terça-feira, 5 de janeiro de 2021

A Pandemia e o desrespeito à vida: “O povo está sendo matado por falta de conhecimento”. Por Frei Gilvander

A Pandemia e o desrespeito à vida: “O povo está sendo matado por falta de conhecimento”. Por  Frei Gilvander Moreira[1]


 Charge do Zé Dassilva: o desrespeito ao isolamento

Considero inegável que a espiral de violência e morte que avassala o povo brasileiro é causada pela superexploração do sistema capitalista, máquina cruel de moer vidas, que funciona dia e noite, sob direção da classe dominante que vive no luxo, mas com sangue nas mãos. A elite, por sua vez, goza o luxo e as benesses do poder econômico e político à custa de muito sangue da classe trabalhadora e do apunhalamento das entranhas da mãe Terra gerando extermínio de fontes de água e desertificação de territórios. O mito do progresso e do desenvolvimento econômico só para a classe dominante, que extermina diariamente as condições de vida no planeta Terra, nossa única Casa Comum, gerou a pandemia do novo coronavírus. A ideologia dominante, a crise dos partidos políticos e os falsos religiosos impuseram no Executivo Federal um desgoverno fascista que só sabe matar, tem sede de sangue. Os fascistas continuam no poder pela conivência do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional acovardados que, diante de dezenas de crimes de responsabilidades cometidos por Jair Bolsonaro, seguem não apenas omissos, mas cúmplices da escalada de morte no nosso país, propondo apenas medidas paliativas que disfarçam a crueldade dos mil jeitos de matar em curso e, pior, fazem politicagem diante das lágrimas do povo em desespero. Cegado e anestesiado, até quando o povo aceitará morrer aos poucos sem se rebelar massivamente?

A pandemia do novo coronavírus no Brasil iniciou-se com uma onda que cresceu rapidamente, se prolonga por nove meses e, pior, de novembro de 2020 para cá está crescendo muito. O número de mortos pela covid-19 já ultrapassa 240 mil, se incluirmos 20% de mortos subnotificados. É notório o cansaço do povo diante da pandemia do novo coronavírus. É certo que o povo anseia pela superação da pandemia, mas foi chocante e estarrecedor ver um elevado número de aglomerações suicidas e assassinas durante os festejos de natal e na virada de ano. Recordei-me de uma das muitas cenas eloquentes do filme documentário "A carne é fraca", do Instituto Nina Rosa: cena mostrando que, no desfiladeiro do matadouro, ao pressentirem que à sua frente estão morrendo vacas ou bois com uma cacetada na nuca, as vacas e os bois são tomados por um estresse muito grande, o que injeta adrenalina em todo o corpo. O instinto de vida do gado grita alto diante da iminência da morte, no corredor da morte do matadouro. Nas aglomerações das últimas semanas, gritaram alto o egoísmo e a ignorância de muita gente. Desgovernado por fascistas, o Brasil marcha para se tornar uma ameaça sanitária mundial. Em 2021, daremos conta de enterrar nossos mortos por política de morte – genocida – e pela irresponsabilidade dos cúmplices?

Cabe lembrar que, mesclado com o ódio de classe que a elite tem do povo pobre, “quando a ignorância impera, o amor se cala, se aniquila e os sonhos se desfazem, porque insuportável é a arrogância de quem só conhece suas verdades falsificadas”, alerta Helenice Augusta da Cunha. “A ignorância é a maior enfermidade do ser humano”, dizia Cícero, grande lutador republicano, “pedra no sapato” de imperadores romanos. Ele foi morto e proscrito a mando do imperador Júlio César em 43 antes de Cristo. “Na falta de argumentos a ignorância usufrui da agressividade e da ofensa como modo de ataque”, diz Agni Shathi. “A ignorância é a mãe de todos os males”, diz François Rabelais. “A ignorância mata e quando regada com fé e política, causa o genocídio”, diz Israel Lopes prenunciando o que acontece no Brasil no início de uma nova década. “Aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso”, assevera Bertolt Brecht. Dalai Lama diz que “o egoísmo gera a ignorância que origina grandes problemas no mundo”. “Cuidado com o falso conhecimento; ele é mais perigoso do que a ignorância”, diz George Bernard Shaw.

