terça-feira, 11 de maio de 2021

A deusa Ártemis e o apóstolo Paulo: e nós? Por Frei Gilvander

 A deusa Ártemis e o apóstolo Paulo: e nós? Por Frei Gilvander Moreira[1]

Atualmente no Brasil, muitos grandes templos estão sendo construídos: várias catedrais da Igreja Católica, imensos templos de igrejas neopentecostais e “templos” do deus capital (shoppings) etc. Para entender bem a dimensão e o significado destes templos faz bem recordarmos o culto à deusa Ártemis, na cidade de Éfeso, na Ásia Menor, na segunda metade do século I da era cristã. É bom considerar que a deusa Ártemis aparecia na sua estátua com a parte superior coberta por numerosos peitos que representavam a fecundidade da deusa. Sobre a cabeça, havia uma meia-lua. A estátua de Ártemis estava no meio do Artemision, imenso templo de 120 metros por 70, rodeado por 128 colunas de 19 metros de altura. O Artemision era o centro fervoroso de toda a região da Ásia Menor. As peregrinações e romarias ao Artemision produziam trabalho e riqueza a uma multidão de artesãos e comerciantes. Algo parecido com os grandes santuários religiosos da atualidade ou com os "santuários" da idolatria do mercado: os Shoppings Centers.

O Templo de Ártemis tinha muitas semelhanças com o Templo de Jerusalém. A cidade de Éfeso era famosa por sua deusa Ártemis, o que representava a base de um nacionalismo religioso local. A idolatria popular estava ligada à economia, ao templo e à cidade. Tudo girava em torno de uma estrutura econômica de produção de artesanato religioso, que proporcionava grande lucro aos seus produtores e comerciantes. Por isso, estes recebem o Evangelho de Jesus Cristo, anunciado pelo apóstolo Paulo, como um perigo mortal para seus lucros, para o templo, para a deusa Ártemis e para a grande cidade de Éfeso.

O projeto de Jesus Cristo consola os injustiçados e incomoda os exploradores, porque tem implicações político-econômico-culturais. As primeiras comunidades cristãs procuravam viver um espírito de partilha, que se concretizava na socialização dos bens econômicos (cf. At 2,44-45; 4,32-37). Como consequência, torna-se cada vez mais claro que os interesses econômicos baseados no lucro e na acumulação de capital são idolatria e se contrapõem ao Evangelho de Jesus de Nazaré (cf. At 8,18-23; 16,16-24; 19,13-19). De fato, em uma sociedade capitalista, máquina de moer vidas, o lucro e a acumulação de capital de uma minoria custam o sangue da maioria das classes trabalhadora e camponesa.

O apóstolo Paulo enfrenta a idolatria da deusa Ártemis. O apóstolo Paulo está desempenhando sua missão e se vê no meio de um tumulto em Éfeso, um episódio das missões paulinas em um contexto diferente, segundo o livro de Atos dos Apóstolos. "Assim, a Palavra do Senhor crescia e se firmava poderosamente" (At 19,20). Com este refrão a justeza da missão evangelizadora de Paulo se confirma. Podemos perguntar por que o evangelista Lucas, autor também de Atos dos Apóstolos, insere o relato da revolta dos ourives entre a decisão de Paulo de partir de Éfeso (At 19,21) – subir a Jerusalém - e a sua partida de fato (At 20,1)? Lucas gosta de intercalar um relato no meio a uma narração diferente[2]. Lucas prefere colocar a revolta dos ourives dentro da subida de Paulo a Jerusalém e não dentro das missões de Paulo, para reforçar a tese, segundo a qual o caminho da legalidade é o mais favorável para a evangelização ir conquistando espaços dentro do monstro que é o império romano.

Segundo o autor de Atos dos Apóstolos, a evangelização de Éfeso termina em At 19,20. Logo, o tumulto ocorrido em Éfeso por causa do ensinamento de Paulo não pertence mais aos relatos missionários de Paulo, mas ao relato da sua “paixão[3]” no caminho para Jerusalém. Em Éfeso acontece um conflito entre a idolatria de um mercado com "capa religiosa" e o evangelho de Jesus Cristo anunciado por Paulo[4]. Por outra perspectiva, podemos dizer que o conflito em Éfeso se dá entre a proposta cristã e o politeísmo tradicional que conserva grande força de atração sobre o povo.

Os últimos acontecimentos em Éfeso: Revolta dos artesãos (At 19,23-40). "Houve um grande tumulto por causa do Caminho[5]" (At 19,23). Provavelmente os primeiros cristãos e cristãs eram encarados como o Grupo do Caminho, porque eram caminheiros/as, missionários/as, que estavam sempre viajando. O tumulto teria ocorrido porque o evangelho anunciado por Paulo provocava queda na venda dos objetos religiosos e colocava em risco a vida da grande cidade, do templo de Ártemis e do mercado em torno do sagrado. Uns tentam criar um tumulto para "linchar" o apóstolo Paulo e seus companheiros. Outros preferem seguir a rota da legalidade, denunciando Paulo diante das instâncias jurídicas da cidade e deixando correr um processo legal.

Solução pela ilegalidade ou pela legalidade e conciliação? Lideranças de Éfeso tentam resolver o problema de dois modos: solução pela via ilegal e solução pela via legal e conciliatória. Pela via ilegal, Demétrio[6], um fabricante de artesanato em ouro e presidente da associação comercial dos artesãos da prata, tenta provocar um tumulto violento, confuso e ilegal, que postula o linchamento de Paulo e seus companheiros. Os adeptos da idolatria do lucro percebem claramente que o evangelho anunciado por Paulo desmascara e desmistifica a áurea religiosa que envolvia o mercado em Éfeso. Demétrio lidera uma campanha em defesa do mercado religioso que rende dividendos para uma classe à custa do empobrecimento de muitos. Trombeteiam que não somente empregos estão em jogo, mas também o santuário do mercado "com fachada" religiosa. Uma propaganda enganosa e idolátrica se tornava cada vez mais ensurdecedora: "Grande é a deusa Ártemis dos efésios!" (At 19,19.34), bradavam. A repetição desta mentira mil vezes poderia torná-la palatável como verdade. Era como o mito do progresso e do desenvolvimento econômico capitalista, atualmente, considerado inexorável e que não pode ser questionado, segundo os arautos da idolatria do mercado.

