésios”, tais como, sejam pessoas humanas! Sejam pessoas novas!”, exorta-nos o autor da “Carta aos Efésios” em Ef 4,17-24. “Não vivam como os pagãos, cuja mente é vazia” (Ef 4,17b). A palavra ‘pagão’ vem de ‘pagos’, que significa campos, lugares de grama, zona rural; em oposição a um ambiente urbano. Entretanto, em tom pejorativo, o termo “pagão” foi empregado ao longo de muitos séculos para discriminar “os de fora”, os estrangeiros, os que estão fora da nossa comunidade. Então, que tipo de “pagão” não pode ser exemplo de vida para nós segundo a “Carta aos Efésios”? Obviamente que não são os pagãos camponeses, mas quem vive enredado na teia da ideologia dominante do Império Romano com muitas idolatrias e com cultura escravocrata, que aviltava a dignidade humana reduzindo 80% do povo a escravo. Não vivam como estes que reproduzem um sistema de morte, diz nas entrelinhas a “Carta aos Efésios”. Quem repete ingenuamente fake news e posturas preconceituosas tem “mente vazia”, segundo a “Carta aos Efésios”.

Nos dois versículos seguintes, em Ef 4,18-19, é especificado que tipo de agir é denunciado como imoral e não ético: os que se regem pela “libertinagem e imoralidade”, os vassalos da ideologia dominante (“cegos”), os que tentam manipular Deus segundo seus interesses, os que não têm empatia (“coração endurecido”), os ignorantes, os insensíveis, os libertinos e imorais, enfim. A “Carta aos Efésios” diz, textualmente, para não termos como exemplos de vida, pessoas cuja inteligência “se tornou cega, e eles vivem muito longe da vida de Deus, porque o endurecimento do coração deles é que os mantém na ignorância. Eles perderam a sensibilidade e se deixaram levar pela libertinagem, entregando-se com avidez a todo tipo de imoralidade” (Ef 4,18-19).

Lute pela justiça sendo justo: eis a verdade. “Abandonem a mentira: cada um diga a verdade ao seu próximo, pois somos membros uns dos outros” (Ef 4,25). Esta exortação não diz respeito apenas a pronunciar verdades e evitar falar mentiras, fake news, mas diz respeito a uma postura ética que deve reger nossa forma de viver, conviver e lutar pela construção do reino de Deus a partir do aqui e do agora. “Falar a verdade” implica em ser verdadeiro/a, ético/a, colocar em prática o que diz, ter coerência entre o que diz e o que pratica. Ou seja, quem luta por justiça, para gritar por justiça de forma verdadeira, precisa ser justo. Quem abomina e repudia a corrupção e a violência precisa, para “falar a verdade”, ser e agir como pessoa ética e respeitosa, não pode bradar contra corrupção e ser pessoa corrupta. Ao insistir sobre o abandono da mentira e carregar a verdade consigo, a “Carta aos Efésios” está exortando-nos para um agir ético, que revele coerência entre o que sai da nossa boca e nossas atitudes. Jesus Cristo falava com autoridade, porque n’Ele não havia contradição entre o que ele dizia e o que ele vivia na prática do dia a dia. Cultivando esta verdadeira sabedoria de vida, as comunidades cristãs orientadas pela “Carta aos Efésios” animavam a todos/as: “Estejam, portanto, bem firmes: cingidos com o cinturão da verdade, vestidos com a couraça da justiça” (Ef 6,14).

Sois membros uns dos outros!” (Ef 4,25b). Maravilhoso ver em um texto bíblico da última década do Século 1º da Era Cristã, muitos séculos antes do reconhecimento da interdependência entre as pessoas e com todos os seres vivos da criação, esta frase: “Sois membros uns dos outros!” (Ef 4,25b). Isto é, ninguém é uma ilha, ninguém é autossuficiente, ninguém é independente. Podemos e devemos ser autônomos/as, mas independentes, nunca. Todos nós somos interdependentes uns dos outros. Ai de nós sem os outros! Portanto, o outro (“meu próximo, minha próxima”), a alteridade, é que garante meu viver em abundância. É na relação dialógica, amorosa e respeitosa com o outro que revelo minha verdade, o meu ser autêntico. O fechamento em si é mentira, é caminho de morte, pois aniquila a nossa humanidade.

