terça-feira, 15 de junho de 2021

Analfabeto político é cúmplice do genocídio. Por Frei Gilvander

 Analfabeto político é cúmplice do genocídio. Por Frei Gilvander Moreira[1]


Felizes os que constroem a paz, pois serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5,9), bradou Jesus Cristo no Discurso da Montanha, na Palestina, colônia com povo escravizado e explorado pelo Imperialismo Romano. Vivemos em uma Casa Comum, onde tudo está interconectado com tudo. Sendo assim, não há espaço para neutralidade e omissão, pois toda “postura neutra e de omissão” se torna, na prática, cumplicidade. Todo analfabeto político, que elege os piores políticos, não é apenas omisso diante das injustiças que os podres políticos causam ao não governar para o bem comum, mas para privilegiar aliados da classe dominante. Vejamos alguns exemplos!

Na Zona da Mata Mineira, na cidade de Tombos, MG, que tem oito mil habitantes, em tempos de pandemia da covid-19, já com 21 pessoas mortas, o prefeito Tiago Pedrosa Lazarone Dalpério (PP – Partido Progressista), assinou o Decreto Municipal N° 125/2021, de 20 de maio de 2021, desapropriando um terreno de propriedade da Associação dos Pequenos Agricultores e Trabalhadores Rurais de Tombos (APAT), terreno vendido para oito famílias que adquiriram lotes, onde algumas estão construindo, outras já estão residindo, além de ter ali uma plantação com diversas hortaliças, mandioca e abóbora que ajudam nas finanças de uma família que faz uso da terra desenvolvendo atividade de Agricultura Familiar. Agora todos foram pegos de surpresa pelo Decreto de desapropriação dos terrenos das oito famílias. O motivo aparente apresentado pelo prefeito, ao desapropriar, é que precisa do terreno de 4.600 metros quadrados (quase ½ hectare, ½ campo de futebol) para fazer um canil, “um centro de zoonose para cães”. Entretanto, é de conhecimento de todos/as que a Prefeitura de Tombos dispõe de vários terrenos, alguns em situação de abandono, onde pode ser construído um canil sem nenhum custo com indenização, para cuidar dos animais que não têm culpa por essa atitude injusta e perseguidora contra os trabalhadores e trabalhadoras rurais. O terreno e as construções das oito famílias valem mais de um milhão de reais. No entanto, no decreto do prefeito foi avaliado em apenas 80 mil reais, ou seja, menos de 7% do valor real. Além do valor econômico das oito pequenas propriedades, há valor de memórias de anos de luta, dignidade e respeito ao povo Tombense, tudo isso sendo violado e pisado nesta decisão absurda do prefeito.

Em Sete Lagoas, MG, com 242 mil habitantes, já com mais de 540 mortos pelo genocídio coordenado pelo desgoverno federal, há um déficit habitacional acima de 15 mil moradias, uma tremenda desigualdade social na cidade. Em 17 maio de 2020, há mais de um ano, cerca de 200 famílias ocuparam um terreno da prefeitura de Sete Lagoas, terreno que estava abandonado há décadas, sem cumprir sua função social. O atual prefeito de Sete Lagoas, Duílio de Castro (do Partido Patriota), durante a campanha eleitoral, visitou a Ocupação Cidade de Deus e prometeu para as famílias que não iria requerer reintegração de posse, que iria regularizar fundiariamente a permanência das famílias na área ocupada. Fez isso para ganhar votos. Entretanto, na prática, o prefeito requereu judicialmente a reintegração de posse, alegando que “é área verde”, o que não é verdade. A juíza da Vara da Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Sete Lagoas, Wstânia Barbosa Gonçalves, determinou liminar de reintegração de posse, mandando a prefeitura arrumar abrigo provisório para as famílias. As famílias têm direito à moradia permanente e adequada e não apenas a “abrigo provisório”. A prefeitura de Sete Lagoas está fazendo vistas grossas com a invasão de áreas ambientais por famílias ricas. Para beneficiar famílias ricas, a prefeitura desafetou um terreno que era Área Ambiental para colocar como preferencialmente para habitação, ao lado do shopping, próximo da Serra Santa Helena. Esta gravíssima injustiça social acontece em Sete Lagoas, enquanto o prefeito já colocou à venda mais de 100 terrenos da prefeitura e já anunciou que pretende vender para uma construtora o terreno onde estão as 100 famílias da Ocupação Cidade de Deus. Poderíamos citar muitos outros exemplos de injustiças que estão sendo praticadas por prefeitos, governadores, antipresidente etc.

A CPI[2] da covid-19 no Senado Federal já concluiu que a política genocida do antipresidente e do desgoverno federal, com a cumplicidade de 70% dos deputados/as e senadores/as, parte do Supremo Tribunal Federal e parte da mídia, é responsável por mais de 400 mil mortes que poderiam ter sido evitadas, caso o (des)governo Federal tivesse comprado vacina para os 213 milhões de brasileiros/as, no final de 2020, e não tivesse implementado politica negacionista com falsos remédios e sempre desdenhando da ciência e das orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Trata-se de uma política para matar os mais enfraquecidos, uma eugenia não declarada. Pesquisas comprovam que o número de mortos pela covid-19 foi muito maior nos estados e municípios (des)governados por bolsonaristas (políticos do centrão, da direita e extrema direita). A todos esses dedicamos a profecia do profeta Isaías, que, com ira santa, exorta: “Ai daqueles que fazem decretos iníquos e daqueles que escrevem apressadamente sentenças de opressão, para negar a justiça ao fraco e fraudar o direito dos pobres do meu povo, para fazer das viúvas a sua presa e despojar os órfãos” (Isaías 10, 1-2).