Este conflito recorda-nos que vivemos no meio de uma verdadeira idolatria do mercado e de um mercado religioso. Sabemos que quanto maiores são as angústias humanas, maior a necessidade de agarrar-se a "uma tábua de salvação". O terreno fica propício para a ação inescrupulosa dos mercadores do sagrado. Na religiosidade, seja ela popular ou com fachada de secularismo, a distância não é grande entre o Santo e a imagem do Santo. O artesão fabrica somente a imagem, mas sabe que há uma relação estreita entre o Santo e a imagem. A competição religiosa pode rebaixar todas as religiões e igrejas, porque elas se deixam orientar pelos desejos forjados das massas. Desestabiliza algo estabilizado, gera crise e pode ser causa de conflitos sérios.

Pela via da legalidade, um magistrado da cidade, juntamente com os seus asiarcas (deputados do conselho regional da Ásia) propõe um processo legal, com audiências legais diante dos procônsules constituídos (At 19,35-40). Se existem queixas, existem também instâncias judiciárias. Que tudo seja feito dentro da ordem, da legalidade e do respeito às Instituições, dizem. "Além dos tribunais, existem as assembleias gerais do povo que são convocadas periodicamente e nas quais todos os homens adultos podem participar[7]". No final do discurso do magistrado está a advertência de que a assembleia é ilegal, porque não foi convocada por autoridades competentes. Logo, pode suscitar represálias do poder romano. O evangelista Lucas continua usando a estratégia da infiltração diante do poder opressor, não o confronto.

Nos dois modos de resolver o problema, podemos ver a diferença entre massa e povo. A massa é a multidão sem fisionomia; age por emoção e impulsivamente por sugestão. Já o povo é um grupo organizado e consciente que tem um projeto para a sociedade; age de modo consciente e planejado. Por que o autor de Atos dos Apóstolos opta pela via da legalidade? Como pano de fundo das primeiras comunidades cristãs sob influência de Paulo há um contraste: de um lado os empobrecidos, famintos, perseguidos, aflitos (Lc 6,20-23) e de outro, os enriquecidos (Lc 12,16-21) que se banqueteiam sem se preocupar com a miséria (Lc 16,19-31). Para as comunidades lucanas era importante "não dar murro em ponta de faca". Melhor infiltrar-se do que confrontar-se com uma força muitíssimo superior.  Lucas é intransigente frente à opressão econômica realizada pelo Império Romano e quanto à exigência ética do cristianismo, mas, para abrir brechas para o projeto de Jesus não se nega ao diálogo cultural e político, a fim de canalizar para o bem a força histórica do mal. Lucas é duro contra os ricos e a riqueza (Lc 6,24: “Ai de vós, ricos!), mas denuncia a idolatria do capital de um modo a cativar os ricos para abraçarem a causa de Jesus e dos pobres. Lucas percebe, como Paulo Freire fez em nossos tempos, que a melhor forma de amar os opressores é tirar das mãos deles as armas de opressão. Este pano de fundo ajuda-nos a entender porque o relato lucano opta pela legalidade. Lucas quer mostrar o baixíssimo nível das massas politeístas e caracterizar o culto de Ártemis como pura confusão e idolatria.

Enfim, o apóstolo Paulo não baixou a cabeça para a deusa Ártemis e nem para os grandes templos com seus grandes negócios. E nós? 

11/05/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Templos fechados na pandemia: ato de amor. “Vós sois templos!”– Frei Gilvander, Bella, Caio e Flávio

2 - De nada adianta frequentar o Templo e matar os profetas! At7,5l - 8,1a e Jo6,30-35 - Godoy-20/4/2021

3 - ALÇA NORTE do Rodoanel de Belo Horizonte e RMBH: Lugares, Pessoas, Bens Naturais/Culturais Ameaçados

4 - 2ª live – ALÇAS SUDOESTE e OESTE do Rodoanel/RODOMINÉRIO de Belo Horizonte e RMBH: DEVASTAÇÃO ...

5 - Alça Sul do Rodoanel/RODOMINÉRIO de BH e RMBH: Lugares, Pessoas, Bens Naturais e Culturais Ameaçados

6 - O Templo de Ártemis - As 7 Maravilhas do Mundo Antigo #03 - Foca na História



 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Por exemplo, At 12,1-24 é intercalado no relato diferente, que começa em At 11,29-30 e continua em At 12,25.

[3] A "paixão" de Paulo, propriamente dita, será relatada de At 21,16-28,31.

[4] Em 2Cor 1,8 Paulo alude a perigos extremos que correu em Éfeso. Não parece que se trate destes incidentes a propósito dos ourives.

[5] A designação do Cristianismo como Caminho deve ter sido antiga (At 9,2; 19,9), pois se tratava de um modo de falar típico no judaísmo.

[6] Demétrio parece ter sido o presidente da Associação comercial dos artesãos da prata. Cf. J. COMBLIN, Atos dos Apóstolos, Vol. II: 13-28. Vozes, Petrópolis, 1988, p. 102.

[7] J. COMBLIN, Atos dos Apóstolos, Vol. II: 13-28. Vozes, Petrópolis, 1988, p. 104Se somente homens adultos podem participar, as pretensas assembleias gerais do povo não eram na prática gerais, pois as mulheres, as crianças e os escravos eram excluídos.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Templo de Jerusalém e rebeldia de Jesus: e nós? Por Frei Gilvander

Templo de Jerusalém e rebeldia de Jesus: e nós? Por Frei Gilvander Moreira[1]



Segundo as comunidades cristãs do quarto evangelho da Bíblia, levou-se 46 anos para que o templo de Jerusalém fosse reconstruído pelo governador Herodes O Grande (Jo 2,20), que mandou construir a fortaleza Antônia, em um dos vértices do Templo de Jerusalém, o que foi considerado por muitos judeus como uma profanação ao modelo do templo construído pelo rei Salomão. Herodes mandou colocar no templo várias esculturas pagãs do Império Romano, inclusive a Águia Imperial, que motivou a ira de jovens judeus que se amotinaram e foram, por isso, presos e queimados vivos, a mando do rei Herodes Agripa. Essa foi uma obra faraônica que exigiu o trabalho de cerca de 10 mil operários diariamente.