Diante dos alertas repetidos à exaustão pela Organização Mundial da Saúde (OMS), por infectologistas e epidemiologistas de que é preciso manter o distanciamento corporal e social, e usar máscaras para superarmos a pandemia do novo coronavírus, assistimos às aglomerações estarrecedoras nos dias de Natal e de virada de ano. Aglomerações promovidas por “celebridades” medíocres e ignorantes, por turistas que esqueceram a responsabilidade social, ou por pessoas em geral cansadas de quarentena, além de motivadas pelo próprio comportamento negacionista, genocida e debochado do presidente Bolsonaro em relação à gravidade da pandemia. Neste contexto, temos que perguntar: é ético ou imoral promover aglomerações, participar delas ou se omitir da fiscalização delas? Em tempos de pandemia, além de imoral, é atitude criminosa promover e/ou participar de aglomerações. Da mesma forma, é crime quando quem tem o dever de fiscalizar as aglomerações não fiscaliza.

No Código Penal, muitas ações ou omissões são tipificadas como crime, por exemplo, quando se coloca em risco a vida de uma pessoa. A Constituição Federal, em seu Artigo 5º, protege a inviolabilidade do direito à vida considerando-o o mais importante de todos os direitos, pois a vida é o bem jurídico mais valioso que temos. Com a ocorrência da pandemia de Covid-19 e a edição de inúmeros decretos, seja por Estados e por Municípios, obrigando o uso de máscaras em locais públicos, o não cumprimento do estatuído nesses decretos, ou seja, o não uso da máscara, pode muito bem ensejar crime de homicídio, já que está devidamente esclarecido pelos médicos infectologistas e virologistas que a transmissão do contágio pode levar à morte, especialmente no caso de pessoas com doenças preexistentes ou acima de 60 anos. Em vários países, quem é surpreendido pela polícia em aglomerações está sendo multado.

O artigo 121 do Código Penal, que é formado por apenas duas palavras – “matar alguém” -, estaria sendo infringido, caso ocorra morte, conseguindo-se demonstrar a pessoa de onde partiu a contaminação. O fundamento para chegar a tal punição é que hoje a ciência demonstra a letalidade da covid-19, o que tem sido divulgado à exaustão pela imprensa ecoando os alertas fundamentados na ciência feitos por infectologistas e epidemiologistas.

A partir da obviedade que a doença covid-19 mata e não tem cura e nem o povo foi vacinado ainda, o não uso da máscara e a promoção e/ou participação em aglomerações e os funcionários públicos que não fiscalizam, deveriam ter consequências sérias para estas pessoas que não se sentem tocadas por uma questão de humanidade, pela obrigação de ajudar a não contaminar outrem. Propomos que estas pessoas recalcitrantes em cumprir o determinado pelas autoridades sanitárias sejam levadas a responderem na seara criminal. Enquanto durar a pandemia, aglomerar-se e violar as regras sanitárias se tornou uma questão de saúde e segurança públicas. Nesse caso, o interesse da coletividade – respeito à dignidade da pessoa humana – está acima dos pretensos direitos individuais de pessoas que não são apenas egoístas e irresponsáveis, mas agem de forma criminosa.

Na Bíblia, no quarto capítulo do livro do profeta Oseias, diante da realidade de um povo sendo triturado de mil maneiras, há uma veemente crítica aos “sacerdotes” – líderes religiosos da época -, já que eles representavam o Estado monárquico super-opressor e sanguinário. “Sangue derramado se ajunta a sangue derramado. Por isso, a Terra geme e seu povo está sendo matado” (Os 4,2-3), denuncia Oseias. Destemido, o profeta Oseias aponta os líderes religiosos como causadores da violência: “Eu levanto acusação contra você, sacerdote! Você tropeça de dia, o profeta tropeça com você de noite e você mata a sua própria mãe. O meu povo está morrendo por falta de conhecimento” (Os 4,4-6). Os religiosos do contexto de Oseias rejeitavam o verdadeiro conhecimento (Os 4,6), se agarravam à ignorância, à hipocrisia e a posturas moralistas, como atualmente ocorre com muitas lideranças religiosas. A idolatria alimentada pelos líderes religiosos justificava religiosamente as estruturas e relações sociais de opressão e exploração. Em Oseias 4,1-19, temos uma profecia que denuncia a macro-opressão realizada pelos “sacerdotes”, e outra que põe o dedo na ferida da micro-opressão que acontece nas relações interpessoais, particularmente entre homem e mulher, entre adultos e crianças. O miúdo da vida (o cotidiano) e o macro da vida são as duas pernas presentes de forma entrelaçada na profecia de Oseias. A profecia de Oseias revela para as pessoas o que significa viver sob políticas de morte e alianças com o Império (cf. Os 5,13; 7,11; 8,9), em um ir e vir sem rumo que foi corroendo as forças da nação até chegar ao seu final (cf. Os 5,12; 7,9; 8,8). Isso sem falar da violência que rasgou ventres de mulheres grávidas (cf. Os 14,1) e tirou a vida de crianças de peito (cf. Os 9,11-14).