Todos os/as eleitores/as têm responsabilidade sobre as ações políticas dos seus políticos eleitos. Óbvio que as lideranças, sejam elas religiosas ou não, a mídia e todos que influenciam o povo durante a campanha eleitoral são os primeiros e maiores (ir)responsáveis. Errar é humano, mas permanecer no erro é mais do que burrice, é se tornar cúmplice dos políticos opressores. E não basta arrepender por ter votado errado e chegar na próxima eleição votar em nomes diferentes, mas opressores como os anteriores. A história das eleições demonstra que os políticos do centrão, da direita e da extrema direita (PSL, NOVO, Democratas, Progressistas, PTB, PSD, PMDB, PL, PSDB, PSC, Podemos, PRTB, PMB etc) governam contra o povo, contra o meio ambiente e a favor dos grandes empresários e capitalistas. Os partidos e políticos de esquerda ou de centro-esquerda (UP, PCO, PSTU, PCB, PSOL, PT, PCdoB, PSB, REDE, PDT etc) não são perfeitos, mas implementam políticas sociais que são vitais para assegurar algum nível de respeito à dignidade humana e aos direitos sociais garantidos pela Constituição Federal. O fato é que voto não tem preço, tem consequências! “Somos seres políticos”, já dizia o filósofo Aristóteles. Ingenuidade dizer: “Sou apolítico. Não gosto de política. Sou neutro.” Errado dizer “todo político é corrupto”. Há, sim, uma minoria de políticos que são éticos e tentam governar para o bem comum. Todos nós fazemos Política o tempo todo. Política é como respiração. Sem respiração, morremos. Política refere-se ao exercício de alguma forma de poder, como nos ensina Bertold Brecht em “O Analfabeto Político”. A política, como vocação, é a mais nobre das atividades; como profissão, a mais vil.

A história da humanidade mostra muitos povos que foram seduzidos por “espinheiros” que, com mil artimanhas, acabaram sendo eleitos e exerceram o poder oprimindo, violentando e explorando o povo. Por exemplo, o imperador Nero se deleitava em jogos no Coliseu enquanto incendiava Roma, a capital do império; Benito Mussolini, eleito pelo povo, se tornou o criador do fascismo e um ditador; Adolf Hitler, também aclamado pelo povo diante do seu populismo, se tornou nazista contumaz e mandou matar em campos de concentração milhões de judeus, comunistas, ciganos, homossexuais etc. A história mostra também que todos os ‘espinheiros’ eleitos usam e abusam do nome de Deus e dizem defender os “valores da família”, mas na prática colocam “a morte acima de tudo” e arrasam com as famílias e todo o povo de mil formas. 



Atribuído a Bertolt Brecht, o texto “O Analfabeto Político” mostra as consequências que o analfabeto político causa: "O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio dos exploradores do povo.” Nascem também os políticos fascistas e genocidas. Por isso, os analfabetos políticos são cúmplices das políticas genocidas em curso no Brasil. Convertam-se antes que seja tarde demais!

15/06/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Live-denúncia: Prefeito de Tombos, MG, desapropria 8 famílias para fazer canil. Despejar famílias para abrigar cães? - 12/6/2021

2 - Visão panorâmica da área de 8 famílias da APAT desapropriadas pelo prefeito de Tombos, MG: injustiça que clama aos céus – 10/6/2021.

3 - Injustiça! Prefeito de Tombos, MG, Tiago Dalpério (PP), desapropriou 8 famílias p/ fazer um canil

4 - Povo da Ocupação Cidade de Deus, de Sete Lagoas, MG, marcha na luta contra despejo: Diocese e Câmara Federal pedem suspensão do despejo – 25/5/2021

5 - Três mulheres de luta dizem: “O justo é NÃO DESPEJAR a Ocupação Cidade de Deus, de Sete Lagoas, MG” – 24/5/2021.

6 - Padre, mãe com 6 filhos e avó com câncer clamam para não serem despejados em Sete Lagoas/MG -23/5/21

7 - Plantão das Lutas direto de Sete Lagoas, MG, na Ocupação Cidade de Deus: “DESPEJO, NÃO!” – 20/5/2021

8 - Atos "Fora, Bolsonaro!, Vacina Já! E Auxílio Emergencial de 600,00, já!" - SÍNTESE de dezenas de cidades - 29/5/2021



 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Comissão Parlamentar de Inquérito.

terça-feira, 8 de junho de 2021

Sabedoria libertadora de Jesus: e nós? Por Frei Gilvander

 Sabedoria libertadora de Jesus: e nós? Por Frei Gilvander Moreira[1]


Em contexto de deturpação da imagem verdadeira de Jesus Cristo privatizado e domesticado por certos tipos de movimentos religiosos (neo)pentecostais na linha da “teologia” da prosperidade, melhor dizendo, ideologia da prosperidade, faz-se necessário e imprescindível resgatarmos o Jesus histórico com sua sabedoria libertadora, o que poderá inspirar nossa postura ética no rumo da superação das gravíssimas injustiças e violências que campeiam no nosso país.

O que é sabedoria libertadora? É o conhecimento e a práxis que libertam, com sabor de vida, não é intelectualismo e nem erudição, muito menos tecnicismo. A sabedoria popular é sábia, mas, muitas vezes, ambígua e, às vezes, contraditória e pode estar contaminada pela ideologia dominante, que são ideias da elite, ideias particulares a partir do lugar social de dominação que são trombeteadas aos quatro ventos como se fossem ideias universais. Entretanto, são meios que carregam preconceitos, discriminações e escamoteiam as verdadeiras causas das injustiças sociais colocando os violentados como responsáveis últimos das violências que sofrem.

Jesus não nasceu sábio e pronto, mas, ao longo da sua curta vida, se tornou um sábio libertador, aprendeu muito com todos/as e com tudo. No ventre de Maria grávida de Jesus, Deus assume o humano. Por ser “filho de mulher” (Gal 4,4), Jesus aprendeu que o divino transcende o humano, mas está tão unido ao humano como “carne e unha”. Na carpintaria de José operário, homem justo, Jesus tomou consciência de ser da classe trabalhadora. Com Maria, sua mãe, e as mulheres da Galileia, Jesus aprendeu a não ser machista e nem patriarcal. Por isso, mesmo em contexto patriarcal que proibia homem entrar em casa onde só tivesse mulheres, Jesus entrou na casa de Marta e Maria e acolheu Maria como discípula e ainda corrigiu com fraternidade Marta, convidando-a a se desvencilhar das amarras do mundo privado e a participar como Maria da vida pública (Cf. Lc 10,38-42).