Na época de Jesus, Jerusalém tinha cerca de 30 mil pessoas, estima-se. O templo era meio de vida para muita gente, pois gerava emprego para cerca de 18 mil pessoas; era símbolo de identidade; lugar de comércio com lucro abusivo; lugar de carestia: de 3 a 6 vezes mais caro do que no interior da Palestina; lugar de cobrança de impostos (de 25% a 50%); centro de peregrinação; “morada de Deus” no meio da comunidade e casa de oração.

O templo de Jerusalém era centro de romarias e peregrinações. Foi destruído pela força militar do império romano, sob o comando do general Tito Flávio, nos anos 70 do século I, e outra vez no ano de 135 da era cristã. Bastante suntuoso, composto de degraus, pórticos e tabernáculo com o Santo dos Santos, com arca da aliança e as tábuas da Lei. Muitos consideravam o templo como a morada de Deus no meio do povo. No Santo dos Santos só o sumo sacerdote entrava apenas uma vez por ano. Era considerado pelos judeus o lugar mais sagrado do mundo. Para consertar o Santo dos Santos os operários tinham que ser pendurados e baixados para não pisar no chão sagrado. Os judeus rasgavam suas roupas ao verem o Templo pela primeira vez. Ainda hoje na hora do casamento, o noivo precisa quebrar um prato para lembrar a todos a tristeza que sente pela perda do Templo. Os judeus de todo o mundo ao orarem se voltam para Jerusalém. Na época de Jesus, estima-se  que a população da Palestina era cerca de 600 mil habitantes. Em Jerusalém, 30 mil. Na festa da Páscoa, Jerusalém chegava a receber 180 mil pessoas. Além disso,  havia mais de 7 mil sacerdotes na Palestina, a maioria em Jerusalém, divididos em 24 grupos que se revezaram nos trabalhos litúrgicos do templo.

          A Aristocracia de sacerdotes e os saduceus administravam o tesouro do Templo. Historiador da época das primeiras comunidades cristãs, Flávio Josefo fala que na época de Jesus havia inflação, salários baixos, greves e revoltas populares. No livro Guerra Judaica, Josefo descreve assim o templo construído por Herodes: “O exterior arrebatava os olhos e o espírito. Por estar recoberto de ouro, refletia desde o amanhecer a luz do Sol tão intensamente, que obrigava a afastar a vista aos que queriam observá-lo. Aos estrangeiros que chegavam parecia uma montanha de neve, pois onde não estava coberto de ouro brilhava mármore branquíssimo. O cimo estava eriçado de pontas de ouro afiadas para impedir que as aves pousassem e sujassem o teto. Algumas das pedras da construção tinham vinte metros de comprimento...”[2]

          A Revolta popular de 66 da era cristã, liderada pelo movimento popular religioso dos zelotas, foi o estopim da Guerra Judaica, pois visava também destruir os arquivos do Templo onde estavam registradas as dívidas do povo escravizado e os impostos. 

Enfim, o templo de Jerusalém era o centro religioso-econômico e cultural da Palestina, era também centro político, pois aí se reunia o Sinédrio, sob a chefia do Sumo-sacerdote, vitalício e quase sempre do grupo dos saduceus – latifundiários da época -, os maiores detentores do poder econômico da época. Tudo parecia inquestionável, mas ...

De forma clandestina, Jesus e os seus entram em Jerusalém. Após uma longa marcha da Galileia a Jerusalém (Lc 9,51-19,27), Jesus e o seu movimento popular religioso estão às portas daquela cidade. De forma clandestina, não confessando os verdadeiros motivos, Jesus e o seu movimento entram em Jerusalém, narra o Evangelho de Lucas (Lc 19,29-40). De alguma forma deve ter acontecido essa entrada de Jesus na capital Jerusalém. O tom midráxico da narrativa torna presente e viva uma profecia do passado, ainda que provavelmente não tenha acontecido tal como narrado pelo evangelho.

 Dois discípulos recebem a tarefa de viabilizar a entrada na capital, de forma humilde, mas firme e corajosa. Deviam arrumar um jumentinho – meio de transporte dos pobres -, mas deviam fazer isso disfarçadamente, de forma “clandestina”. O texto repete o seguinte: “Se alguém lhes perguntar: “Por que vocês estão desamarrando o jumentinho?”, digam somente: ‘Porque o Senhor precisa dele’”. A repetição indica a necessidade de se fazer a preparação da entrada na capital de forma clandestina, sutil, sem alarde. Se dissessem a verdade, a entrada em Jerusalém seria proibida pelas forças de repressão. Com os “próprios mantos” prepararam o jumentinho para Jesus montar. Foi com o pouco de cada um/a que a entrada em Jerusalém foi realizada. A alegria era grande no coração dos discípulos e discípulas, povo camponês e de periferia. “Bendito o que vem como rei...” (Lc 19,38). Viam em Jesus outro modo de exercer o poder, não mais como dominação, mas como gerenciamento do bem comum.

Ao ouvir o anúncio dos discípulos e discípulas – um novo jeito de exercício do poder – certo tipo de fariseu, aliado do poder opressor, se incomoda e tenta sufocar aquele evangelho. Hipocritamente chamam Jesus de mestre, mas querem domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus discípulos se calem” (Lc 19,39), impunham os que se julgavam salvos e os mais religiosos. “Manda...!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”, eles são os que mandam. Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”, gritam. Quem anuncia a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta por justiça, o que incomoda o status quo opressor. Mas Jesus, em alto e bom som, com a autoridade de quem vive o que ensina, profetisa: “Se meus discípulos/as (profetas) se calarem, as pedras gritarão” (Lc 19,40). Esse alerta do galileu virou refrão de música das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs): “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas nascerão... O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair. União é a rocha que o povo usou pra construir...!”