Enfim, a profecia de Oseias continua atualíssima, quando ele diz: “O meu povo está sendo matado por falta de conhecimento” (Os 4,6). O coronavírus mata, mas a ignorância mata mais. A ignorância gera o caos, a sabedoria não. Os fascistas no poder matariam menos se não encontrassem no meio do povo pequenos fascistas ignorantes, egoístas, estúpidos, irresponsáveis e, em última instância, criminosos também.[2]

05/01/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 – Palavra Ética na TVC-BH: Salvar vidas na Pandemia e defesa dos Geraizeiros do norte de MG-27/6/2020

2 - Palavra Ética na TVC-BH: Quarentena para salvar vidas, mineração em Ibirité/MG, não; Quilombo Braço

3 - Frei Gilvander: "Salvar vidas agora, antes que seja tarde!" - Na luta por direitos - 16/4/2020

4 - Quarentena para salvar vidas/2a Parte/Frei Gilvander/Rádio Independente FM 104,9/Ichu/BA- 07/4/2020

5 - Quarentena para salvar vidas - Frei Gilvander/ Rádio Viva Brasil FM - Três Corações, MG - 31/3/2020

6 - Coronavírus: como vencer o capitalismo de desastre?

7 - CORONAVÍRUS, CLIMA E CAPITAL: a irracionalidade destrutiva do capitalismo

8 - PANDEMIA: ESTE SERÁ O FIM DO CAPITALISMO?!!!



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, que fez a revisão deste texto. Carmem é Doutora em Sociologia Política pela UENF.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Vale S.A, Herodes que matou outro José: Júlio César. Por Frei Gilvander

Vale S.A, Herodes que matou outro José: Júlio César. Por Frei Gilvander Moreira[1]


Fotos: Divulgação / Trabalhadores na Mina de Córrego do Feijão

Sob os ventos natalinos, como biblista, no nosso texto semanal, eu gostaria de escrever sobre o Nascimento de Jesus Cristo acontecendo na periferia, no meio dos pastores (Cf. nosso artigo “Natal de Jesus: o divino no humano”)[2], - que eram os mais discriminados e injustiçados em uma colônia da sociedade escravocrata sob o Império Romano -, e sendo acolhido e reverenciado pelos magos, que não eram astrólogos, mas “vindos do oriente”, de onde o sol nasce e a vida revigora diariamente, driblaram o rei Herodes, opressor contumaz e repressor sanguinário, seguiram a “estrela de Belém” e reconheceram Deus no humano em uma criança nascendo em um acampamento improvisado na periferia da pequena cidade de Belém. Entre os periféricos, Deus assumiu a condição humana por amor infinito. Natal: Deus se apaixona tanto pelo humano, que larga o céu e vem diariamente acampar com os humanos, todos os animais e seres vivos, mas sempre a partir dos últimos dos últimos (Cf. nosso artigo “Natal de Jesus Cristo na periferia de Belém: “Não tenham medo!””)[3]. Entretanto, sob a perseguição de Herodes, José e Maria tiveram que fugir para o Egito para salvar o menino Deus.

Entretanto, o eloquente clamor de mais um atingido soou como o choro do Menino Deus, o recém-nascido Jesus de Nazaré, também espoliado pelos podres poderes da época, e inspirou-me e motivou-me a falar sobre o Natal, denunciando um grande Herodes da atualidade, a mineradora Vale S/A, que, com a cumplicidade do Estado, não apenas segue expulsando outros Josés, Marias e o menino Deus, mas também, em Brumadinho, MG, dia 18 de dezembro de 2020, por volta das 16h10, matou outro José, chamado Júlio César de Oliveira Cordeiro, soterrando-o, após submetê-lo a trabalhar em uma retroescavadeira na Mina de Córrego do Feijão, em condições de altíssimo risco. Por esse crime, deixou outra “Maria”, uma mulher jovem, viúva com um ‘Jesus’ de apenas três meses nos braços. Por isso ecoaremos aqui o que já foi denunciado pela Comissão Pastoral da Terra, em Minas Gerais: Mineradora Vale S/A mata mais um trabalhador, em Brumadinho, MG. Até quando a Vale continuará impune e matando?



