Gilvander é frei e padre da Ordem dos carmelitas, Doutor em Educação pela FAE/UFMG; bacharel e licenciado em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas, em Minas Gerais.
quarta-feira, 31 de agosto de 2022
terça-feira, 23 de agosto de 2022
“Não se pode despejar comunidade consolidada”. Por Frei Gilvander
“Não se pode despejar comunidade consolidada”. Por Frei Gilvander Moreira[1]
Povo da Ocupação-Comunidade-Bairro Pingo D’água, de Betim/MG, acampado pela 2a vez na Câmara Municipal de Betim: luta por moradia e par impedir despejo. Derrubar o veto do prefeito Medioli e promulgar a Lei do PL 162, que abre caminho para se fazer REURB-S na Comunidade é caminho justo e necessário. 22/8/22. Foto: Frei GilvanderExistem no campo e na cidade, milhares de Ocupações no Brasil, em luta pela terra e por moradia, diante de decisões judiciais que manda reintegrar na posse pretensos donos sem comprovação de posse anterior e sem verificar se cumpria ou não a função social da propriedade. Diante destas decisões judiciais para despejar as famílias e entregar o terreno a uma empresa ou a uma prefeitura, o povo grita na luta por direitos: “Somos uma Comunidade-Bairro em franco processo de consolidação. Ocupamos por necessidade e porque o terreno estava ocioso sem cumprir sua função social.” Em comunidades em processo de consolidação não há que se falar em despejo, pois o direito à moradia das centenas de pessoas é muito mais abrangente do que uma ação judicial de reintegração de posse movida por uma empresa ou prefeitura. A dignidade humana e o respeito às famílias precisa estar acima dos interesses do grande capital. Nas comunidades em desenvolvimento, o terreno ocioso reivindicado não existe mais, pois o que existe no local é uma Comunidade organizada em franco processo de consolidação, dando função social à propriedade que antes estava jogada às traças.
Propor derrubar moradias construídas com muito suor, trabalho, dia e noite, ao longo de vários anos, para entregar o terreno cheio de escombros com a demolição das residências para que uma empresa possa fazer no local um grande empreendimento econômico para lucrar muito é inadmissível e injustiça brutal. Todo despejo é desumano e brutal, pois além de demolir moradias, destrói sonhos, projetos de vida e causa traumas imensuráveis. É ofensiva a proposta de prefeitos de oferecer apenas aluguel social, que é injusto e insuficiente e muitas vezes para de pagar após alguns meses. Oferecer terreno para construir casinhas “caixotes” de 36 metros quadrados é violentar a dignidade das famílias. O justo e necessário é a Câmara de Vereadores aprovar e promulgar Lei que abre caminho para se fazer REURB-S (Regularização Fundiária Urbana de Interesse Social) da área ocupada há vários anos pelas famílias. Justo é o prefeito desapropriar a área ocupada e fazer REURB-S na Comunidade garantindo a vida digna e paz para as famílias. Se o poder público e o mercado já reconhecem as Ocupações, não se pode falar em despejo, por serem Comunidades que geralmente têm ruas organizadas, têm redes de energia e água, muitas famílias pagam contas mensais de água e energia. Há coleta de resíduos sólidos pela prefeitura. As famílias são atendidas nos postos de saúde, UPAs e hospital da cidade. As crianças e adolescentes estudam em escolas municipais e estaduais. Enfim, trata-se de ocupações que se ternaram comunidades organizadas, bairros em franco processo de consolidação.