Roubo de nenhuma espécie! Veja outra sabedoria libertadora que a “Carta aos Efésios” nos dedica: “Quem roubava, não roube mais; ao contrário, ocupe-se trabalhando com as próprias mãos em algo útil, e tenha assim o que repartir com os pobres” (Ef 4,28). Eis outra exortação eminentemente ética da “Carta”. Óbvio que o sentido de “quem roubava, não roube mais” não se restringe à subtração de coisas das pessoas em uma sociedade desigual, o que comumente se entende como roubo, mas se refere, além disso, às relações sociais escravocratas que se reproduziam, cotidianamente, em todas as províncias e colônias do Império Romano. A força de trabalho e a dignidade das pessoas eram roubadas quando se submetiam as pessoas à escravidão e elas eram forçadas a trabalhar sem nada receber, além de uma alimentação precária. Pelo pagamento de uma pesadíssima carga tributária e uma série de taxas, também se roubava o povo de uma forma brutal.

Atualizando esta exortação a superar relações de roubo temos que dizer que, em uma sociedade capitalista, a classe dominante rouba, diariamente, a classe trabalhadora de mil formas: pela mais-valia que impõe o pagamento de salário, que é “apenas o sal para manter a/o trabalhador/a vivo/a” para ser supexplorado/a no dia seguinte;  pelo exagero de impostos embutidos em tudo o que se compra; pelo ‘cativeiro da terra’ e por falta de políticas públicas, que roubam direitos de acesso à terra, à moradia adequada, à saúde, à educação, à arte e cultura, a um ambiente sustentável. Todos esses tipos de roubos são repudiados pela “Carta aos Efésios”. 

Obs.: No próximo texto, o quinto, continuaremos esta reflexão sobre a “Carta aos Efésios”.

05/07/23

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG - Set/2022

2 - Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

3 - Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

4 - Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

5 - Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! - Por frei Gilvander - Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Optamos por colocar entre aspas “Carta aos Efésios” ao longo do texto, porque em uma análise mais acurada constatamos que, de fato, não se trata de uma Carta e nem é destinada apenas à Comunidade Cristã de Éfeso.

terça-feira, 27 de junho de 2023

Carta aos Efésios: todos são família de Deus. Por frei Gilvander

Carta aos Efésios: todos são família de Deus. Por frei Gilvander Moreira[1]


Em setembro de 2023, a “Carta aos Efésios”[2] será o libro bíblico do mês da Bíblia. Neste terceiro pequeno texto partilhamos mais algumas chaves de leitura para uma compreensão sensata e libertadora da “Carta aos Efésios”. A expressão “em Cristo” é repetida na “Carta aos Efésios” onze vezes.[3] Sinal da extraordinária ênfase que o autor da “Carta aos Efésios” dá à pessoa de Jesus Cristo. “Em Cristo”, somos abençoados, escolhidos, perdoados; temos herança, esperança, fé, confiança; experimentamos o poder de Deus, que ressuscitou Cristo, somos moradas de Deus. Tudo “em Cristo”! Por outro lado, “sem Cristo”, éramos errantes. Ser como Cristo e agir como Ele é o que o autor da “Carta” pede de nós.