Em uma Sinagoga da periferia, na Galileia, Jesus aprendeu a ser porta-voz dos exilados e escravizados. Por isso, ao anunciar seu projeto de missão pública, Jesus propôs libertação integral, o que está descrito em Lc 4,16-21, inspirando-se nos servos sofredores da história e nos discípulos do grande profeta Isaías (Is 61,1-2). Em uma pequena e simples sinagoga, o jovem galileu, “movido pelo Espírito”, como toda pessoa humana, proclamou seu projeto de libertação integral. Jesus aprendeu que na missão libertadora se deve propor “ótima notícia para os pobres”, que é libertação econômica; “libertar os presos”, que é libertação política; “resgatar a visão” (Lc 4,18), que é libertação ideológica; “implantar o Ano da Graça” (Lc 4,19), que é Jubileu Bíblico, que significa reorganização geral da sociedade com devolução das terras para os seus antigos donos – os “ancestrais” -, perdão geral de dívidas do povo, ou seja, conquista de uma Terra sem males, uma sociedade do bem viver e conviver, em linguagem afrolatíndia de hoje.

Com o profeta João Batista, Jesus aprendeu a necessidade de lutar pela superação das desigualdades socioeconômicas. Com os zelotas, Jesus aprendeu que precisava combinar solidariedade com luta para conquistar a emancipação política do povo. Com os idosos, Jesus aprendeu a ler os sinais dos tempos. Assumindo a causa dos empobrecidos, Jesus aprendeu a fazer análise da conjuntura de forma crítica e criativa, o que está, por exemplo, em Lc 13,1-9, onde Jesus alerta para não aceitar ingenuamente o que é noticiado pela mídia e nem pela ideologia dominante.

Ao ver e sentir a exploração que o imperialismo romano causava, Jesus denunciou o governador Herodes (“uma raposa”, Lc 13,31-33), a tributação injusta (Lc 20,25), o aprisionamento em massa e por esta sabedoria, Jesus foi condenado à pena de morte pelo Estado em conluio com o sinédrio, poder religioso dominado por saduceus, que eram os grandes proprietários de terra da época. Com a mulher cananeia (Mt 15,21-28, sirofenícia, segundo Mc 7,24-30), Jesus se libertou do patriotismo e do “verde amarelismo” que excluíam. Com os que eram considerados impuros e hereges, Jesus aprendeu a ser subversivo. Por isso, apontou um samaritano como exemplo a ser seguido e “chutou o pau da barraca” ao expulsar os vendilhões do templo, os que lucravam usando e abusando do nome do Deus da vida. Com parte dos fariseus, Jesus aprendeu a contar parábolas, linguagem que o povo entendia e ficava com os olhos brilhando diante das descobertas desconcertantes e provocantes que Jesus suscitava com suas metáforas exemplares. Convivendo com o povo superexplorado, Jesus aprendeu que tinha que ser “pé no chão”, estar junto do povo, misturado, partilhando suas dores e alegrias. Jesus aprendeu que não podia tolerar a privatização do sistema de saúde nas mãos dos sacerdotes que cobravam para fazer ritos de purificação, após expulsar a maioria do povo para fora da cidade, taxando-os de impuros. Por isso, Jesus fazia os milagres gratuitamente em processos de solidariedade libertadora. Convivendo com o povo simples e oprimido, Jesus aprendeu a pedagogia da partilha dos pães (Cf. Jo 6,1-15; Mt 14,13-21; Mc 6,32-44; Lc 9,10-17) que desagua na abundância e envolve uma série de passos articulados e interdependentes: 1) Jesus está no meio do povo faminto convivendo; 2) Vê a realidade nua e crua a partir dos empobrecidos; 3) Comove-se com a dor do povo sofrido; 4) Provoca a todos/as para buscar solução para o grave problema social, fruto de injustiça social: a fome; 5) Discerne qual projeto pode ser o caminho da superação da fome; 6) Exclui a postura de quem queria se esquivar da responsabilidade diante do problema - “despede as multidões para elas irem ...” - e o projeto de mercado apresentado por Filipe: “comprar pão para ...”; 7) Acolhe o projeto socialista, de partilha – humano - apresentado pelo discípulo André: “Eis uma criança com cinco pães e dois peixes”; 8) Propõe organizar o povo em grupos de 5, de 10, de 50, de 100 etc; 9) Abençoa os pães e os peixes, ou seja, cultiva a espiritualidade e a mística que envolve nossa vida e toda a realidade; 10) Conta com lideranças no meio do povo para “repartir o pão!”; 11) Propõe que seja recolhido o que está sobrando: “recolham o que sobrar”. Eis a pedagogia libertadora e emancipatória de Jesus.

Jesus aprendeu que não pode viver conciliando com podres instituições. Descobriu que só solidariedade não transforma relações sociais opressoras. Jesus aprendeu que é preciso lutar por justiça profunda. Jesus aprendeu a “sabedoria da luz, do sal e do fermento”. Mesmo pouca e pequena, a luz escorraça as trevas, pois incomoda muito os “filhos das trevas”. Em quantidade ínfima, o sal, aparentemente frágil, incomoda “o arroz, o feijão, a carne e é imprescindível ao cozinhar”. O fermento, mesmo sendo pouco, incomoda a massa e, por isso, a faz crescer.

Jesus aprendeu a acreditar no humano, pois via nas pessoas sofredoras não um poço de miséria, mas uma infinita força e luz interior, o que é manifestado pela exclamação de Jesus, repetida sempre: “Tua fé te salvou”, ou seja, postura existencial de cabeça erguida, amor no coração e utopia no olhar: o paralisado que “dá um salto”, o cegado que “quer ver” e não se contentar em ficar recebendo migalhas etc.

Ao perguntarmos aos quatro evangelhos da Bíblia qual é a característica primordial de Jesus Cristo enfatizada em cada evangelho, o Evangelho de Marcos revela Jesus priorizando a luta pela superação da opressão política; o Evangelho de Lucas revela um Jesus indignado diante da opressão econômica; o Evangelho de Mateus mostra Jesus lendo a história na ótica dos oprimidos sob o crivo da misericórdia e não do sacrifício; o Evangelho de João mostra Jesus apontando o poder religioso como opressor. Jesus é como o “vinho novo” que torna a vida uma festa sem fim. Por outro lado, o 4º evangelista mostra a institucionalidade religiosa enrijecida e opressora. Enfim, Jesus aprendeu uma sabedoria libertadora. Nós também podemos assimilar o que liberta e nos desvencilhar de tudo o que nos desumaniza. Com a sabedoria libertadora de Jesus, que está em sintonia com a sabedoria dos povos indígenas e dos povos tradicionais, podemos e precisamos ser “luz no mundo”, “sal da terra” e “fermento na massa”. 