Temos muitos exemplos que podemos citar de casos em que o Estado (Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo) reconheceu a Comunidade e o despejo não aconteceu. Por exemplo, em abril de 2016, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso Especial 1.302.736, confirmou decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) que negou reintegração de posse contra Ocupação que tinha se tornado bairro em Uberaba, MG. Diante da existência de inúmeras edificações e moradores no local, após tantos anos de disputa judicial, a justiça mineira reconheceu e negou o direito à reintegração de posse em prevalência do interesse público, social e coletivo. A decisão judicial de reintegração foi convertida em perdas e danos a ser paga em dinheiro. Em voto repleto de doutrinas, teses e precedentes, o ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, discorreu sobre os princípios da proporcionalidade e da ponderação como forma de o Judiciário dar aos litígios solução serena e eficiente. O ministro relator ressaltou que “o imóvel originalmente reivindicado não existe mais, já que no lugar do terreno antes objeto de comodato surgiu um bairro com vida própria e dotado de infraestrutura urbana.” Segundo a decisão do STJ, não pode ser desconsiderado o surgimento do bairro, onde inúmeras famílias construíram suas vidas, sob pena de cometer-se injustiça maior a pretexto de fazer justiça.([2])
Outro caso julgado pelo STJ é o do Acórdão da Favela do Pullman, em Santo Amaro, SP, que inicialmente era área destinada a um loteamento, mas foi ocupada pouco a pouco e se tornou um bairro em franco processo de consolidação e o Poder Judiciário reconheceu ao final o “perecimento do direito à propriedade”, ou seja, negou o direito de reintegração. Em 2005, o ministro do STJ, Aldir Passarinho Júnior (Relator) decidiu negar a reintegração de nove lotes com 30 famílias na Favela do Pullman. Na decisão, o ministro Aldir afirma: “Trata-se de favela consolidada, com ocupação iniciada há cerca de 20 anos. Está dotada, pelo Poder Público, de pelo menos três equipamentos urbanos: água, iluminação pública e luz domiciliar. Fotos mostram algumas obras de alvenaria, os postes de iluminação, um pobre ateliê de costureira etc., tudo a revelar uma vida urbana estável. No caso da Favela do Pullman, a coisa reivindicada não é concreta, nem mesmo existente. É uma ficção. Os lotes de terreno reivindicados e o próprio loteamento não passam, há muito tempo, de mera abstração jurídica. A realidade urbana é outra. A favela já tem vida própria, está, repita-se, dotada de equipamentos urbanos. Lá vivem muitas centenas, ou milhares, de pessoas. Só nos locais onde existiam os nove lotes reivindicados residem 30 famílias. Lá existe uma outra realidade urbana, com vida própria, com os direitos civis sendo exercitados com naturalidade. A realidade concreta prepondera sobre a 'pseudo-realidade jurídico-cartorária'. Segundo o art. 77 do Código Civil, perece o direito perecendo o seu objeto. E nos termos do art. 78, I e III, entende-se que pereceu o objeto do direito quando fica em lugar de onde não pode ser retirado. Razões econômicas e sociais impedem a recuperação física do antigo imóvel. O desalojamento forçado de trinta famílias, cerca de cem pessoas – na Favela do Pullman -, todas inseridas na comunidade urbana muito maior da extensa favela, já consolidada, implica uma operação cirúrgica de natureza ético-social, sem anestesia, inteiramente incompatível com a vida e a natureza do Direito. É uma operação socialmente impossível. E o que é socialmente impossível é juridicamente impossível. Em cidade de franca expansão populacional, com problemas gravíssimos de habitação, não se pode prestigiar o comportamento de proprietários que deixam o terreno abandonado sem cumprir sua função social e depois exigem judicialmente reintegração de posse.”
Tal julgado do STJ é inclusive citado pelo TJMG, que em julgamento de recurso (nº 1.0024.13.304260-6/001) envolvendo as ocupações da Izidora, em Belo Horizonte, registrou que o direito de propriedade deve ter correspondência no atendimento à função social, que lhe é inerente, de maneira a buscar a proteção da dignidade humana, fundamento da República (art. 1º, III, da Constituição Federal). Concluiu o desembargador Correia Júnior que prevalece o postulado da dignidade humana em se tratando de questões que envolvem a coletividade da população, mormente por se tratar de desocupação de casas, em que vivem idosos e crianças, com o uso prematuro e inadmissível da força policial, não devendo ser concedida ordem de despejo que favorece o direito de propriedade com violação aos direitos fundamentais.