Libertar “pelo sangue” é libertar doando a Vida. Por meio do sangue de Cristo é que fomos libertos e n’Ele nossas faltas foram perdoadas” (Ef 1,7). Este versículo está em contexto de louvação litúrgica, mas não pode ser compreendido como se fizesse referência a uma libertação ritual e mágica e a um perdão exclusivamente ritualístico. O sentido é ético: postura libertadora no jeito de conviver, agir e lutar de Jesus, o Cristo, que “nos liberta pelo seu sangue” (Ef 2,13), isto é, pela vida doada ao próximo/a, principalmente aos empobrecidos. Jesus viveu no nosso meio a partir do princípio da misericórdia: colocando o outro, que é injustiçado, em primeiro lugar. Ou seja, pensando e agindo com Opção pelos empobrecidos e escravizados/as. Libertar “pelo sangue” significa libertar doando a vida ao longo de toda a vida, até ao martírio, se for necessário.

Trata-se, eminentemente, de uma postura ética, um jeito de viver, conviver e lutar. Não viver de forma egoísta, mas agindo, cotidianamente se doando, para que “todos/as tenham vida em abundância” (Jo 10,10), o que salva muita gente, não de forma ritualística e mágica, mas nas entranhas das relações humanas e sociais. Sangue é muito mais que sangue, é vida doada. “Tomai, todos, e bebei o meu sangue” (Mc 14,22-25; Lc 22,14-20; Mt 26,26-29; 1 Cor 11,24-28), ouvimos na celebração da eucaristia, a ceia do senhor. Isso quer dizer: seja como Jesus Cristo foi. Viva a vida se doando e não apenas doando coisas. Aliás, as primeiras comunidades cristãs, ao celebrar a eucaristia, faziam questão de recordar: “Fazei isto em memória de mim” (1 Cor 11,24). Fazer o quê? O que Jesus fez. O que Ele fez? Viveu a vida se doando por todos/as, construindo fraternidade social e ecológica.

Somos todos/as da família de Deus. A “Carta aos Efésios” afirma a bondade, o amor e a misericórdia de Deus, bem como a centralidade de Cristo na nossa vida, enaltecendo a cidadania de todos/as, sem exceção, como Povo de Deus: “Vocês, portanto, já não são estrangeiros nem hóspedes, mas concidadãos do povo de Deus e membros da família de Deus” (Ef 2,19). Isto é, “Povo de Deus” não está restrito à linhagem cultural judaica, mas abarca todos os povos, sem exceção, irmanando todos/as como ‘família de Deus’. Eis a perspectiva universalista apregoada na “Carta aos Efésios” apontando que a inculturação em todas as culturas é o caminho santificador, libertador.

Que tipo de comportamento é digno de uma pessoa cristã? “Peço que vocês se comportem de modo digno da vocação que receberam” (Ef 4,1b). O autor da “Carta aos Efésios” exorta aos seus destinatários/as, que somos todos/as nós, a um “comportamento digno da nossa vocação”, da nossa missão, diríamos hoje. Que tipo de comportamento deve ser considerado digno para uma pessoa cristã? Segundo a “Carta aos Efésios” é o comportamento de quem demonstra estar profundamente ligado ao mistério de amor que nos envolve e reflete as atitudes e os gestos de Jesus, que viveu se doando por todos/as, sem discriminar ninguém e, pelo agir, que testemunha a imagem de um Deus rico em amor e misericórdia. Por outro lado, quem vive falando o nome de Deus, invocando a misericórdia de Deus, mas ao mesmo tempo incita à luta para destruir o regime democrático e instalar ditadura; usa arma e defende o armamentismo, considerando o outro um inimigo em potencial; é racista, misógino, homofóbico; discrimina pessoas de religião de matriz africana ou indígena; incita ao ódio e à intolerância – esse tipo de pessoa não está se comportando de forma digna, conforme apregoa a “Carta aos Efésios”.

Ser humilde, sim; humilhado, não! “Sejam humildes, amáveis, pacientes e suportem-se uns aos outros no amor. Mantenham entre vocês laços de paz, ...” (Ef 4,2-3a). Ser humilde, sim; jamais, humilhado. Amável, sim; jamais, “saco de pancada” ou bobo; paciente, sim, diante do que é impossível mudar, como, por exemplo, uma doença que carcome a pessoa e a deixa em estado terminal. Nesta situação só nos resta aceitar e ter paciência. Entretanto, não podemos usar a exortação da “Carta aos Efésios” para praticar ou encorajar outros à resignação diante de injustiças e opressões.