08/06/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Sabedoria libertadora de Jesus: e nós? - CEBI do Vale do Aço, MG. Por Frei Gilvander - 06/6/2021

2 - Frei Carlos Mesters: Explicando a Bíblia a partir da vida do povo | Quadro: Fé na periferia do mundo

3 - Em Jesus, Deus vem até nós - Frei Carlos Mesters - 09/5/2020

4 - A mensagem de Jesus é feita para os pobres - Palavras de Fé, com frei Gilvander - 18/3/2021

5 - Dimensão social do Evangelho de Jesus e o lugar social do CEBI: LUTA POR JUSTIÇA. Por Frei Gilvander





[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Do luto à luta, nas ruas! Por Frei Gilvander

 Do luto à luta, nas ruas! Por Frei Gilvander Moreira[1]

Fotos das Manifestações Populares de 29/5/2021 no Brasil. Divulgação / Rede virtual

O dia 29 de maio de 2021 provavelmente entrará para a história como o dia do início de uma nova onda de lutas populares massivas no Brasil por vários direitos, entre os quais, “Fora, Bolsonaro!”, “Vacina, já!” e “Auxílio Emergencial de R$600,00”. Houve atos públicos, marchas e manifestações em 213 cidades no Brasil e em 14 cidades no exterior. Grande parte da mídia, Jornais O Globo e Estadão, por exemplo, não mostraram a força e o tamanho das manifestações. Postura irresponsável e cúmplice do fascismo e do genocídio no nosso país, que ignora a realidade e tenta negar os fatos, mas a imprensa internacional e os veículos da microcomunicação noticiaram a grandeza e a força das manifestações.



Com precauções sanitárias, usando máscaras e tentando manter o distanciamento social e corporal, centenas de milhares de brasileiras e brasileiros – mais de 400 mil - foram às ruas protestar contra o desgoverno federal genocida e cúmplice da morte de mais de 470 mil pessoas, não apenas vítimas da pandemia da covid-19, mas principalmente da política genocida em curso no país. Com muita criatividade, ao som dos tambores, com inúmeras mensagens estampadas em cartazes, faixas e banners, com uma energia contagiante, o povo deu um recado em alto e bom som: “Basta de genocídio! Basta da falta de vacina! Basta de miséria e fome! Basta de violência social e de cortes de direitos!”. São eloquentes e emblemáticas as mensagens empunhadas por pessoas lutadoras em faixas, cartazes, banners etc. Eis uma série delas: Crianças levantaram cartazes com a inscrição: “Minha professora já devia estar vacinada”; Uma vovó, em João Pessoa, cantou: “Eu vou, eu vou rezar, vou rezar o meu rosário para que Nossa Senhora bote fora Bolsonaro.”; Outras crianças, com cartazes: “Balbúrdia é querer me dar armas e tirar livros.”; Outra vovó segurava uma bandeira do Brasil e o cartaz: “Essa bandeira é nossa! Fora, milicianos!”; Um jovem marchou empurrando uma cadeira de rodas com um boneco dentro de um saco preto, com a inscrição: “Eu trouxe meu pai. Ele havia votado em você, Bolsonaro.”; “Cemitérios cheios, geladeiras vazias. Governo ruim não salva vidas nem a economia.”; “Se o povo protesta em meio a uma pandemia, é porque o governo é mais perigoso que o vírus.”; “Eu te responsabilizo, Bolsonaro!”; “Se estamos nas ruas, é porque o Governo se tornou mais perigoso do que o vírus.”; “Bolsonaro, genocida e inimigo da educação!”; “MAIS amor, vacina e ciência e MENOS ódio, negacionismo e Bolsonaros.”; “Fora, Bolsonaro! Basta de genocídio negro!”; “Em defesa da educação e do meio ambiente, Fora, Bolsonaro!”; o) “Nas terra de Zumbi, genocida não se cria. Fora, Bolsonaro!”; “Queremos vacina no braço, comida no prato e Fora, Bolsonaro!”; “Não tem vacina, mas tem chacina. Em memória dos 29 do Jacarezinho.”; “Nem tiro, nem fome e nem covid. Fora, Bolsonaro!”; “Vacina salva vidas, Amazônia salva o Planeta”; “Com Bolsonaro no poder, as mortes só aumentam.”; “Não estão todos, faltam 459 mil vidas.”; “Nem tiro, nem vírus, nem fome: a CPI tem que acabar em impeachment.”; “Pela Vida! Pela Vacina! Fora, BolsonaroFora, Governo Genocida!”; “Vida, Pão, Vacina e Educação! Fora, Genocida!”; “A Ciência e a Educação salvam. Bozo mata!”; “Onze ofertas ignoradas para salvar vidas!”; “Nem tiro, nem cadeia, nem covid, nem fome. Fora, genocida!”; “Fora, Bolsonaro! Chega de mortes! Vacina, já!”; “Pela Educação, Fora, Bolsonaro e Mourão!”; “Em defesa da vida, do emprego e da terra!”; “Auxílio emergencial de R$600, já!”; “Chega de genocídio, fome e desemprego!”; “Vacina para todos, já!”; Não é mole não, tem dinheiro pra milícia, mas não tem vacinação!”. O bispo Dom Vicente Ferreira divulgou no twitter: “#ForaBolsonaro sendo gritado em mais de 180 cidades. Nas ruas do Brasil e do mundo. Vacina já! Auxílio emergencial justo e digno! Não dá mais para tolerarmos esse genocida. Se o povo corre risco de contrair COVID nas manifestações, é porque o vírus do desgoverno é mais perigoso.”; Não dá para citar todas as frases emblemáticas carregadas e ecoadas por mais de 400 mil pessoas nas ruas do Brasil dia 29 de maio último.



A Polícia Militar do Pernambuco deixou de agir segundo a Constituição federal e, com postura fascista, reprimiu violentamente a manifestação pacífica em Recife, atirando indiscriminadamente balas de borracha nos manifestantes e jogando bombas de gás lacrimogênio. Duas pessoas levaram tiro nos olhos e provavelmente ficarão cegadas. A vereadora Liane Cirne (PT), com mais de 25 anos como professora no curso de Direito, inclusive para centenas de policiais, mesmo mostrando a carteira de vereadora, recebeu gás lacrimogênio no rosto em uma ação truculenta e ilegal dos policiais. A vereadora só pedia para eles pararem de atirar bombas no povo.

