terça-feira, 12 de outubro de 2021

Quanto mais capitalismo, mais superexploração. E a luz da cruz? Por Frei Gilvander

Quanto mais capitalismo, mais superexploração. E a luz da cruz? Por Frei Gilvander Moreira[1]


Durante a marcha histórica do capitalismo, “a força externa que impunha a atividade ao indivíduo se internalizou; agora no contexto da igualdade “natural” dos indivíduos, cada um aparece como um sujeito atomizado buscando seu próprio interesse enquanto, de fato, realiza o interesse do capital social total” (IASI, 2006, p. 217). Mas como tudo o que é sólido se desmancha no ar, com a evolução desenfreada das forças produtivas, o que faz aumentar a exploração dos trabalhadores, dos camponeses, da terra, das águas e de toda a biodiversidade, as ideias da classe dominante por si mesmas não conseguem mais justificar a crescente opressão: exploração e expropriação, crescentes em progressão geométrica. Cria-se uma crise ideológica e muitos trabalhadores adquirem uma consciência diferente ao perceber que o interesse da classe dominante não é interesse universal, mas ilusões e hipocrisias deliberadas que sopram vento no moinho do capital. “Quanto mais a forma normal das relações sociais e, com ela, as condições da classe dominante acusam a sua contradição com as forças produtivas, quanto mais cresce, em decorrência, o fosso cavado no seio da própria classe dominante, fosso que separa esta classe da classe dominada, mais naturalmente se torna nestas circunstâncias, que a consciência que originalmente correspondia a esta forma de relações sociais se torna inautêntica: dito por outras palavras, essa consciência deixa de ser correspondente, e as representações anteriores que são tradicionais desse sistema de relações [...] degradam-se progressivamente em meras fórmulas idealizantes, em ilusão consciente, em hipocrisia deliberada” (MARX; ENGELS, 2007, p. 283).



Uma segunda forma possível de consciência como processo não linear em movimento trata-se da consciência em si que pode ocorrer quando as pessoas agem coletivamente e vislumbram, para além da possibilidade de se revoltar isoladamente, uma possibilidade de alterar as  relações de espoliação do capital. Nesse ponto, as trabalhadoras e os trabalhadores agindo em grupo tecem relações que explicitam os elos e a identidade do grupo e seus interesses próprios, que contrastam com os interesses de quem lhes são opostos. Nessa fase, “o proletariado ao se assumir como classe, afirma a existência do próprio capital. Cobra desse uma parte maior da riqueza produzida por ele mesmo, alegra-se quando consegue uma parte um pouco maior do que recebia antes” (IASI, 2011, p. 31). É a fase corporativa, aquela que pauta a luta por reivindicar melhores salários e melhores condições de trabalho “para mim, para nós”: os trabalhadores de uma empresa específica. Não questionam o sistema do capital, apenas reivindicam uma fatia um pouco maior das migalhas que recebem ao vender sua força de trabalho ao patrão. “Quem reivindica ainda reivindica de alguém. Ainda é o outro que pode resolver por nós nossos problemas” (IASI, 2011, p. 31). Trabalhadoras e trabalhadores que assim lutam ainda estão dentro das relações do capital e muito longe de emancipação humana, que é fazer a história com as próprias mãos, superando todo e qualquer tipo de exploração, seja humana, seja ecológica. Apenas se reconhecendo como classe proletária os trabalhadores negam o capitalismo afirmando-o, questiona-o, mas aceitam-no como modo de vida social.

Nós, seres humanos, – trabalhadores e camponeses - temos condições de construir a nossa história com as próprias mãos, mas não de forma independente como quisermos. “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhe as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2011, p. 25). Na sociedade capitalista o indivíduo é o foco como se fosse uma célula isolada e autossuficiente; é levado a agir dentro do seu tempo de vida, até a morte. Diferentemente, em perspectiva emancipatória da classe que age em grupo, coletivamente, a história é feita por nós, mas continua sendo feita após nossa morte. Assim, na luta pela terra e por moradia, os Sem Terra e os Sem Teto não terminam em si mesmos, pois se tornam raios de luzes para os que nos seguirão após nossa morte. Nesse tom, canta Victor Jara sobre a morte do padre Camilo Torres, tombado no fronte de luta dos revolucionários colombianos, dia 15 de fevereiro de 1966: “Onde caiu Camilo nasceu uma cruz, porém não de madeira, mas de luz”.[2]

O conceito marxiano de emancipação humana se coloca na contraposição de emancipação política e aparece na obra Sobre a questão judaica como crítica a Bruno Bauer. Para Marx não basta perguntar quem seria emancipado, porque “não há mais emancipação pura e simples. Seu problema é precisamente esclarecer de que emancipação se trata” (MARX, 2010, p. 21). Marx alerta que não dá para se contentar apenas com emancipação política. Diz ele que “desde 1844, não se trata mais de refazer o caminho da Revolução Francesa, de marchar sobre seus rastros, mas de empreender uma revolução inédita, inaudita, sem precedente. Não se trata de obter somente a emancipação política, mas de atingir a emancipação humana” (MARX, 2010, p. 16). Até porque a tríade da Revolução Francesa era liberté, égalité e fraternité (Liberdade, Igualdade e Fraternidade), mas com o fortalecimento do poder econômico da burguesia a fraternité desapareceu e foi substituída pela onipotente proprieté (Propriedade), que no capitalismo ganhou ares quase absoluto reduzindo a liberté e a égalité aos seus aspectos formais e abstratos.