A exortação “suportem-se uns aos outros no amor” significa: respeitem-se uns aos outros no amor, reconhecendo o que há de melhor no outro e reconhecendo, também, nossos limites e contradições. Isso para viabilizar uma convivência social justa, respeitosa e sadia. Que a busca da paz seja a bússola na nossa convivência social e ecológica. Entretanto, paz como fruto da justiça e jamais pacificação, que é, muitas vezes, “esparadrapo” em cima de ferida. Em nome da pacificação, no Brasil houve anistia geral e irrestrita aos generais ditadores e aos torturadores da ditadura militar-civil-empresarial de 1964 a 1985, que fez desaparecer, torturou, exilou e assassinou centenas de lideranças que eram “o cérebro” da sociedade brasileira. A busca pela verdadeira paz envolve luta por justiça, o que não é vingança e nem anistia a criminosos. Na mesma linha, o autor da “Carta” enfatiza: “Sejam bons e compreensivos uns com os outros, perdoando-se mutuamente, assim como Deus perdoou a vocês em Cristo” (Ef 4,32), pois todos/as, sem exceção, são família de Deus.

Obs.: No próximo texto, o quarto, continuaremos esta reflexão sobre a “Carta aos Efésios”.

27/06/23

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG - Set/2022

2 - Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

3 - Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

4 - Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Optamos por colocar entre aspas “Carta aos Efésios” ao longo do texto, porque em uma análise mais acurada constatamos que, de fato, não se trata de uma Carta e nem é destinada apenas à Comunidade Cristã de Éfeso.

[3] (Ef 1,3.4.11.12 (2 vezes).13.20; 2,12.21.22; 3,12; 4,32).

terça-feira, 20 de junho de 2023

Carta aos Efésios: muros, não; pontes, sim! Por frei Gilvander

 Carta aos Efésios: muros, não; pontes, sim! Por frei Gilvander Moreira[1]


A “Carta aos Efésios”[2] foi escolhida para ser assunto de reflexão nas Comunidades Cristãs no mês da Bíblia de 2023, setembro. Eis mais um pequeno subsídio. Organizado em seis capítulos, inserido no Novo Testamento Bíblico entre duas Cartas Paulinas – Gálatas e Filipenses – o inspirado texto bíblico chamado “Carta aos Efésios” não é carta, pois não é endereçada, exclusivamente, a um destinatário específico. A “Carta” não é “aos Efésios”, pois não é dedicada apenas à comunidade cristã da periferia da grande cidade de Éfeso. A expressão “em Éfeso” (Ef 1,1), no início da “Carta”, falta em diversos manuscritos antigos. A “Carta aos Efésios” é endereçada, provavelmente, a uma Rede de Comunidades Cristãs fora da Palestina/Israel, entre as quais por extensão, também endereçada às comunidades cristãs atuais.

O texto não foi escrito pelo apóstolo Paulo, mas sim por um discípulo de Paulo, provavelmente na última década do século 1º da Era Cristã. Portanto, precisamos evitar a leitura da “Carta aos Efésios” ao pé da letra, de forma literal e fundamentalista. Aliás, uma leitura superficial, pinçando versículos da “Carta” pode induzir-nos a compreensões antagônicas com a finalidade da mesma, tais como justificar o machismo, o patriarcalismo e a relação social escravocrata (Senhor de escravos). Compreendidos, porém no contexto, tais versículos não abonam tais injustiças.