Esse ato corajoso e sensato de milhares de pessoas ocuparem as ruas em plena pandemia é demonstração clara do limite a que chegou o povo brasileiro. Não dá mais para suportar as injustiças e o sofrimento impostos. Para quem defende a vida, para quem luta pelo respeito à dignidade da pessoa humana e de toda a criação, lutar contra o genocídio é também um serviço essencial e necessário. Bolsonaro minimizou o impacto da pandemia. Recusou várias ofertas de vacina (ofertas comprovadas pela CPI) que teriam poupado milhares de vidas. Colocou um general despreparado no Ministério da Saúde. Defendeu o uso da cloroquina e do tratamento precoce. Debochou do uso de máscara e foi à Justiça contra o isolamento social.

Lutar tem risco, mas o maior risco hoje é não lutar pela superação dos desmandos na política brasileira. A política genocida está se reproduzindo cotidianamente. De 2 mil a 2.500 mortos por dia; quase 5 mil em dois dias; dez mil em 4 dias; 20 mil em uma semana; 80 mil por mês. Se continuarmos assim, até as próximas eleições em 2022 poderemos ter cerca de 2 milhões de mortos. Como nos resguardar dizendo que não quereremos novos mártires se o martírio está sendo o cotidiano do povo negro, do povo indígena, de mulheres e de toda classe superexplorada deste país? Como honrar os milhares de mártires da pandemia da Covid-19, resultado do descaso com a saúde pública que o desgoverno Bolsonaro e a necropolítica agravam cotidianamente? E quem mais está morrendo?

Em uma sociedade desigual, os omissos não são apenas omissos, são cúmplices e coniventes com os sistemas opressivos. Quem fica na inação “esperando o momento propício, sem riscos”, pela omissão, faz a pior “ação”: torna-se cúmplice da reprodução da violência. É grande ilusão pensar que é possível lutar por direitos sem correr riscos. Impossível conquistar a superação do sistema de morte sem lutas arriscadas. Sem lutas massivas e arrojadas não acontecerá a superação do autoritarismo e de todas as violências estruturais. Só posturas institucionais serão sempre tímidas e paliativas. O fascismo e o nazismo cresceram na Europa graças também a posturas conciliadoras de partidos e movimentos sociais que ficavam com excesso de cautela. Manter todas as precauções para não se contaminar com o novo coronavírus, sim, é necessário, mas jamais deixar de lutar por todos os direitos com organização e afinco. Enfim, sem lutas massivas e arrojadas nas ruas e em todos os cantos e recantos, nas periferias e na floresta, quem continuará sendo martirizado é o povão, a mãe Terra, os biomas e toda a biodiversidade.

Margarida Alves, martirizada a mando de latifundiários da monocultura da cana de açúcar, dizia sempre: “É melhor morrer na luta do que morrer de fome”. O sangue de George Floyd, de João Pedro, do menino Miguel, dos milhares de brasileiros/as que estão sendo mortos de mil formas pela necropolítica reinante precisa continuar circulando nas nossas artérias, suas vozes devem se expressar agora e sempre por meio daquelas e daqueles que se comprometem com as lutas pela superação do sistema do capital. Observando todas as medidas de segurança para evitar o contágio do novo coronavírus, o povo deve, sim, seguir se manifestando com coragem e compromisso até depois de conseguir a derrubada deste desgoverno genocida e a implementação de outro governo justo economicamente, democrático politicamente, solidário socialmente, responsável ambientalmente e respeitador da diversidade cultural presente no nosso país. Inibir lutas necessárias é um grave erro político. Enquanto houver opressão e repressão haverá luta!

04/06/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Atos "Fora, Bolsonaro!, Vacina Já! Auxílio Emergencial de 600,00, já!"-SÍNTESE de n cidades-29/5/21

2 - Ato por "FORA, Bolsonaro!", em Belo Horizonte, MG, 29/5/21: BASTA DE GENOCÍDIO E DESTRUÍÇÃO, BSA, GO

3 - MULTIDÃO NAS RUAS DE SÃO PAULO EXIGE VACINAS E IMPEACHMENT | #ForaBolsonaro

4 - "Mídia repete Diretas Já sem noticiar atos Fora Bolsonaro"

5 - Goiânia - 29M Fora Bolsonaro



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

terça-feira, 18 de maio de 2021

Dragão do Apocalipse e Mulher em dores de parto: e nós? Por Frei Gilvander

Dragão do Apocalipse e Mulher em dores de parto: e nós? Por Frei Gilvander Moreira[1]


O contexto do capitalismo com agronegócio causando brutal devastação sociambiental crescente, dizimando os biomas do Cerrado, da Mata Atlântica, da Amazônia, do Pantanal, dos Pampas e da Caatinga, desterritorializando o campesinato e os Povos e Comunidades Tradicionais, desertificando territórios, envenenando a terra, as águas, o ar e os alimentos com exagero de agrotóxicos e metais pesados jogados nos cursos d’água, desmatamento “sem fim” que levou a irupção da pandemia da covid-19, inclusive, nos leva a perguntar: está em ação o dragão do Apocalipse? A mulher em dores de parto do Apocalipse também está em ação? Quem vencerá? E nós, de que lado estamos?

Em linguagem simbólica para animar a quem está na luta, para não desistir e para driblar os opressores, na Bíblia, o livro do Apocalipse apresenta a visão de uma mulher e de um dragão (Ap 12,1-12). No céu, uma mulher vestida de sol, com a lua sob seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas, grávida e, em dores de parto, gritava. Apareceu um grande dragão, cuspindo fogo, com sete cabeças, sete diademas e dez chifres. Sua calda devastava 1/3 das estrelas do céu. Diante da mulher, o dragão esperava a criança nascer para devorá-la. Após nascer, a criança foi arrebatada para junto de Deus e de seu trono e a mulher fugiu para o deserto, onde seria alimentada por Deus por 1.260 dias. Houve uma batalha no céu. O anjo Miguel e seus companheiros guerrearam contra o dragão e o venceram. Derrotado, o dragão foi expulso para a terra. No céu foi celebrada a grande vitória: a expulsão do dragão. Na terra, o dragão pôs-se a perseguir a mulher que deu à luz a uma criança salvadora, e empreendeu perseguição ferrenha aos descendentes da mulher: os que observam os mandamentos de Deus e são testemunhas de Jesus Cristo.