A mineradora Vale S/A, com exploração predatória, assassinou mais um trabalhador na Mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho, onde foram mortos, enterrados vivos, 272 trabalhadores e trabalhadoras, dia 25 de janeiro de 2019, com 11 corpos ainda desaparecidos. Após quase dois anos do crime-tragédia cometido pela Vale S/A com anuência do Estado, um dos maiores desastres ambientais do mundo e o maior acidente de trabalho do mundo em perdas de vidas humanas, com a cumplicidade do Estado, a Vale S/A continua matando, todos os dias, de várias formas, gente, peixes, animais e sacrificando todos os ecossistemas e expulsando comunidades de seus territórios. Enquanto dirigia uma retroescavadeira, um grande talude de uma cratera na Mina de Córrego do Feijão desabou, soterrando a retroescavadeira e o jovem trabalhador Júlio César de Oliveira Cordeiro, de 34 anos, empregado da empresa Vale Verde, terceirizada da Vale S/A. Júlio César deixou sua esposa viúva e órfão uma criança de 3 meses. Nossa solidariedade à esposa e a toda a família de Júlio César, mais um trabalhador martirizado pela Vale com a cumplicidade do Estado.



Denunciamos que a Vale, com a cumplicidade do Estado, continua matando de mil formas. Por exemplo, vem negando da forma mais vil o fornecimento de água potável a milhares de famílias que só acham lama em suas torneiras; negligencia quanto ao direito dos atingidos e das atingidas que se encontram fora do limite de 1 km do rio Paraopeba, mas que sofrem os mesmos prejuízos e danos dos demais; suspende indevidamente o auxílio emergencial de quem já possui este direito assegurado, sem justificativas plausíveis. O consumo de água potável para beber e cuidar das plantações e animais é um direito garantido pelos Direitos Humanos em nível internacional, mas o que se apresenta na bacia do Paraopeba é um cenário de pânico e de terror em várias comunidades, que sentem a cada dia as crescentes consequências na saúde da população decorrente do consumo de água com poluentes tóxicos e, provavelmente, com metais pesados. O adoecimento das pessoas e a insegurança de saber se vão ou não receber o auxílio emergencial no próximo mês causa uma grande tensão, além de conviverem diariamente com um rio e um ar contaminado. Doenças respiratórias, gastrointestinais, renais, vários tipos de câncer, depressão e outras enfermidades de ordem psicológica vêm se alastrando, comprometendo assim a saúde física e mental da população como um todo. Isso mata aos poucos. A Vale S/A, privatizada, mata também se beneficiando da terceirização, pois os trabalhadores que são submetidos aos trabalhos mais arriscados são os terceirizados.

O local é uma área de alto risco, não poderia ter ninguém lá. O talude não cai de uma vez. Sempre há indícios, rachaduras. Não se pode arriscar vidas humanas dessa forma e é preciso investigar se não há risco de novos rompimentos. O medo e o desespero das comunidades próximas àquele local é muito grande. Não foi um acidente conforme informado pela Vale S/A e pela imprensa, foi mais um crime premeditado e planejado. Em auto de infração de 15 dias atrás está registrado problemas de segurança de disposição de rejeitos minerários na cratera da Mina de Córrego do Feijão. Por isso, a Agência Nacional de Mineração (ANM) tinha paralisado os trabalhos na área. Os taludes estavam instáveis pela movimentação de caminhões e gigantes “tratores”? Como foi possível a obtenção de uma licença simplificada para uma operação tão arriscada e questionada por ambientalistas que é depositar rejeitos de mineração na cratera da mina de Córrego do Feijão, oferecendo altíssimos riscos aos trabalhadores e de contaminação dos lençóis freáticos na região? Assim, a Vale S/A operava na ilegalidade ou em legalidade suspeita.



É notória a exaustão da Região Metropolitana de Belo Horizonte, com mais de 300 anos de mineração. Com tantas crateras e túneis de muitos quilômetros, inclusive debaixo da cidade de Belo Horizonte, com dezenas de grandes barragens sinalizando que podem romper a qualquer momento e com vários pequenos abalos sísmicos e tremores de terra é óbvio que os trabalhadores e as trabalhadoras são submetidos a trabalharem em situações de altíssimo risco de morte.

Esse crime e tantos outros crimes-tragédias, como o rompimento da barragem de “Fundão” em Mariana, MG, (19 mortos), Barragem de Córrego do Feijão em Brumadinho (272 mortos), rompimento da barragem da Mineradora Herculano em 2014, em Itabirito-MG (03 mortos), a morte do motorista Bruno Henrique do Amaral Silva, em agosto de 2019, e a morte de dois caminhoneiros em meados de 2019 enquanto transportavam minério para a mineradora Mineral do Brasil, vizinha à Mina do Córrego do Feijão, revelam como o modelo de exploração mineral no Brasil é predatório e devastador, também em relação à vida humana. A geração bilionária de lucro para as empresas do setor, a maior parte sob controle de investidores estrangeiros, deixa apenas um rastro de desastres, destruição, miséria e contaminação para as populações locais. Até quando a Vale, a Samarco e outras mineradoras continuarão impunes e matando?