Precisamos evidenciar e considerar o contexto político, social, econômico, cultural e religioso que está como pano de fundo deste texto bíblico. A Carta aponta Jesus Cristo como “pedra fundamental” (Ef 2,20), pois testemunha e ensina um jeito de ser, de viver e conviver. E mais: de lutar e ser instrumento na construção de uma sociedade justa economicamente, solidária socialmente, plural e respeitosa culturalmente, com uma ética libertadora, que seja expressão do reino de Deus querido por Jesus e pelo Deus da vida.

A “Carta aos Efésios” está organizada em duas partes: 1ª unidade – Ef 1-3, que apresenta vários temas teológicos e 2ª unidade – Ef 4-6, que desenvolve o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo, fazendo uma série de exortações éticas e teológicas. A abertura da “Carta” nos induz a pensar que o escrito seja do apóstolo Paulo, pois traz abertura semelhante às Cartas Paulinas (Ef 1,1): Paulo, não atrelado ao grupo dos doze, mas “apóstolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus”. A “Carta” inicia-se com uma louvação litúrgica (Ef 1,3-14): “Bendito seja o Deus e Pai de nosso senhor Jesus Cristo”

A “Carta aos Efésios” se destina, primordialmente, a comunidades cristãs mistas de pessoas oriundas do mundo cultural judaico e uma maioria de pessoas oriundas do mundo cultural gentílico, conforme nos informa Ef 2,11: “Lembrem-se de que vocês, pagãos de nascimento, eram chamados incircuncisos por aqueles que se dizem circuncidados, devido à circuncisão que se faz na carne com mão humana.” Portanto, a “Carta” é prioritariamente dedicada, em um primeiro momento, a gente considerada de origem impura e estrangeira. É para “os de fora”, os que estão aderindo ao Evangelho de Jesus Cristo que o autor da “Carta” faz a exortação a serem exemplos de fraternidade em uma sociedade com relações sociais escravocratas do Império Romano. A “Carta” se destina também a libertar pessoas cristãs das amarras do legalismo e do ritualismo, o que estava gerando divisões e separações na convivência com “os de fora”. Muros, não; pontes, sim, devemos ser.

Nosso Deus age de forma libertadora. Logo após a saudação e o endereçamento, a “Carta aos Efésios” apresenta um magnífico hino de louvor, no qual o autor, entre tantas belezas espirituais, revela a ética de Deus, mistério de infinito amor. Deus “nos abençoou com toda bênção espiritual, em Cristo” (Ef 1,3), “nos escolheu, em Cristo” (Ef 1,4), “derramou abundantemente graça sobre nós” (Ef 1,6.8), “libertou-nos pelo sangue de Cristo e nos perdoou” (Ef 1,7), “nos fez conhecer o mistério da sua vontade” (Ef 1,9), “reuniu o universo inteiro para o levar à plenitude” (Ef 1,10), “em Cristo, segundo o projeto de Deus que tudo conduz” (Ef 1,11); “Deus nos conquistou (adquiriu) para o louvor da sua glória” (Ef 1,14). Destacamos os verbos de ação para enfatizarmos que o Deus da “Carta aos Efésios” é um Deus ético, que age para o bem de toda a humanidade, “Deus que age em favor de nós” (Ef 1,19) e de todos os seres vivos.

Por isso, Deus abençoa-nos, escolhe-nos, derrama sobre nós sua graça, liberta-nos, perdoa-nos, faz-nos conhecer seu projeto, “conhecer Deus profundamente” (Ef 1,17), ou seja, liberta-nos da ignorância, do fanatismo, de fundamentalismos, de moralismos. A utopia de Deus é reunir e estabelecer na comunhão o universo inteiro levando tudo à plenitude. Enfim, pelo agir ético de Deus somos conquistados, cativados por amor, para amar sem limites. Esta ética de Deus, que é puro amor, pode nos inspirar para sermos éticos como Deus é ético, ou seja, que nosso agir seja parecido com o agir divino, invocado sob tantos nomes.

Obs.: No próximo texto, continuaremos esta reflexão sobre a “Carta aos Efésios”.