23/08/2022
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 - “Quando pus porta na nossa casa e parei de pagar aluguel, a vida.” Ocupação Pingo D’água, Betim, MG
2 - “Não aceitamos a MRV e Medioli nos despejarem. REURBs, JÁ!” (Ocupação Pingo D’água, Betim/MG Vídeo 4
3 - Por que não pode haver despejo de 114 famílias da Ocupação/bairro Pingo D’água, Betim, MG? Vídeo 3
4 - "Exigimos Medioli na Mesa de Negociação! DESPEJO, NÃO!" Ocupação Pingo D'água, Betim, MG. Vídeo 2
5 - Celebração de Pentecostes e Dia do Meio Ambiente na Ocupação/bairro Pingo D’água, Betim, MG. Vídeo 1
6 - Manifesto CLAMOR da Ocupação Pingo D’água, Betim/MG.104 famílias, despejo pelo MRV? E Apoio. Vídeo 6
7 - Frei Gilvander: “CEJUSC e Mesa de Negociação, assumam a Ocupação Pingo D’água, Betim, MG!” Vídeo 5
8 - "Prefeito e vereadores de Betim/MG, FAÇAM REURB p Ocupação Pingo D'água p impedir despejo." Vídeo 4
9 - Cadê Direitos dos Pobres da Ocupação Pingo D'água, Betim/MG, sob ameaça de despejo por MRV? Vídeo 3
10 - “Nossa casa, nosso sonho!” “Ocupamos por necessidade”. Ocupação Pingo D’água, Betim/MGX MRV. Vídeo 2
11 - Em Betim/MG, Povo do Pingo D’água proibido de acessar água, banheiro, lar e ao relento na Câmara
12 - Para derrubar veto do Medioli, Povo da Ocupação Pingo D’água, Betim/MG, acampado na Câmara de novo
[1] Padre da Ordem dos Carmelitas; doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FAE/UFMG); licenciado e bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); bacharel em Teologia pelo Instituto Teológico São Paulo (ITESP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da Comissão Pastoral da Terra/MG (CPT), assessor do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI) e das Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no Serviço de Animação Bíblica (SAB), em Belo Horizonte, MG; colunista de vários sites; e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
quarta-feira, 17 de agosto de 2022
Em Josué e hoje, Mulheres no volante da luta pela terra. Por Frei Gilvander
Em Josué e hoje, Mulheres no volante da luta pela terra. Por Frei Gilvander Moreira[1]
Mulheres indígenas ocuparam Brasília em defesa dos seus direitos, dia 15/08/2019. Foto: Tiago Miotto/Cimi
Em setembro de 2022, Mês da Bíblia, o tema bíblico sobre o qual a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) convida todas as pessoas e comunidades cristãs a refletir será o livro de Josué. No sexto e último pequeno texto com chaves de leitura para se ler e interpretar de forma justa e libertadora o livro de Josué apresentamos as Mulheres no volante da luta pela terra.
Na época do pós-exílio, quando o livro de Josué já estava pronto, com as três edições, as mulheres, autoras dos livros de Rute e Cântico dos Cânticos (em + ou – 400 a.E.C.), podem ter inserido, nos primeiros capítulos do livro, escritos na época do rei Josias (640 a 609 a.E.C.), os relatos sobre Raab (Js 2; 6,17.22). Em Js 2, portanto, temos a saga de Raab, em que o clã de uma mulher marginalizada por sua condição social se alia aos hebreus para derrubar a classe dominante da cidade de Jericó e construir uma sociedade alternativa justa e democrática com acesso de todos/as à terra (Js 6,17.22-25). A saga de Raab aglutina inúmeras experiências de grupos cananeus submetidos a relações sociais escravocratas (hapirus) que se integram no povo liberto por Javé da escravidão sob o imperialismo dos faraós no Egito.