Jesus chuta o pau da barraca do deus capital. Os quatro evangelhos da Bíblia[3] narram que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa, invadiu o templo de Jerusalém, lugar mais sagrado do que os templos da idolatria do capital que muitas vezes tem a cruz de Cristo pendurada em um ponto de destaque. Furioso como todo profeta, ao descobrir que a instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco Central do país + sistema bancário + bolsa de valores, Jesus “fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres, porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: ‘Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio.” Essa ação de Jesus foi o estopim para sua condenação à pena de morte, mas Jesus ressuscitou e vive também em milhões de pessoas que resistem em face de toda forma de  opressão: fascismo, política de morte (necropolítica) e genocídio, como o que brutalmente acontece no Brasil atualmente.

05/05/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Templos fechados na pandemia: ato de amor. “Vós sois templos!”– Frei Gilvander, Bella, Caio e Flávio

2 - Templos suntuosos, NÃO! Pequenas Comunidades, SIM! Ez 47,1-2.8-9.12 ; Jo 12,13-22/Padre Manoel Godoy

3 - Lugares, Pessoas, Bens Naturais e Culturais Ameaçados pelo Rodoanel de BH e RMBH: a ALÇA SUL

4 - Luta contra a mineração em Minas Gerais e na Amazônia e os territórios indígenas

5 - Frei Gilvander aponta brutal devastação socioambiental que Rodoanel causará em BH e RMBH - Vídeo 5




 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Guerra judaica, V, 222.

[3] Mt 21,12-13; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46 e Jo 2,13-17.

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Gigante de pés de barro e pedrinha que rola da montanha. Por Frei Gilvander

 Gigante de pés de barro e pedrinha que rola da montanha. Por Frei Gilvander Moreira[1]

O profeta Daniel, escultura de Aleijadinho, no adro da Basílica de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, MG.

Na Bíblia, o livro de Daniel é um escrito apocalíptico, profecia em outros moldes. O livro de Daniel foi escrito provavelmente no 2º século antes de Cristo, época em que o rei Antíoco IV estava empurrando goela abaixo do povo a cultura grega e para isso era preciso pisar na cultura popular, nos valores e costumes do povo semita hebraico. Daniel objetiva cultivar a esperança em tempos de grandes projetos transnacionais e visa sustentar a resistência contra os opressores. O livro de Daniel, nos capítulos 1 a 6, mostra como ele e os seus companheiros resistiram aos poderosos do império e, assim, foram salvos. Quando o maior inimigo se torna internacional e, por isso, invisível, a profecia muda de tática e de estratégia: prioriza a linguagem simbólica. Daniel carrega uma profunda convicção de fé: o maior poder é o de Deus que está no volante da história. Todos os outros poderes, por maiores que sejam, mesmo que pareçam invencíveis, podem ser derrubados pelos que acreditam na força infinita do Deus da vida, dos nossos ancestrais, dos mártires e de todos os lutadores e lutadoras da história que agem em nós e a partir de dos injustiçados/as (Dn 2,31-47).

O profeta Daniel anima o povo a manter a identidade e a cultura camponesa, os valores oriundos do deserto – lugar onde o povo foi gestado e assumiu o Decálogo como sua Constituição – que define, por exemplo, que “ser vegetariano e não comer carne” é o caminho para a libertação/salvação. A resistência inicia-se pela comida e pela valorização das culturas populares e ancestrais. Ético é não comer a comida do império, mas a comida de verdade - alimentos saudáveis -, que é a dos nossos pais, avós, bisavós, nossos ancestrais (cf. Dn 1).

Ídolo de pés de barra sendo derrubado por
uma “pedrinha que vem da montanha”.



No capítulo 2 de Daniel (Dn 2,1-49) está a narrativa bíblica de uma estátua gigante de pés de barro desmoronada por uma pedrinha que rola da montanha. O rei Nabucodonosor treme na base por causa de um sonho enigmático. Assustado, o rei exige que os considerados sábios – magos, astrólogos, agoureiros e advinhos – digam a ele qual foi o sonho que ele teve e a interpretação do sonho. “O rei nos exige algo sobrehumano”, dizem. Diante da negativa dos “sábios”, o rei ordena pena de morte para todos. Condenado à morte, Daniel pede um prazo para interpretar o sonho. Em uma visão, Deus revela o mistério do sonho a Daniel, que fica grato (Dn 2,20-23). Levado diante do rei, Daniel desmascara o pretenso poder dos sábios, astrólogos, magos e adivinhos. Diz ele: “Não são capazes de desvendar o segredo que Vossa Majestade lhes propôs. Mas há no céu um Deus que revela os segredos” (Dn 2,27-28). Trata-se de luta pela afirmação do Deus do povo escravizado e o desvencilhamento dos ídolos de todos os impérios. Daniel contou ao rei o que acontecerá nos últimos dias, no futuro.

Eis a visão: era uma grande estátua, alta e muito brilhante. Ela estava bem à frente de Vossa Majestade e tinha aparência impressionante. Cabeça de ouro maciço, o peito e os braços de prata, a barriga e as coxas de bronze, as canelas de ferro e os pés, parte de barro e parte de ferro (Cf. Dn 2, 31-33). Eis que uma pedrinha rolou da montanha e caiu nos pés da estátua gigante e os quebrou. Tudo virou palha, pó. A pedrinha se transformou em uma enorme montanha. O profeta Daniel deu a seguinte interpretação: “Vossa Majestade, rei dos reis, é a cabeça de ouro. Após Vossa Majestade, aparecerá outro reino, menor que o seu, depois, um terceiro, de bronze. O quarto reino será duro como ferro, mas esse reino terá pés de barro e ferro, forte por um lado, mas fraco, por outro; reino recheado de contradições e mentiras. Por isso, se desmoronará. Deus suscitará um reino que nunca será destruído. Esse reino é o da pedrinha que rolou da montanha sem ninguém tocá-la e esmigalhou o que era de barro, ferro, bronze, prata e ouro” (Dn 2,37-45).

O capítulo 2 de Daniel termina dizendo que o rei prostrou-se diante dele e reconheceu a sua profecia. Tentou cooptá-lo propondo fazê-lo governador de todas as províncias/colônias do império babilônico, mas ele não aceitou, porém sugeriu que o poder fosse exercido por outras lideranças da sua confiança. Assim a profecia, com autonomia, seguiu seu caminho.