12/10/2021

Referências

IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

_______. As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.

______.  Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.  

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente Filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

 

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Rodoanel na Fazenda do Rosário, Associação Pestalozzi, Jd. do Rosário, Ibirité/MG. Vídeo 7 –10/10/21

2 - Rodoanel afetará brutalmente a região da Fundação Helena Antipoff em Ibirité, MG. Vídeo 6 – 10/10/21

3 - Em Ibirité, MG, o Rodoanel do Zema e da Vale S/A trará brutal devastação também. Vídeo 5 – 10/10/21

4 - "Tem que garantir moradia p/ famílias da Ocupação Irmã Dorothy, Salto da Divisa/MG." (Dr. João, DPU)

5 - Território Geraizeiro, norte de MG: atentado brutal, incêndio criminoso, no município de Grão Mogol

6 - Gigante Ato Público e Marcha por “FORA, BOLSONARO!”, Belo Horizonte/MG. Por Frei Gilvander, 02/10/21



 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

[2] https://www.youtube.com/watch?v=_rllf7Df10o&feature=youtu.be : 50 anos do martírio de Padre Camilo Torres.

Rodoanel na RMBH devastará a região da Associação Pestalozzi, Jardim do Rosário e outros bairros de Ibirité, MG, também. Vídeo 8 – 10/10/2021.

Rodoanel na RMBH devastará a região da Associação Pestalozzi, Jardim do Rosário e outros bairros de Ibirité, MG, também. Vídeo 8 – 10/10/2021.


quarta-feira, 6 de outubro de 2021

(De)formação da consciência no sistema do capital. Por Frei Gilvander

(De)formação da consciência no sistema do capital. Por Frei Gilvander Moreira[1]


Cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas” (MARX [1875], 2012, p. 22, em carta a Wilhelm Bracke). Na sociedade do capital, “mundo antagônico ao humano e à vida” (IASI, 2011, p. 9), e especificamente no capitalismo, sistema histórico atual da sociedade em que vivemos, a sociabilidade é organizada em classes – a dos proprietários dos meios de produção (terra, indústria, fábrica etc.) e do capital financeiro, a dos trabalhadores expropriados da propriedade dos meios de produção – classe trabalhadora e campesinato -, uma pequena burguesia, eufemisticamente chamada de ‘classe média’, classes com interesses antagônicos inconciliáveis. A classe dominante, ao dominar, espolia e superexplora cada vez mais a classe trabalhadora e o campesinato. Acontece assim opressão de classe, o que suscita indignação e desencadeia rebeliões fazendo eclodir a luta de classes, que na sua dinâmica articula os aspectos objetivos e subjetivos que podem caminhar para a formação dos trabalhadores enquanto classe proletariada, não apenas como uma classe explorada da sociedade do capital, mas uma classe que se opõe ao capital e pode se tornar portadora de novas relações sociais para além do capital, em um novo tipo de sociabilidade humana emancipada.

A consciência não é tudo, mas sem ela não é possível empreender uma caminhada/luta de emancipação humana. Julgamos pertinente e necessário elucidar o que seja consciência e como ela se forma ou se deforma. Consciência não é uma coisa. Se fosse, ao adquiri-la a teríamos pronta e acabada. E se não a tivéssemos, estaríamos em uma situação de “não consciência”. Mas consciência envolve processo, um movimento e não é algo dado e acabado. Assim como, segundo a filosofia existencial sartreana, o homem não é, mas se torna. “A existência precede a essência. [...] O homem não é mais que o que ele faz” (SARTRE, 1978, p. 6). Assim, também “a consciência não é”, “se torna”” (IASI, 2011, p. 12). Se o processo de emancipação humana implica e exige a formação de uma consciência humana para além do capital, é necessário compreendermos como se forma ou se deforma a consciência e seu processo de evolução ou de involução. A consciência se forma em várias fases ou formas. “A consciência é gerada a partir e pelas relações concretas entre os seres humanos, e desses com a natureza, e o processo pelo qual, em nível individual, são capazes de interiorizar relações formando uma representação mental delas” (IASI, 2011, p. 14).