No capítulo II do livro de Josué: Raab é duplamente oprimida, por ser mulher e por ter sido empurrada para a prostituição, isto é, prostituída. Em Canaã, a cidade-estado Jericó precisa de Raab, mas como objeto de prazer, coisificada, violada na sua dignidade humana. Raab representa os explorados da cidade-estado, diríamos hoje, das cidades-mercado. Ela se alia aos camponeses expropriados e transformados em sem-terra, porque está indignada com a opressão que se abate sobre si mesma e sobre seu clã. Raab vê no movimento dos rebeldes que marcharam “40 anos pelo deserto” em busca da terra prometida uma alternativa para a construção de relações sociais justas que iria resultar em libertação para ela e para os superexplorados da cidade. Raab descobre que não pode continuar submissa à opressão da cidade e nem ficar neutra diante do iminente embate entre o status quo da cidade opressora e os revoltosos vindos das montanhas e do deserto.
Pressupondo que o capítulo I de Josué também tenha sido acrescentado posteriormente, tem-se hoje a verdadeira porta de entrada do livro de Josué, na primeira versão, em Js 2, com a emblemática narrativa popular, em forma de saga, sobre Raab, que acolhe e protege os espiões da luta pela terra, com muita astúcia, adere à fé em Javé e ao final, é preservada, ela e todo o seu clã. Essa narração, logo no início do livro de Josué pode indicar que de fato a luta pela terra, ao se tornar exitosa não tenha implicado na eliminação de “todos os habitantes”, mas apenas deposto a classe dominante do poderio escravocrata que exercia sobre os grupos marginalizados nas periferias da cidade e nas regiões rurais montanhosas. Js 2, por ser do gênero literário saga indica que a narrativa de Raab representa as experiências congêneres de vários grupos: os escravizados sob o imperialismo dos faraós no Egito, os camponeses empobrecidos e seminômades surrados pelas Cidades-Estados sob o arbítrio dos reis cananeus e grupos urbanos explorados, representados por Raab. Javé liberta todos estes grupos subalternizados e agora irmanados para conviverem de forma fraterna e respeitosa.
As narrativas sobre Raab, a estrangeira prostituída (Js 2,1-21; 6,17.22-25), propõem a superação de um “povo de Deus” etnocêntrico e a abertura a “povos de Deus” irmanados na luta pela terra e pela sua partilha para ser espaço de vida em usufruto e jamais como mercadoria passível de ser vendida ou comprada.
O livro de Josué nos informa que várias outras mulheres conspiravam, irmanadas na luta pela terra, assim como Raab. São elas: Acsa, filha de Caleb, que reivindica terra com poços/fontes de água (Js 15,16-19; Jz 1,12-15; 1Cr 2,49), Maala, Noa, Hegla, Melca e Tersa, filhas de Salfaad, que reivindicam o direito das mulheres à terra como herança (Js 17,3-6; Nm 26,33; 27,1-11; 36). A luta pela terra, tanto na Bíblia como nos tempos atuais, demonstra que o protagonismo das mulheres tem sido imprescindível nas lutas pela libertação da terra das garras do latifúndio, tendo, inclusive, muitas delas sido martirizadas por este compromisso, como, por exemplo, Margarida Alves e a Irmã Dorothy Stang.