Em contextos políticos de poderosos aparentemente insensíveis exercendo o poder, pretendendo ser onipotentes e invencíveis, é tremendamente revolucionário afirmar como fez o profeta Daniel que o único poder é o de Deus, dos ancestrais, dos mártires e dos lutadores e lutadoras da história que atuam no povo de luta que resiste no presente. Assim, o profeta Daniel deslegitima e desmascara os pretensos poderosos e afirma outro poder que não é o exercido por nenhum ser humano metido a ser messias. Mas, segundo a Teologia da Libertação, o único poder que Deus tem é o poder do amor, pois “Deus é amor”, o amor é Deus. Logo, o poder do Deus da vida está em nós, permeia e perpassa a trama das relações humanas e sociais. O divino está no humano. Junto com o povo, jamais sozinho, Deus governa a história. Sem a participação humana tecendo novas relações sociais e construindo instituições com o poder democratizado, não é possível fazer desmoronar os podres poderes. A beleza espiritual da profecia de Daniel, a estátua gigante e a pedrinha, é dizer: a última palavra será da vida, da liberdade e não dos podres poderes. Isso suscita esperança e faz a luta de resistência dos injustiçados continuar.

          O eixo da literatura apocalíptica de caráter histórico é o confronto Império versus Povo. Por isso, a teologia apocalíptica é sempre teologia política libertadora. A literatura apocalíptica é também uma literatura de esperança que se cultiva na luta por direitos. Sempre se anuncia o juízo de Deus, que põe fim à situação de opressão. O fim será a destruição da estátua gigante e a instauração do Reino de Deus a partir da luta dos/as pequenos/as e explorados/as.

No capítulo 2 de Daniel o reino de Deus, que é reino da justiça, da paz, da solidariedade entre as pessoas e de respeito a toda a biodiversidade, é simbolizado por uma pedrinha que se desprende da montanha – lugar de encontro com o Deus verdadeiro, com o próximo, consigo mesmo e com todas as criaturas - aparentemente sem intervenção da mão humana e destrói a estátua gigantesca que representa os impérios do passado, do presente e do futuro e que, depois de destruí-la, se transforma em uma grande montanha que enche toda a terra.

O termo "pedra sem mãos' no texto aramaico de Daniel significa "pedra sem poder”: a força dos empobrecidos na luta. A pedrinha que se desprende da montanha e destrói a estátua representa o povo dos mártires e nos lembra todas as conquistas libertárias havidas na história. Assim, os 400 mil mártires, não apenas da pandemia da covid-19, mas principalmente da política fascista e genocida do inominável presidente com o todo o desgoverno federal, com a cumplicidade de 70% do Congresso Nacional e a maioria do Supremo Tribunal Federal, derrubarão, um a um, todos cúmplices do genocídio em curso no Brasil. Bendito quem continua atirando pedrinhas “a partir da montanha” nos pés de barro do gigante recheado de contradições e mentiras que devasta o povo brasileiro e o nosso território.[2]

Frei Gilvander ao lado dos 12 profetas no
adro da Basílica de Bom Jesus de
Matosinhos, em Congonhas, MG.


Em tempo: O profeta Daniel e os outros 11 profetas esculpidos por Aleijadinho em Congonhas, MG, estão sendo corroídos pela ferrugem causada pela poeira tóxica da mineração da CSN – mesmo ar que a população respira - que já devastou grande parte da Serra da Casa de Pedra e construiu uma barragem gigante de lama tóxica que está, como uma espada de Dâmocles, sobre cabeça de milhares de pessoas que resistem abaixo da barragem. O Ministério Público, em relatório que avalia os impactos da expansão da mineração, denuncia: "O depósito de partículas de poeira (decorrentes da mineração) no conjunto dos profetas do adro da Basílica de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, MG, contribui para a degradação do conjunto escultórico de autoria do mestre Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho), sem esquecer dos prejuízos causados pela poluição atmosférica à saúde da comunidade local", no Patrimônio Cultural da Humanidade, reconhecido em 1985. Além de corroer os profetas, a mineração está devastando a paisagem que emoldura os profetas de Aleijadinho. À esquerda no adro da Basílica, o profeta Joel tem o olhar fixo no Morro do Engenho e o encara 24 horas por dia, repudiando a devastação que a mineradora CSN segue fazendo de forma brutal. Eis um exemplo do gigante da mineração em Minas Gerais que precisa ser paralisada para o bem do povo, da mãe terra, da irmã água, da fauna, da flora e de toda a biodiversidade. Os doze profetas e o Morro do Engenho, em Congonhas, MG, precisam ser preservados e a mineradora CSN deve ser expulsa. Eis o que pede de nós Daniel, Joel e os outros dez profetas.

28/04/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Faísca de Dom André de Witte, PRESENTE sempre em nós na luta pelo reino do Deus no meio do povo

2 - “Rodoanel/RODOMINÉRIO de Belo Horizonte e RMBH devastará a APA da Lajinha, em Rib. Neves” – Vídeo 10

3 - As brutais contradições do Projeto de Rodoanel de Belo Horizonte e RMBH. Por Euler Cruz - Vídeo 8

4 - "Devastação de 1.000 árvores na Mata do Havaí em Belo Horizonte." Frei Gilvander e morador - 21/4/21

5 - Frei Gilvander aponta brutal devastação socioambiental que Rodoanel causará em BH e RMBH - Vídeo 5

6 - Liberdade e luta ainda que tardias: Massacre de Ipatinga, Luta Indígena e Lutas Sociais



 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

  

terça-feira, 20 de abril de 2021

Torre de Babel e Bezerro de Ouro, na Bíblia e hoje. Por Frei Gilvander

 Torre de Babel e Bezerro de Ouro, na Bíblia e hoje. Por Frei Gilvander Moreira[1]



Na Bíblia encontramos narrativas de grandes projetos opressores, tais como a construção da Torre de Babel (Gen 11,1-9) e a construção de um bezerro de ouro (Ex 32,1-35). Olhemos um pouco para esses projetos na Bíblia na esperança de que possam inspirar posturas e compromissos na militância pela construção de uma sociedade justa e solidária diante dos grandes projetos de morte de hoje.