Nas visões anteriores, o autor do Apocalipse parte do ano 33 da morte e ressurreição de Jesus Cristo, para falar da caminhada das primeiras comunidades cristãs. No capítulo 12 de Apocalipse, o autor se encontra nos anos 90 do século I da era cristã. O autor volta, simultaneamente, ao momento da criação e ao momento da vitória de Jesus Cristo sobre a morte. No momento da criação, Deus tinha pronunciado a sentença contra a serpente e anunciado a vitória à descendência da Mulher (Gen 3,1-19). Esta vitória acabou por se realizar no momento da morte e ressurreição de Jesus. A visão dos dois grandes sinais no céu - da mulher e do dragão - evoca a sentença de Deus contra a serpente depois da queda no paraíso terrestre, que não é saudade, mas esperança, segundo o biblista frei Carlos Mesters.[2] Em uma perspectiva alegórica, podemos dizer que a mulher em dores de parto simboliza a vida, a humanidade, o povo de Deus, as comunidades perseguidas, as classes trabalhadora e camponesa superexploradas. Simboliza também Maria, a mãe de Jesus, e todas as mulheres, do passado e do presente, que de alguma forma acreditam na força da vida vencendo as barreiras. As dores de parto simbolizam o sofrimento que a humanidade suporta para defender a vida e fazer nascer vida nova. O dragão, na época em que o texto foi escrito, anos 90 do século I da era cristã, simbolizava o império romano, que, como um dragão cuspindo fogo, escravizava 1/3 da população e mantinha em semiescravidão outro terço e empreendia guerras de conquista, por meio das quais anexava territórios e submetia povos e mais povos a esse poder que parecia invencível. O dragão recorda também a antiga serpente, aquela do livro de Gênesis, capítulo 3. Ele cresceu durante a história e virou dragão, bicho imenso. O dragão simboliza o poder do mal, a morte e tudo aquilo que oprime e sufoca a vida. Tem um poder muito forte. O dragão está diante da mulher para lhe devorar o menino que está nascendo, luta desigual entre vida e morte. Porém, Deus toma posição em favor da vida. O texto de Gênesis (Gen 3,15) funda a esperança, pois a Mulher vai vencer. Deus intervém e defende a vida (o menino e a mulher). O menino nasce, vive, morre, ressuscita e sobe ao céu.

A mulher é levada para o deserto por Deus, onde é alimentada por Deus durante 1260 dias. Trata-se de um número simbólico que indica o tempo (Kairos) do fim. Deste tempo, só Deus sabe a hora e a duração exata. O tempo de 1260 dias é o mesmo que “um tempo, dois tempos, meio tempo” (Ap 12,14), o mesmo que quarenta e dois meses, ou três anos e meio, ou ainda metade de sete, que é o número perfeito. Metade de sete é imperfeito, ou seja, limitado pelo poder de Deus. Como vimos, o dragão é expulso do mundo de cima e cai no mundo cá de baixo. Para o Apocalipse a história humana é como um grande julgamento. Deus está sentado no alto de seu trono, é o juiz, mas de infinito amor. Ao lado dele estão o promotor (satã), e o advogado (goel). O satã, que é o promotor, antiga serpente, sedutor de toda humanidade, tinha acusado a humanidade diante de Deus, mas Jesus, o resgatador (goel), pelo seu amor infinito manifestado em sua vida, ensinamento, morte e ressurreição, anulou a acusação que pesava sobre nós. Por isso, satanás perdeu a sua função de acusador. Com a vitória no mundo de cima, um cântico proclama a vitória e explica o sentido do que tinha acontecido: “foi expulso o delator que acusava dia e noite nossos irmãos diante de Deus” (Ap 12,10). A morte não é vista como uma derrota, mas como uma participação na vitória de Jesus que realizou no mundo de cima. Essa vitória de Jesus, no mundo lá de cima, repercute no mundo cá de baixo. Devido a esta vitória, o dragão passa a perseguir os descendentes da mulher, as comunidades. Entretanto, a mística apocalíptica nos diz que o dragão – o império romano na época e os podres poderes de todos os tempos – não vencerá a mulher que está gerando vida, mas será jogado na lata de lixo da história. A mulher grávida, símbolo de todas as forças de vida, triunfará sempre, mesmo que tenha que enfrentar “noites escuras”, genocídio e martírio.

Nos dias de hoje, inspirados/as pela narrativa apocalíptica da mulher grávida e sua criança – Jesus Cristo e todos/as que lutam para garantir condições de vida e de fraternidade real - parodiando o autor do Eclesiastes, podemos dizer que é tempo para resistir ao genocídio, tempo para confrontar o agronegócio, tempo para infiltrar com agricultura familiar agroecológica, tempo para se rebelar diante das discriminações, tempo para desmascarar as fake news, tempo para acumular forças para lutas massivas por direitos, tempo para a formação de lideranças, trabalho de base, educação popular etc, mas certamente não é tempo para cruzar os braços e se omitir, o que se revela em posturas de quem diz “não tenho nada a ver com isso”, “isso não me compete”, “está tudo dominado”, “nada mudará”. Mudará, sim! Já podemos ouvir os gritos do novo que está nascendo em meio a dores de parto na noite escura do capitalismo, máquina de moer vidas. Assim como a violência brutal que matou George Floyd gerou a indignação, a organização e a luta popular que fizeram desmoronar o poderio do “todo poderoso” Trump, a chacina do Jacarezinho e todas as mortes matadas; seja pela política genocida do desgoverno federal com a cumplicidade dos outros poderes; seja pelo agronegócio que desertifica os territórios e com uso abusivo de agrotóxicos envenena a terra, as águas, o ar e os alimentos; seja pelas mineradoras que vão estuprando as entranhas da mãe terra, apunhalando os ventres dos biomas, derramando mercúrio e outros metais pesados nos cursos d’água que resistem; tudo isso está gerando uma crescente indignação e a organização que farão eclodir em breve as lutas populares massivas que derrubarão do poder todos os impostores, fascistas, genocidas, capitalistas e superarão todas as políticas opressoras em curso.

Coloquemos em prática o que exortou e alertou o Papa Francisco, em visita à Comunidade de Varginha, Manguinhos, na periferia do Rio de Janeiro, em 25 de Julho de 2013: "Não se cansem de trabalhar por um mundo justo e solidário! Ninguém pode permanecer insensível às desigualdades que ainda existem no mundo!... A Igreja, "advogada da justiça e defensora dos pobres diante das intoleráveis desigualdades sociais e econômicas, que clamam ao céu" (Documento de Aparecida, 395), deseja oferecer a sua colaboração em todas as iniciativas que signifiquem um autêntico desenvolvimento do homem todo e de todo o homem."