Dia 13 de agosto último (2022), tive a alegria de visitar uma camponesa exemplar na luta pela terra e na terra: Santana, companheira de João, assentada no Assentamento Paulo Freire, no município de Arinos, no noroeste de Minas Gerais. Santana e João nasceram na roça no distrito de Serra das Araras, atualmente município de Chapada Gaúcha, MG. Como jovens foram forçados a migrar para Brasília, onde João se tornou pedreiro, e Santana, doméstica e depois diarista. Após mais de dez anos de labuta na capital do Brasil como doméstica e diarista, Santana, já com três filhos pequenos, vendo e sentindo as agruras de mães da periferia que não conseguiam salvar seus filhos adolescentes diante das seduções do submundo das drogas e da falta de oportunidades para educar os filhos com dignidade, ela pensou consigo mesma e disse ao João: “O melhor lugar para criar nossos filhos é na roça, no campo, não é aqui na cidade. Quero entrar na luta pela terra junto com os sem-terra do MST[2].” João não se opôs. Com dois filhos pequenos, Santana acampou debaixo do barraco de lona preta em um acampamento no município de Uruana de Minas, vizinho do município de Arinos, no noroeste de MG. Após três anos de muita luta, Santana conseguiu ser assentada no Assentamento Elias Alves, em Uruana de Minas, mas em um lote que não tinha água. Depois, Santana e João conseguiram se transferir para um lote que nenhuma família estava aceitando no Assentamento Paulo Freire, no município de Arinos. Trocaram um lote que não tinha água por um lote que em parte do ano fica alagado pelas enchentes do rio Urucuia que represa o rio Claro. De 2012 pra cá, Santana e João se tornaram um ótimo exemplo de reforma agrária. Toda quarta-feira e aos domingos, Santana, em uma motocicleta, leva cerca de 110 quilos de feijão, abóbora, ovos, queijo etc para vender na feira dos Pequenos Agricultores na cidade de Arinos. João diz feliz da vida: “Uma família assentada como a nossa alimenta cinco famílias lá na cidade. E mais: gera saúde também para o povo lá da cidade, pois nossa plantação aqui é toda agroecológica.”
Enfim, a luta pela partilha da mãe terra em usufruto passou por Raab e por muitas mulheres da Bíblia e da história da humanidade e hoje passa por Santana e João. Assista abaixo videorreportagem que gravei com Santana e João.
17/8/2022
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Chaves de leitura do livro de Josué: Partilha da terra - Mês da Bíblia 2022. Por Ildo Bohn e CEBI/MG
2 - Bíblia, Palavra que Ilumina e Liberta. Dia da Bíblia, 30/9/21. Por Frei Gilvander, Irmã Ivanês etc
3 - Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5
4 - Filme PEDRA EM FLOR, de Argemiro Almeida, 1992. CEBs e Leitura Popular da Bíblia. Frei Carlos Mesters
5 - Frei Carlos Mesters entrevistado por frei Gilvander: Inspirações da Bíblia para sermos humanos
6 - COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro
7 - Formação para o Mês da Bíblia 2022 - O livro de Josué. Por Francisco Orofino
8 - Ótimo exemplo de Reforma Agrária: P.A Paulo Freire, em Arinos/MG, Santana: "melhor lugar!" Vídeo 1
9 - Santana, mulher exemplar no P.A Paulo Freire, em Arinos/MG! Que exemplo de luta pela Reforma Agrária
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – www.mst.org.br
terça-feira, 9 de agosto de 2022
Em Josué, visão mística da luta pela terra. Por Frei Gilvander
Em Josué, visão mística da luta pela terra. Por Frei Gilvander Moreira[1]
Legenda: Marcha do MST pela BR-324 em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador (RMS), Bahia, em 14/04/2022.Siga comigo mais um pouco de reflexão sobre o livro bíblico de Josué, que será o tema do Mês da Bíblia de 2022, em setembro. O livro de Josué se destina aos grupos sociais marginalizados de todos os povos escravizados. No livro de Josué, a palavra terra (erets, em hebraico), aparece 121 vezes[2]. A terra é também adamah (Js 23,13.15), terra fértil, húmus, fonte de vida. Segundo o livro de Josué, a terra não pertence aos senhores deste mundo, mas a Deus[3]. A terra é boa (Js 23,13.15.16); nela corre leite e mel (Js 5,6). É terra sagrada, como “santuário de Javé”, em que se entra com os pés descalços (Js 5,15; cf. 24,26). Todas estas expressões indicam o que significa a terra para povos sem-terra, que têm a fé segundo a qual a terra é prometida por Deus a todos/as, mas que esta promessa não cai pronta do céu, exige-se luta para conquistá-la e socializá-la, ou seja, a terra é dom que exige luta coletiva para conquistá-la. A terra é graça, é dom, é presente, é dádiva. Deus a “dá” a seu povo[4]. Essa mística é enfatizada à exaustão, porque a realidade está sendo o oposto disso: terra privatizada em poucas mãos, seja de reis cananeus ou de imperialistas e “reis” constituídos por vacilo do povo.