1 - Em uma cidade grande, uma Torre de Babel (Gênesis 11,1-9)

É obvio que não podemos encarar a narrativa bíblica de Gen 11,1-9 como se fosse um relato histórico, uma crônica jornalística de algo acontecido tal e qual está escrito. Esta é uma narrativa bíblica e, como tal, reflete a experiência de um povo escravizado, mas portador de uma fé libertadora. Prestemos atenção em alguns detalhes desta narrativa que nos diz: “o mundo inteiro falava a mesma língua, com o mesmo vocabulário” (Gen 11,1). Era uma espécie de ‘pensamento único’. Claro que isso nunca aconteceu em nenhum país do mundo e nem acontecerá. Sempre há uma enorme diversidade de línguas, culturas e formas de viver a vida. Não é preciso nem sair do Brasil para experimentar o esplendor das línguas e culturas regionais. Basta ir a regiões diferentes dentro do mesmo estado.

Mais à frente, diz a narrativa que construíram uma grande cidade e nesta almejavam edificar uma torre que pudesse acessar aos céus, uma espécie de templo que viabilizasse contato direto com o ser supremo. Queriam ser autossuficientes, independentes e queriam dominar. Mas o autor – ou autores e autoras - do livro de Gênesis faz – ou fazem - questão de dizer que Javé, o Deus solidário e libertador, não ficou inerte e nem assistindo de camarote o que acontecia. Ele desceu e descobriu o tendão de Aquiles deles: “Eram um só povo e falavam a mesma língua” (Gen 11,6). Ao detectar a presença deste pensamento único, da mesma ideologia, foi fácil inocular sementes de resistência, que naquele contexto se apresentaram como a diversificação das línguas que os levou a formar outros povos. Assim, a aquisição de novas línguas, culturas e diferentes formas de viver, conviver e lutar pelo bem comum bloqueou aquele megaprojeto de dominação que visava à onipotência e à autossuficiência de uma minoria enriquecida à custa da maioria escravizada.

Se olharmos bem à nossa volta, há muitas outras línguas e culturas sendo gestadas. Basta não alimentarmos o pensamento único na era do capitalismo neoliberal. Ao longo da história e atualmente, os grandes projetos são torres de Babel, mas terão pernas curtas, não irão adiante, porque estão recheados de mentiras e de contradições e também porque a luz e a força divina brilham no povo que está nas lutas coletivas jogando areia na engrenagem desses megaprojetos de morte. Entre estes, se destaca o 3º rodoanel de Belo Horizonte e região Metropolitana que é obra faraônica, autoritária, eleitoreira, ecocida, hidrocida, cavalo de troia, que, se construído, será Rodominério, RodoDesastre, RodoConurbação, RodoEspeculação etc. Por isso, este megaprojeto do rodoanel/rodominério exige rechaço implacável e não pode nem ser iniciado.



2 - Um Bezerro de Ouro como deus (Êxodo 32,1-6)

Após escapulir das garras do imperialismo egípcio, caminhando no deserto, sentindo a falta do líder Moisés, o povo, que já tinha amargado uns 500 anos debaixo do megaprojeto escravocrata dos faraós, escorregou e caiu feio na tentativa de manipular Javé, Deus solidário e libertador dos explorados. Pressionaram outra liderança já cooptada, Aarão: “Faça para nós um deus que caminhe à nossa frente” (Ex 32,1). As primeiras comunidades cristãs, sentindo as agruras dos templos de Jerusalém e de outros templos do império romano, e também sob o tormento da sinagoga enrijecida, ao fazer retrospectiva histórica, recordam que o povo “voltou” ao Egito ao dizer a Aarão: “Faça para nós deuses que nos guiem, porque não sabemos o que aconteceu com esse Moisés que nos tirou do Egito” (At 7,40). Projeto estúpido, pois como pode a criatura criar o criador? Queriam reduzir Javé a um ídolo, deus manipulável. Mas com o que seria feito o ídolo? “Tirem os brincos de ouro de suas mulheres, filhos e filhas, e tragam aqui” (Ex 32,2), bradou Aarão, em uma postura populista. Triste. Com o luxo da minoria dominante fizeram a estátua de um bezerro de ouro. Pior: saudaram o ídolo construído, mentindo: “Israel, este é o seu deus, que tirou você do Egito” (Ex 32,4). Desencadeou-se uma cascata de idolatria. Construíram altar diante do bezerro de ouro (Ex 32,5). Pararam de marchar no deserto rumo à terra prometida. Ofereceram holocaustos e sacrifícios. Ao invés de levantar para caminhar e lutar pelos seus direitos, o povo sentou-se, não para assembleiar-se, nem para uma celebração libertadora; levantou-se, não para marchar, mas para se divertir, “para comer e beber”, o que apregoa os sistemas de morte. Era a recaída no sistema do imperialismo egípcio. Era a reintrojeção e assimilação dos ídolos que tanto os oprimiam. O livro de Atos dos Apóstolos, na Bíblia, diz: “voltaram ao Egito” (At 7,39), ao fazer o bezerro de ouro e cultuá-lo em uma megaidolatria.

Há muitas narrativas bíblicas que versam sobre a rebeldia do povo durante a caminhada de libertação no deserto rumo à terra prometida. Inúmeras vezes o povo recai e resolve voltar ao modus vivendi do Egito opressor. Moisés intercede a Javé pedindo que perdoe o povo. Deus perdoa inúmeras vezes, mas a idolatria do bezerro de ouro é um divisor de águas na postura de Javé. Se antes da confecção do ídolo bezerro de ouro Javé sempre perdoava, agora, após o bezerro de ouro, Javé não perdoará mais, porque o povo se tornou cabeça dura. Inicia-se a profecia de julgamento, da ira de Javé. Logo, buscar manipular o Deus da vida, mistério de infinito amor, é algo inadmissível. É fechamento no egocentrismo. É o que fazem os que usam e abusam do nome de Deus para criar uma fachada de honestidade, mas com objetivos escusos de empurrar goela abaixo políticas genocidas que causam morte e retrocesso em todas as áreas, como as que reinam no Brasil atualmente.