Na luta pela terra e pela moradia, na sua preparação de base, na ocupação de um latifúndio que não cumpre sua função social, de um terreno ocioso ou prédio abandonado e na resistência para impedir despejo (reintegrasse de posse) uma série de relações concretas se estabelece entre os Sem Terra e os Sem Teto envolvidos na luta comum por bens comuns: terra e moradia. As condições objetivas estabelecidas na luta pela terra e pela moradia incidem sobre as consciências das pessoas, conclamando-as para abraçar processos emancipatórios. Por outro lado, quando as trabalhadoras e os trabalhadores permanecem isolados vendendo a si mesmos ao vender sua força de trabalho no altar do capital – mercado idolatrado -, outras condições objetivas, aqui as do capital, incidem moldando as consciências segundo a ideologia dominante, a que beneficia os interesses da classe dominante. “A primeira instituição que coloca o indivíduo diante de relações sociais é a família” (IASI, 2011, p. 15). Uma família comprometida na luta pela terra e/ou pela moradia não estará tão indefesa nas garras da consciência trombeteada aos quatro ventos pelo capital.

A classe dominante domina não apenas porque detém o poder econômico do capital, mas também porque seus indivíduos têm consciência, são pensadores e produzem ideias que são veiculadas como se fossem ideias universais. “Os indivíduos que compõem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em toda a sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época” (MARX; ENGELS, 2007, p. 47).

Acima da família, é no mundo do trabalho que a consciência é (de)formada. A lógica imposta pelo capital é assimilada e interiorizada pela maioria dos trabalhadores que vão ‘espontaneamente’ ao altar do ídolo mercado para serem sacrificados um pouco a cada dia. “As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação” (MARX; ENGELS, 2007, p. 47).

Observe-se que as ideias dominantes se tratam de expressão ideal das relações materiais dominantes e não apenas expressão ideológica, como muitas vezes é traduzido. Por ser expressão ideal, no nível das ideias, as ideias dominantes são algo também ideológico no sentido de que escondem as relações de opressão embutidas nas relações sociais do capital. Assim, a primeira forma de consciência normalmente é alienada, pois, ao assimilar as experiências próximas e concretas, tende-se a amoldar a uma forma que naturaliza o que é construído historicamente em relações de poder. “A família, que antecede, no tempo, sua ação no indivíduo em relação às atividades econômicas de produção, é por sua vez determinada por essas relações, na verdade as mediatiza. Aquilo que determina é determinado” (IASI, 2011, p. 26). Não nascemos em uma família tábula rasa e nem em uma sociedade no seu ponto zero. Desde o ventre materno já somos influenciados/condicionados e, ao nascer, caímos em um mundo do capital, no nosso caso, no sistema capitalista. As famílias que determinam em parte a consciência de seus filhos são determinadas pelo sistema do capital, que parece ser uma forma incontrolável de controlar as pessoas - e toda a biodiversidade -, como afirma István Mészáros: “Antes de mais nada, é necessário insistir que o capital não é simplesmente uma “entidade material” – também não é um “mecanismo” racionalmente controlável, como querem fazer crer os apologistas do supostamente neutro “mecanismo de mercado” (a ser alegremente abraçado pelo “socialismo de mercado”) – mas é, em última análise, uma forma incontrolável de controle sociometabólico” (MÉSZÁROS, 2011, p. 96).

Enfim, para início de conversa, para compreendermos a formação ou a deformação da consciência em uma sociedade capitalista não basta analisar as ideias que circulam no meio social, mas é imprescindível compreender a trama das relações sociais de opressão e exploração que condicionam e muitas vezes determinam a construção ou destruição de consciência emancipatória.

06/10/2021

Referências

IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente Filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. 1ª edição revista. São Paulo: Boitempo, 2011.

 

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Rodoanel demolirá milhares de casas na RMBH. Carro de som NAS RUAS de bairros de BH -Vídeo 4–3/10/21

2 - Carro de som NAS RUAS CONTRA o Rodoanel: Mineirão e Independência/BH. Alenice/Henri. Vídeo 3–3/10/21

3 - Gigante Ato Público e Marcha por “FORA, BOLSONARO!”, Belo Horizonte/MG. Por Frei Gilvander, 02/10/21

4 - Protagonismo da Ocupação Cidade de Deus, Sete Lagoas, MG, 29/9/21. VISITA de autoridades. Vídeo 2

5 - Visita à Ocupação Cidade de Deus, Sete Lagoas: Dr. Afonso, Dr. Paulo, Dom Francisco. Vídeo 1-29/9/21

6 - Povo fica indignado ao saber da brutalidade do Rodoanel no Barreiro em BH e RMBH. Vídeo 2 - 25/09/21

7 - Socorro! Idosos sem água e sem energia na Ocupação Vitória na Izidora em BH. Cadê COPASA? - 23/09/21



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III