A terra é dom, dádiva que se torna realidade na luta dos povos escravizados e organizados. Deus solidário e libertador, Javé age, não de cima pra baixo, de forma mágica, mas age em quem luta coletivamente testemunhando o projeto de Javé. A terra é dom na conquista, com uso de estratégias e táticas (Js 8), o que pode passar por: espionagem (Js 2; 7,2), emboscada (Js 8), enganações (Js 9,3-18), alianças (Js 9), solidariedade (Raab e tribos do Além Jordão), sagacidade (como a dos gabaonitas, que percebem os critérios para aliança entre os empobrecidos e os indicativos de vulnerabilidade do inimigo (Js 9,4-6). A terra é “herança” (nahalah, em hebraico)[5]. Herdar (verbo NHL, em hebraico)[6]. Lote/parte/porção (heleq)[7].
Pela infinidade de vezes em que se repete no livro de Josué que a terra é herança, podemos concluir que afirmar ser a terra herança é uma forma de refutar com veemência o aprisionamento da terra em poucas mãos gananciosas, expropriando-a dos camponeses posseiros. Afirmar e reafirmar de forma peremptória que a terra é herança é dizer com ênfase nas entrelinhas que a terra não é mercadoria para ser vendida, comercializada, pois é presente, dádiva de Deus. Herança é apenas para posse e usufruto coletivo, a ser exercido pelos/as herdeiros/as com responsabilidade social, ambiental e geracional[8]. Pelos clãs/famílias/casas (mishpahah, em hebraico) (47 vezes) e (bayt (24 vezes em Josué) - o que está na linha da agricultura familiar camponesa.
Segundo a vontade de Javé, a terra precisa ser partilhada (HLQ, verbo em hebraico)[9], não por mérito e nem por critérios de um Estado cúmplice do latifúndio e do status quo opressor, mas segundo as necessidades (Nm 26,52-56; 33,53-54). O livro de Josué acentua que o exercício do poder prima pela participação popular. As decisões são tomadas em assembleia, em reunião, em comunidade (qahal, em hebraico): Js 8,35;
(edah), em hebraico)[10].
Na luta pela terra, realizada com muita fé em Deus Javé, em si mesmo, nos/as companheiros/as, Deus vai junto, é parceiro, é presença - Shekinah - (Js 1,5.9). Deus luta junto, derruba os opressores (Js 6,2; 8,1; 10,8.12). A Terra conquistada (Js 1-12) precisa se tornar terra partilhada (Js 13-19), terra libertada das mãos dos reis opressores e latifundiários espoliadores, ontem e hoje. A Terra é para ser herança, trabalhada em usufruto e jamais comercializada. O livro de Josué cheira a terra. Terra boa, sagrada (Js 5,15; 24,26). A partilha da terra foi o fundamento para um novo sistema econômico, político e sociorreligioso, que se opunha à escravidão e opressão então dominantes, tanto no Egito com o imperialismo dos faraós quanto em Canaã, onde a terra se concentrava nas mãos dos reis nas Cidades-Estados.