20/06/23

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG - Set/2022

2 - Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

3 - Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Optamos por colocar entre aspas “Carta aos Efésios” ao longo do texto, porque em uma análise mais acurada constatamos que, de fato, não se trata de uma Carta e nem é destinada apenas à Comunidade Cristã de Éfeso.

 

terça-feira, 13 de junho de 2023

Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença. Por frei Gilvander

Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença. Por frei Gilvander Moreira[1]

Capa do livrinho “CARTA AOS EFÉSIOS”: andar no amor na Casa Comum – Toda a Criação respira Deus. CEBI/MG, 2023.

Vem aí setembro, o mês da Bíblia! Por que e para quê? Primeiro, porque dia 30 de setembro é dia de São Jerônimo (342-420), o tradutor da Bíblia para o latim, a Vulgata. Como profundo conhecedor das línguas hebraica, grega e latim e das culturas dos povos semita, grego e romanos e um dos pilares da patrística, São Jerônimo colocou a Bíblia na linguagem popular, acessível ao povo, o latim na época. Segundo, porque, com a Opção pelos Pobres e a Dei Verbum, um dos ótimos Documentos do Concílio Vaticano II, a leitura da Bíblia a partir dos pobres, de forma comunitária, militante, (macro)ecumênica e transformadora, foi incentivada e vem sendo feita há cinquenta anos. Inicialmente com Dia da Bíblia e sucessivamente, Tríduo Bíblico, Semana Bíblica e, assim, pouco a pouco, setembro se tornou o Mês da Bíblia.

Em Minas Gerais, há 25 anos, um grupo de biblistas do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI-MG)[2] publica anualmente um livrinho que busca ser um Texto-Base sobre o livro bíblico do mês da Bíblia: setembro. Em 2023, todas as pessoas e comunidades cristãs são convidadas a refletir e inspirar a caminhada, especialmente no mês de setembro, sobre a Carta aos Efésios. O livrinho do CEBI-MG tem como título “CARTA AOS EFÉSIOS”: andar no amor na Casa Comum – Toda a Criação respira Deus.[3] O livrinho é composto de seis artigos: 1) “Carta aos Efésios”: Carta? Homilia ou Tratado Teológico?, de Iêda Santos Leite; 2) A “Carta aos Efésios”, uma teologia para a resistência, de Western Clay Peixoto; 3) “Carta aos Efésios”: relações humanas baseadas no amor, de Lúcia Diniz; 4) Diálogo Inter-religioso na Carta as Efésios e no N.T., de Vânia Fonseca; 5) Agir ético libertador na “Carta aos Efésios”, de Gilvander Luís Moreira; 6) Mística e militância a partir da “Carta aos Efésios”, de Denis Wilson Silva.

Aqui partilho com você um primeiro aperitivo do artigo nosso que compõe o livro: Agir ético libertador na “Carta aos Efésios”. Leremos a “Carta aos Efésios”[4] buscando compreender, primordialmente, a dimensão ética deste texto bíblico, ancorando nossa interpretação na seguinte questão: Que tipo de ética, de agir, de atitudes, enfim, que postura cristã a “Carta aos Efésios” nos exorta a colocar em prática? Para respondermos a esta questão precisamos observar, atentamente, o tecido verbal deste texto bíblico.