No discurso mais radical e revolucionário de Atos dos Apóstolos, o diácono Estevão, na iminência de ser linchado, discursa se defendendo: “... Naqueles dias, construíram um bezerro, ofereceram um sacrifício ao ídolo e celebraram a obra de suas próprias mãos (At 7,41). Estevão cita a idolatria no deserto para afirmar que desde a origem o povo de Deus tem sido rebelde e propenso a voltar-se para ídolos.

Parte do povo da Bíblia não somente adorou um bezerro de ouro, mas também “hostes do céu” (cf. 1 Rs 22,19; Jr 7,18; 19,13; Nee 9,6 (LXX)), o que denota estrelas e outros corpos celestiais e alguns espíritos ou anjos que governam os seus movimentos (At 7,42). Sem lideranças autênticas a marcha libertária não prossegue. Moisés, possuído por uma ira santa, queima o bezerro de ouro e o transforma em pó. Com idolatria não se brinca. Militante que é apaixonado pela causa dos oprimidos e com eles comunga as lutas libertárias deve ter a grandeza de gritar quando a luta se desencaminha. “Quem estiver do lado de Javé, venha até mim” (Ex 32,26), bradou Moisés. Enfim, megaprojetos beneficiam o grande capital. O que beneficia o povo é pequenos projetos multiplicados aos milhares.[2]

20/04/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima, especificamente sobre um megaprojeto: o de se construir mais um Rodoanel em Belo Horizonte e Região Metropolitana.

1 – Frei Gilvander aponta brutal devastação socioambiental que Rodoanel causará em BH e RMBH - Vídeo 5

2 - "O Rodoanel/RODOMINÉRIO causará brutal devastação em Belo Horizonte e RMBH" (Alenice Baeta). Vídeo 2

3 - "Rodoanel será Rodominério para Vale S/A ampliar mineração." (Henrique Lazarotti - Vídeo 1 - 15/4/21

4 - Rodoanel - Rodominério - e seus impactos ao Meio Ambiente na Região Metropolitana de Belo Horizonte, MG.

5 - Live – RODOANEL, RODOMINÉRIO! Escassez hídrica e os Impactos do Rodoanel em BH e RMBH.

6 - LIVE 33 - IMPACTO DO RODOANEL EM BETIM E REGIÃO METROPOLITANA

7 – Audiência Pública na Comissão Externa da Câmara Federal que acompanha o Acordo da Vale S/A com o Governo de MG, audiência CONTRA o Rodoanel/Rodominério em Belo Horizonte e Região Metropolitana – 15/4/2021.

https://www.camara.leg.br/evento-legislativo/61001

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

terça-feira, 13 de abril de 2021

Rodominério, NÃO; Meio Ambiente, SIM! Por Frei Gilvander

 Rodominério, NÃO; Meio Ambiente, SIM! Por Frei Gilvander Moreira[1]

Vivemos um tempo perigoso. O capitalismo, máquina de moer vidas, está funcionando a todo vapor, triturando vidas de bilhões de pessoas e de outros seres vivos da biodiversidade. Estamos em tempos de fundamentalismos, de céus povoados de anjos e entidades, de demônios por todos os lados, de gritaria de deuses, de promessas, de busca insaciável de bênçãos, de necessidade de expiação, de moralismos, de religiões sem Deus, de salvações sem escatologia, de cristianismos light, de libertações que não vão muito além da autoestima. Enfim, tempos de autoajuda, de dar um jeitinho para ir empurrando a vida.

Clamores ensurdecedores brotam dos porões da humanidade. “Gemendo em dores de parto”, a mãe Terra clama para ser salva, pois está sendo crucificada impiedosamente pelos grandes projetos capitalistas. Medo, insegurança e instabilidade atingem a todos/as. Atualmente insiste em imperar uma mística antievangélica do descompromisso com os pobres e com a luta por justiça. Os pobres, além de empobrecidos, são marginalizados, injustiçados e acusados de serem os responsáveis primeiros pela sua situação de miséria. Inverte-se a realidade: os verdugos tentam parecer bons samaritanos. Pela ideologia dominante, as vítimas são consideradas vagabundas, irresponsáveis e bagunceiras.

Neste contexto dramático e no meio da mais letal pandemia dos últimos cem anos, o (des)governador de Minas Gerais anunciou recentemente o Projeto de construir o 3º rodoanel em Belo Horizonte e Região Metropolitana (RMBH). Belo Horizonte (BH) já tem dois: a Av. do Contorno e o Anel Rodoviário. Com cerca de 6 milhões de pessoas, BH e as 34 cidades que conformam sua região metropolitana constituem a terceira maior aglomeração urbana do país, representando em torno de 40% da economia e 25% da população do estado de Minas Gerais. Se for construído, o rodoanel será na prática rodominério para a Vale S/A e outras mineradoras ampliarem mineração em BH e RMBH e poderá estrangular o abastecimento público de água em Belo Horizonte e RMBH, pois passaremos da crise hídrica ao colapso e exaustão hídrica para 6 milhões de pessoas.

A previsão é que o rodoanel tenha 100,6 quilômetros, pista dupla (autoestrada ‘da morte’, de “1º mundo”), com quatro alças: Norte, Sul, Oeste e Sudoeste. O governo de MG investirá 4,5 bilhões de reais, dinheiro oriundo da Vale S/A mediante o Acordão do Governo Zema com a mineradora ignorando a dor e os direitos das comunidades atingidas na bacia do rio Paraopeba pelo crime/tragédia da Vale a partir de Brumadinho, MG. Preveem-se cinco anos de obras para construí-lo mediante concessão para uma grande empresa, via Parceria Público-Privada (PPP) para construir, implantar, operar e manter durante décadas. Serão desapropriados terrenos e imóveis em uma faixa de 170 a 400 metros de largura, mais ou menos, em uma extensão de mais de 100 quilômetros. Serão milhares de desapropriações, que serão paulatinas, uma alça de cada vez. A 1ª desapropriação será em 2023, ou seja, após as eleições de 2022. Projeto eleitoreiro. Para evitar adensamento populacional ao lado, o rodoanel terá acessos reduzidos, só de oito em oito quilômetros. Ou seja, na prática, o rodoanel (rodominério) será uma ‘muralha’ com mais de 100 quilômetros de extensão que irá sitiar, confinar, ilhar ou separar centenas de bairros em 13 municípios da RMBH. Eis um “critério de seleção da empresa construtora: Menor valor de contrapartida pelo poder concedente, o Estado”. Critério capitalista que privilegia as maiores empresas.