O livro de Josué não legitima ‘guerra santa’ contra os povos que se opõem ao povo que luta pela terra. Legitima, porém, a luta de hoje, justa e necessária, para que a terra seja libertada das garras do latifúndio e do agronegócio e se torne território de todos e todas, no qual reinem relações sociais de justiça, respeito e solidariedade. A intrepidez com que os camponeses lutam pela terra não é porque querem a eliminação física dos latifundiários, mas é que, movidos pela fé no Deus Javé, sabem que a forma libertadora de amar os inimigos é retirar das suas mãos opressoras as armas da opressão. E o latifúndio é uma arma nas mãos dos latifundiários e dos agronegociantes. Libertá-los desta arma é sinal de amor ao próximo. Por isso, a luta pela terra visa criar as condições materiais objetivas para que, de fato, Terra de Deus seja terra do povo, que vive a verdadeira fraternidade entre si e com a natureza. A terra é dom, mas exige conquista, enfatizamos.
E agora, José? E agora, Maria? Em sociedades com relações sociais escravocratas, que reproduzem a latifundiarização, partilhar e socializar a terra é ato revolucionário e tem o aval do Deus Javé, porque cria condições materiais objetivas que viabilizam respeito à dignidade humana. Atualmente, as muralhas que precisam ser derrubadas não são as de Jericó, mas as muralhas que são as cercas dos latifúndios, o sistema capitalista, o agronegócio, com monoculturas insustentáveis ambientalmente e uso indiscriminado de agrotóxicos, o Estado capitalista, o poder midiático, os fundamentalismos religiosos, com todos os seus vassalos que violentam brutalmente, diariamente. E, o que é pior: mesmo sendo violentadores, acusam de violenta a contra violência, a resistência popular, a fim de continuarem reproduzindo mais violência.
(Obs.: No 6º artigo, seguiremos a reflexão sobre o livro de Josué).
09/8/2022
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Chaves de leitura do livro de Josué: Partilha da terra - Mês da Bíblia 2022. Por Ildo Bohn e CEBI/MG
2 - Bíblia, Palavra que Ilumina e Liberta. Dia da Bíblia, 30/9/21. Por Frei Gilvander, Irmã Ivanês etc
3 - Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5
4 - Filme PEDRA EM FLOR, de Argemiro Almeida, 1992. CEBs e Leitura Popular da Bíblia. Frei Carlos Mesters
5 - Frei Carlos Mesters entrevistado por frei Gilvander: Inspirações da Bíblia para sermos humanos
6 - COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro
7 - Formação para o Mês da Bíblia 2022 - O livro de Josué. Por Francisco Orofino
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Cf. Js 1,2.4.6.11.13.14.15.15 ...
[3] Cf. Js 3,11.13; 2,11; Ex 19,5; Lv 25,23; Dt 10,14; Sl 24,1-2; 97,5; Is 66,1-2.
[4] Js 1,2.6.11.13.14.15.15; 2,9.14.24; 5,6; 9,24; 11,23; 12,6.7; 13,8.15.24.29.31.33; 14,3.12.13; 15,13; 17,4.14; 18,3.7; 21,43; 22,4.7; 23,13.15.16; 24,4.13.33.
[5] Js11,23; Js13,6.7.8.14.14.23.28.32.33; Js14,1.2.3.3.9.13.14; Js15,20; Js16,4.5.8.9; Js17,4.4.6.14; Js18,2.4.7.20.28; Js19,1.1.2.8.9.9.10.16.23.31.39.41.48.49.51; Js 21,3; Js 24,28.30.32.
[6] Js1,6; Js16,4; Js17,6; Js19,9.49.51.
[7] Js 14,4; 15,13; 18,5.6.7.9; 19,9; 22.25.27.
[8] 1Rs 21,3; Lv 25,23; Nm 36,7). Pelas tribos (aparece em Josué 79 vezes): shebéth (32 vezes) e matheh (47 vezes.
[9] Js 13,7; 14,1.5; 18,2.5.10; 19,51; 22,8.
[10] Js 9,15.18.18.19.21.27; 18,1; 20,6.9; 22,12.16.17.18.20.30.