Agir ético faz a diferença. Muitas vezes, influenciado/a por uma perspectiva excessivamente psicológica lemos os textos bíblicos buscando, consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, modelos de personagens bíblicos que devemos imitar. Na perspectiva profética e sapiencial, mais do que imitação de personagens bíblicos (aliás, não somos papagaios que imitam outras pessoas!), o que os textos bíblicos pedem de nós é um agir ético, como o defendido no Evangelho de Lucas, onde a prática é decisiva. Isto é comprovado na obra lucana (Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos) com expressões, tais como: "Façam coisas para provar que vocês se converteram..." (Lc 3,8a); "As multidões, alguns cobradores de impostos, alguns soldados, ... perguntam a João Batista: "O que devemos fazer?" (Lc 3,10.12.14). Um escriba pergunta a Jesus...: "O que devo fazer para receber em herança a vida eterna?" (Lc 10,25) e depois de contar o "episódio-parábola" do Bom Samaritano, Jesus responde dizendo: "Vá, e faça a mesma coisa" (Lc 10,37). Muitos outros textos do Evangelho de Lucas podem ser evocados para respaldar a conclusão de que Lucas dá uma grande prioridade ao agir libertador. No primeiro versículo de Atos dos Apóstolos está: “... tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar” (At 1,1). A prática é recordada antes do ensinamento, o que quer dizer que acima da ortodoxia está a ortopráxis, a prática certa e libertadora. Mais importante do que ter uma “opinião certa” é ter uma prática correta, libertadora. Lucas quer dizer que uma das grandes características das primeiras comunidades é que elas eram comunidades de ação, de prática, de testemunho. Não se trata de qualquer tipo de ação, mas de ações solidárias e libertadoras.

Na Carta de Tiago se afirma, de forma enfática, que “a fé, sem obras, é completamente morta” (Tg 2,17.26) e em muitas outras passagens bíblicas. Por exemplo, no discurso final do Evangelho de Mateus (Mt 25,31-46) isso fica evidente em perguntas implícitas provocadoras que remetem diretamente para o nosso agir ético: “Eu estava com fome. Vocês me deram de comer? Eu era estrangeiro. Vocês me acolheram em casa? Eu estava nu. Vocês me vestiram? Eu estava doente. Vocês cuidaram de mim? Eu estava preso. Vocês me visitaram?” (Mt 25,35-36). Prestemos atenção no tecido verbal: “dar, acolher, vestir, cuidar e visitar”, todos verbos de ação. A pessoa é reconhecida como justa – “os justos” (Mt 25,37) – se agir acolhendo os clamores dos últimos: “Toda vez que vocês FIZEREM isso a um dos menores (injustiçados/as) de meus irmãos, foi a mim que o FIZERAM” (Mt 25,40): o evangelista Mateus faz questão de pôr na boca de Jesus Cristo tal afirmação.

Nunca me esqueço de um dos meus professores do mestrado em exegese bíblica, o da língua hebraica, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, que nos disse, ao terminarmos três anos de estudos intensivos da língua hebraica: “Estamos terminando o curso da língua hebraica, a língua por excelência dos profetas e da ética”. É o agir ético que faz a diferença na fidelidade ao Deus Javé, solidário e libertador, “Deus, que é rico em misericórdia” (Ef 2,4). O Novo Testamento é escrito em grego, mas carrega toda a herança judaica do agir conforme a vontade de Deus e não apenas do falar, louvar, celebrar culto a Deus.

Importa recordar que ética é muito mais que moralidade, a qual muitas vezes se restringe à postura de juiz/a que pensa estar na arquibancada da vida de onde se põe a julgar: “sou a favor disso, contra aquilo...” Ética diz respeito ao agir humano, está muito além de boas intenções. Enfim, veremos que a “Carta aos Efésios” exorta-nos a um agir humano libertador, humanizador e integrador com todos os seres vivos e a biodiversidade, em uma relação fraternal, justa, solidária e respeitosa geradora de condições objetivas que garante a vida em todas as suas expressões.

Obs.: No próximo texto, continuaremos esta reflexão na “Carta aos Efésios”.

13/06/23

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[3] Caminho para adquirir o livrinho Texto-Base sobre Carta aos Efésios: https://cebimg.org.br/2023/06/07/mes-da-biblia-2023-carta-aos-efesios-tudo-respira-deus-no-cebi-mg/

[4] Optamos por colocar entre aspas “Carta aos Efésios” ao longo do texto, porque em uma análise mais acurada constatamos que, de fato, não se trata de uma Carta e nem é destinada apenas à Comunidade Cristã de Éfeso.