18/05/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - As mulheres e o mundo do trabalho: a luta por direitos, emprego e renda dignos e vacina, já!

2 - Patriarcalismo, não! Genocídio, Não! E Pai nossa da pandemia

3 - Quilombo Pontinha, Paraopeba, MG, exige REPARAÇÃO INTEGRAL da Vale. Renato Moreira-Vídeo 2 - 15/5/21

4 - "Rodoanel em BH e RMBH, absurdo dos absurdos: mais crimes sociambientais"-José Geraldo, MAB-Vídeo 15

5 - Quilombo Pontinha, em Paraopeba, MG, violentado pela Vale S/A. (Renato Moreira) – 13/5/2021 –Vídeo 1



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Cf. o livro de Carlos Mesters, Paraíso Terrestre: saudade ou esperança? Petrópolis: Vozes, 1985.

terça-feira, 11 de maio de 2021

A deusa Ártemis e o apóstolo Paulo: e nós? Por Frei Gilvander

 A deusa Ártemis e o apóstolo Paulo: e nós? Por Frei Gilvander Moreira[1]

Atualmente no Brasil, muitos grandes templos estão sendo construídos: várias catedrais da Igreja Católica, imensos templos de igrejas neopentecostais e “templos” do deus capital (shoppings) etc. Para entender bem a dimensão e o significado destes templos faz bem recordarmos o culto à deusa Ártemis, na cidade de Éfeso, na Ásia Menor, na segunda metade do século I da era cristã. É bom considerar que a deusa Ártemis aparecia na sua estátua com a parte superior coberta por numerosos peitos que representavam a fecundidade da deusa. Sobre a cabeça, havia uma meia-lua. A estátua de Ártemis estava no meio do Artemision, imenso templo de 120 metros por 70, rodeado por 128 colunas de 19 metros de altura. O Artemision era o centro fervoroso de toda a região da Ásia Menor. As peregrinações e romarias ao Artemision produziam trabalho e riqueza a uma multidão de artesãos e comerciantes. Algo parecido com os grandes santuários religiosos da atualidade ou com os "santuários" da idolatria do mercado: os Shoppings Centers.

O Templo de Ártemis tinha muitas semelhanças com o Templo de Jerusalém. A cidade de Éfeso era famosa por sua deusa Ártemis, o que representava a base de um nacionalismo religioso local. A idolatria popular estava ligada à economia, ao templo e à cidade. Tudo girava em torno de uma estrutura econômica de produção de artesanato religioso, que proporcionava grande lucro aos seus produtores e comerciantes. Por isso, estes recebem o Evangelho de Jesus Cristo, anunciado pelo apóstolo Paulo, como um perigo mortal para seus lucros, para o templo, para a deusa Ártemis e para a grande cidade de Éfeso.

O projeto de Jesus Cristo consola os injustiçados e incomoda os exploradores, porque tem implicações político-econômico-culturais. As primeiras comunidades cristãs procuravam viver um espírito de partilha, que se concretizava na socialização dos bens econômicos (cf. At 2,44-45; 4,32-37). Como consequência, torna-se cada vez mais claro que os interesses econômicos baseados no lucro e na acumulação de capital são idolatria e se contrapõem ao Evangelho de Jesus de Nazaré (cf. At 8,18-23; 16,16-24; 19,13-19). De fato, em uma sociedade capitalista, máquina de moer vidas, o lucro e a acumulação de capital de uma minoria custam o sangue da maioria das classes trabalhadora e camponesa.

O apóstolo Paulo enfrenta a idolatria da deusa Ártemis. O apóstolo Paulo está desempenhando sua missão e se vê no meio de um tumulto em Éfeso, um episódio das missões paulinas em um contexto diferente, segundo o livro de Atos dos Apóstolos. "Assim, a Palavra do Senhor crescia e se firmava poderosamente" (At 19,20). Com este refrão a justeza da missão evangelizadora de Paulo se confirma. Podemos perguntar por que o evangelista Lucas, autor também de Atos dos Apóstolos, insere o relato da revolta dos ourives entre a decisão de Paulo de partir de Éfeso (At 19,21) – subir a Jerusalém - e a sua partida de fato (At 20,1)? Lucas gosta de intercalar um relato no meio a uma narração diferente[2]. Lucas prefere colocar a revolta dos ourives dentro da subida de Paulo a Jerusalém e não dentro das missões de Paulo, para reforçar a tese, segundo a qual o caminho da legalidade é o mais favorável para a evangelização ir conquistando espaços dentro do monstro que é o império romano.

Segundo o autor de Atos dos Apóstolos, a evangelização de Éfeso termina em At 19,20. Logo, o tumulto ocorrido em Éfeso por causa do ensinamento de Paulo não pertence mais aos relatos missionários de Paulo, mas ao relato da sua “paixão[3]” no caminho para Jerusalém. Em Éfeso acontece um conflito entre a idolatria de um mercado com "capa religiosa" e o evangelho de Jesus Cristo anunciado por Paulo[4]. Por outra perspectiva, podemos dizer que o conflito em Éfeso se dá entre a proposta cristã e o politeísmo tradicional que conserva grande força de atração sobre o povo.

Os últimos acontecimentos em Éfeso: Revolta dos artesãos (At 19,23-40). "Houve um grande tumulto por causa do Caminho[5]" (At 19,23). Provavelmente os primeiros cristãos e cristãs eram encarados como o Grupo do Caminho, porque eram caminheiros/as, missionários/as, que estavam sempre viajando. O tumulto teria ocorrido porque o evangelho anunciado por Paulo provocava queda na venda dos objetos religiosos e colocava em risco a vida da grande cidade, do templo de Ártemis e do mercado em torno do sagrado. Uns tentam criar um tumulto para "linchar" o apóstolo Paulo e seus companheiros. Outros preferem seguir a rota da legalidade, denunciando Paulo diante das instâncias jurídicas da cidade e deixando correr um processo legal.