Desde 2007, já houve várias licitações para construir este rodoanel, alças Norte e Oeste, mas foram todas anuladas. Por que não esperar o fim da pandemia para discutir com o povo este megaprojeto? Dizem que “o traçado proposto é uma diretriz, podendo a concessionária modificá-lo, na hipótese da evolução dos projetos indicar soluções de melhor viabilidade.” Absurdo! A empresa construtora poderá definir o trajeto, onde passar, o que afetar ou não. Isso é liberdade total para os interesses do grande capital. Está previsto “preço quilométrico de pedágio por câmeras: R$ 0,35/Km.” Ou seja, para percorrer os 100,6 quilômetros do rodoanel, um automóvel pagará R$35,21 de pedágio. Futuramente este valor aumentará, provavelmente. Dizem que terá “menos 10% de emissão de CO2”. Mentira. Se aumentará o trânsito, como diminuirá a emissão de CO2?

O projeto do rodoanel ignora que todas as cidades da Região Metropolitana de BH já foram conectadas por ferrovias com linhas de trens de passageiros transportando o povo até a capital mineira. Para melhorar os problemas de mobilidade o justo e necessário é resgatar as linhas de trens entre as 34 cidades da RMBH e restabelecer o transporte de passageiros via trens entre todas as cidades da RMBH reconectando-as com BH, ampliar o metrô para a RMBH e superar as injustiças reinantes no transporte público através de ônibus. Não é ético usar dinheiro da reparação de um crime/tragédia que matou 273 pessoas, o rio Paraopeba e violentou brutalmente milhares de pessoas e comunidades para construir infraestrutura que vai beneficiar o grande capital. E, acima de tudo, a reparação do crime da Vale S/A precisa ser para fortalecer as condições de vida: fazer saneamento, produção de alimentos saudáveis de forma agroecológica e indenizar os/as atingidos/as de forma integral. Descentralizar a megalópole é o caminho, o que exige preservar o meio ambiente.

O projeto do Rodoanel ignora o caráter imprescindível do Parque Estadual Serra do Rola Moça para o estado, para os municípios e para a biodiversidade. Ignora e sacrifica mananciais que abastecem BH e RMBH. Sacrificará milhares de famílias que vivem da agricultura familiar. Violentará fauna, flora, nascentes, cachoeiras, Mata Atlântica, cerrado com campos rupestres, cavernas, áreas de proteção ambiental e agredirá patrimônio histórico, arqueológico e cultural, como sítios arqueológicos, cavernas com pinturas rupestres, cemitérios, entre outros. Comunidades quilombolas também serão afetadas. Assim, o projeto do rodoanel (Rodominério) é obra faraônica, autoritária, eleitoreira, ecocida, hidrocida, cavalo de troia etc. Por isso, o projeto do rodominério exige rechaço implacável e não pode nem ser iniciado.

A chegada de um grande projeto é sempre envolvida por campanha publicitária espetacular que anuncia estar chegando à região uma alavanca de desenvolvimento social, geradora de emprego e que não irá causar grandes males à já tão sofrida natureza, à biodiversidade e às pessoas. Chefes da política, da economia e até da religião são cooptados e muita gente seduzida. Assim, o povo acolhe esses grandes projetos como se fossem benfeitores que trarão emprego e melhorias sociais, mas, logo, descobre que se geram poucos empregos e, não raras vezes, em condições análogas à de escravidão. Acontece o que ensina a Fábula do Escorpião e o Sapo, que narra: Um escorpião pede a um sapo que o leve através de um rio. O sapo tem medo de ser picado durante a viagem, mas o escorpião argumenta que não há motivo para o sapo temer tal traição, pois se picasse o sapo, esse afundaria e o escorpião da mesma forma iria junto afogar.  O sapo concorda e começa a carregar o escorpião, mas no meio do caminho, o escorpião, de fato, aferroa o sapo, condenando ambos. Quando perguntado por quê, o escorpião responde que esta é a sua natureza. Isso mesmo: a natureza do capitalismo é aferroar vidas o tempo todo e cada vez com mais veneno. O funcionamento do capitalismo exige expansão, crescimento sem limites. Isso é impossível, pois a natureza precisa de tempo para se recuperar das agressões. A mercadoria, base da acumulação do capital, destrói o ambiente e explora os trabalhadores. Portanto, não dá mais para acreditar que na nossa caminhada na vida o capitalismo seja a melhor companhia.

As cidades, a partir das metrópoles, estão se tornando cidades empresas com muitos megaprojetos que são verdadeiras torres de Babel. A gula especulativa das grandes empresas e dos seus acionistas parece não ter fim. Os pobres estão sendo expulsos para as periferias das periferias. A história, a cultura e a dignidade humana vão sendo tratoradas para dar lugar a arranha-céus, outras torres de Babel. Faz bem recordar que Deus criou, nas ondas da evolução, tudo em seis dias e no sétimo dia descansou. Conta-se que alguém teria perguntado a Deus porque ele resolveu descansar após o sexto dia. Deus teria dito que já tinha criado tudo com muito amor e para o bem da humanidade e de toda a biodiversidade. Quando viu que faltava criar a cidade, o Deus criador concluiu que era melhor descansar.

A estrutura de violência e de exclusão está fragmentando as multidões, deixando as pessoas em cacos. É hora de recompor os cacos em um grande e articulado mosaico.  É hora de reintegrar as nossas forças e energias vitais para superarmos o sistema do capital e construirmos uma sociedade do Bem Viver, com justiça agrária, justiça urbana, justiça socioambiental, justiça social e justiça geracional. Tudo isso exige: “Rodominério, NÃO; Preservação ambiental, SIM!”[2]

13/04/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Rodoanel - Rodominério - e seus impactos ao Meio Ambiente na Região Metropolitana de Belo Horizonte, MG.

2 - Live – RODOANEL, RODOMINÉRIO! Escassez hídrica e os Impactos do Rodoanel em BH e RMBH.

3 - LIVE 33 - IMPACTO DO RODOANEL EM BETIM E REGIÃO METROPOLITANA



 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.