Solução pela ilegalidade ou pela legalidade e conciliação? Lideranças de Éfeso tentam resolver o problema de dois modos: solução pela via ilegal e solução pela via legal e conciliatória. Pela via ilegal, Demétrio[6], um fabricante de artesanato em ouro e presidente da associação comercial dos artesãos da prata, tenta provocar um tumulto violento, confuso e ilegal, que postula o linchamento de Paulo e seus companheiros. Os adeptos da idolatria do lucro percebem claramente que o evangelho anunciado por Paulo desmascara e desmistifica a áurea religiosa que envolvia o mercado em Éfeso. Demétrio lidera uma campanha em defesa do mercado religioso que rende dividendos para uma classe à custa do empobrecimento de muitos. Trombeteiam que não somente empregos estão em jogo, mas também o santuário do mercado "com fachada" religiosa. Uma propaganda enganosa e idolátrica se tornava cada vez mais ensurdecedora: "Grande é a deusa Ártemis dos efésios!" (At 19,19.34), bradavam. A repetição desta mentira mil vezes poderia torná-la palatável como verdade. Era como o mito do progresso e do desenvolvimento econômico capitalista, atualmente, considerado inexorável e que não pode ser questionado, segundo os arautos da idolatria do mercado.

Este conflito recorda-nos que vivemos no meio de uma verdadeira idolatria do mercado e de um mercado religioso. Sabemos que quanto maiores são as angústias humanas, maior a necessidade de agarrar-se a "uma tábua de salvação". O terreno fica propício para a ação inescrupulosa dos mercadores do sagrado. Na religiosidade, seja ela popular ou com fachada de secularismo, a distância não é grande entre o Santo e a imagem do Santo. O artesão fabrica somente a imagem, mas sabe que há uma relação estreita entre o Santo e a imagem. A competição religiosa pode rebaixar todas as religiões e igrejas, porque elas se deixam orientar pelos desejos forjados das massas. Desestabiliza algo estabilizado, gera crise e pode ser causa de conflitos sérios.

Pela via da legalidade, um magistrado da cidade, juntamente com os seus asiarcas (deputados do conselho regional da Ásia) propõe um processo legal, com audiências legais diante dos procônsules constituídos (At 19,35-40). Se existem queixas, existem também instâncias judiciárias. Que tudo seja feito dentro da ordem, da legalidade e do respeito às Instituições, dizem. "Além dos tribunais, existem as assembleias gerais do povo que são convocadas periodicamente e nas quais todos os homens adultos podem participar[7]". No final do discurso do magistrado está a advertência de que a assembleia é ilegal, porque não foi convocada por autoridades competentes. Logo, pode suscitar represálias do poder romano. O evangelista Lucas continua usando a estratégia da infiltração diante do poder opressor, não o confronto.

Nos dois modos de resolver o problema, podemos ver a diferença entre massa e povo. A massa é a multidão sem fisionomia; age por emoção e impulsivamente por sugestão. Já o povo é um grupo organizado e consciente que tem um projeto para a sociedade; age de modo consciente e planejado. Por que o autor de Atos dos Apóstolos opta pela via da legalidade? Como pano de fundo das primeiras comunidades cristãs sob influência de Paulo há um contraste: de um lado os empobrecidos, famintos, perseguidos, aflitos (Lc 6,20-23) e de outro, os enriquecidos (Lc 12,16-21) que se banqueteiam sem se preocupar com a miséria (Lc 16,19-31). Para as comunidades lucanas era importante "não dar murro em ponta de faca". Melhor infiltrar-se do que confrontar-se com uma força muitíssimo superior.  Lucas é intransigente frente à opressão econômica realizada pelo Império Romano e quanto à exigência ética do cristianismo, mas, para abrir brechas para o projeto de Jesus não se nega ao diálogo cultural e político, a fim de canalizar para o bem a força histórica do mal. Lucas é duro contra os ricos e a riqueza (Lc 6,24: “Ai de vós, ricos!), mas denuncia a idolatria do capital de um modo a cativar os ricos para abraçarem a causa de Jesus e dos pobres. Lucas percebe, como Paulo Freire fez em nossos tempos, que a melhor forma de amar os opressores é tirar das mãos deles as armas de opressão. Este pano de fundo ajuda-nos a entender porque o relato lucano opta pela legalidade. Lucas quer mostrar o baixíssimo nível das massas politeístas e caracterizar o culto de Ártemis como pura confusão e idolatria.

Enfim, o apóstolo Paulo não baixou a cabeça para a deusa Ártemis e nem para os grandes templos com seus grandes negócios. E nós? 

11/05/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Templos fechados na pandemia: ato de amor. “Vós sois templos!”– Frei Gilvander, Bella, Caio e Flávio

2 - De nada adianta frequentar o Templo e matar os profetas! At7,5l - 8,1a e Jo6,30-35 - Godoy-20/4/2021

3 - ALÇA NORTE do Rodoanel de Belo Horizonte e RMBH: Lugares, Pessoas, Bens Naturais/Culturais Ameaçados

4 - 2ª live – ALÇAS SUDOESTE e OESTE do Rodoanel/RODOMINÉRIO de Belo Horizonte e RMBH: DEVASTAÇÃO ...

5 - Alça Sul do Rodoanel/RODOMINÉRIO de BH e RMBH: Lugares, Pessoas, Bens Naturais e Culturais Ameaçados

6 - O Templo de Ártemis - As 7 Maravilhas do Mundo Antigo #03 - Foca na História



 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Por exemplo, At 12,1-24 é intercalado no relato diferente, que começa em At 11,29-30 e continua em At 12,25.

[3] A "paixão" de Paulo, propriamente dita, será relatada de At 21,16-28,31.

[4] Em 2Cor 1,8 Paulo alude a perigos extremos que correu em Éfeso. Não parece que se trate destes incidentes a propósito dos ourives.

[5] A designação do Cristianismo como Caminho deve ter sido antiga (At 9,2; 19,9), pois se tratava de um modo de falar típico no judaísmo.

[6] Demétrio parece ter sido o presidente da Associação comercial dos artesãos da prata. Cf. J. COMBLIN, Atos dos Apóstolos, Vol. II: 13-28. Vozes, Petrópolis, 1988, p. 102.

[7] J. COMBLIN, Atos dos Apóstolos, Vol. II: 13-28. Vozes, Petrópolis, 1988, p. 104Se somente homens adultos podem participar, as pretensas assembleias gerais do povo não eram na prática gerais, pois as mulheres, as crianças e os escravos eram excluídos.