A questão é mais ampla do que a revisão de uma política de barragens. O modelo predatório de mineração a que temos sido submetidos considera a devastação de territórios e a destruição da vida como um preço a ser pago pela enorme margem de lucros do negócio. São especuladores também de minas de água e de aquíferos. Cumpre recordar que com a Lei Kandir, de 1998, isentando do pagamento de Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMs) as commodities para exportação, a Vale S/A e as outras mineradoras nem ICMs pagam. Com isso, o Estado de Minas Gerais teve uma perda de 140 bilhões de reais nos últimos 22 anos. E agora a Vale e o Governo de Minas Gerais, com a participação das Instituições de Justiça (Ministério Público de MG, Defensoria de Pública de MG e Tribunal de Justiça de MG (TJMG)), SEM A PARTICIPAÇÃO dos/as atingidas, estão construindo um Acordão que será muito bom para a Vale e péssimo para os/as atingidos/as.

Em Sarzedo, MG, município muito próximo à Mina do Córrego do Feijão, há quase dois anos, milhares de pessoas, longe dos holofotes da grande mídia corporativa, convivem com o pesadelo de eventual rompimento de barragens da mineradora Mineração Itaminas. Com mais de 5 mil pessoas cadastradas na área de inundação por lama tóxica em caso de rompimento, a continuidade da utilização dessas estruturas depende hoje do desfecho de uma Ação Civil Pública que até a presente data não levou a nenhuma obrigação de desativação das barragens, não foram realizadas perícias que possam minimamente tranquilizar a população. No dia 18 de dezembro p.p., após a notícia de mais um soterramento causando a morte do trabalhador Júlio César, milhares de pessoas do Bairro Brasília, em Sarzedo, que estão sob as barragens da Itaminas, não conseguiram dormir com a notícia e a chuva forte que aumentava os riscos de desabamento das barragens da Itaminas. Muitos são os fatores de risco apontados pela população e ignorados pelas autoridades, mas com o crime ocorrido na tarde de ontem em especial merece ser lembrado. Um fator de grande risco que vem sendo totalmente negligenciado até o momento pelas autoridades envolvidas é a existência de taludes das crateras da Mina da Jangada, de propriedade da Vale S.A, a pouquíssima distância da Barragem B4 da Itaminas, a barragem que oferece gravíssimo potencial para ceifar 5 mil vidas em Sarzedo, MG.

Como no caso da Barragem da Mina de Gongo Soco, em Barão de Cocais, MG, taludes são estruturas integrantes das crateras de mineração, privadas de estabilidade devido à enorme atividade que sobre elas impacta, desde a movimentação de cargas de dezenas de toneladas por “tratores” gigantes a detonações rotineiras. O senhor Ricardo Moraes e a senhora Rejane Moraes, moradores “expulsos” da sua casa em Córrego do Feijão, denunciaram em videorreportagem que as explosões com 460 quilos de dinamite na Mina da mineradora MIB, distante apenas 700 metros da Mina de Córrego do Feijão, pode ter desencadeado o rompimento da Barragem em Córrego do Feijão dia 25/01/2019. Assim como as barragens, os taludes também podem se desestabilizar, escorregando lentamente ou, em cenário mais grave, romper bruscamente, sendo que tal movimentação é capaz de ocasionar um rompimento das frágeis estruturas de contenção de rejeitos como é a Barragem B4 da mineradora Itaminas em Sarzedo. Ora, se na Mina do Gongo Soco, taludes de uma cratera distante quase 2 (dois) quilômetros da barragem interditada foram considerados fatores de risco do chamado “gatilho”, por qual motivo essas estruturas da Mina Jangada, que estão muito mais perto da B4 não foram consideradas como de risco à estabilidade e segurança da barragem? A Mina de Jangada localiza-se nos municípios de Brumadinho e Sarzedo e faz parte do complexo Paraopeba da Vale S/A. A mina vem sendo lavrada desde 1974, e em 2007 a Vale assumiu suas operações por meio do arrendamento do antigo empreendedor Minerações Brasileiras Reunidas S.A (MBR).

Além de suspender de forma preventiva o funcionamento de complexos minerários geradores de risco para populações, de rever processos de licenciamento, auditar e fiscalizar com rigor barragens e outras estruturas, é urgente avançar para um maior empoderamento das comunidades nos seus territórios. Para que se possam contrastar de maneira efetiva o projeto de morte revelado pela atuação das mineradoras, é imprescindível que às lutas das comunidades atingidas possam se somar todos que tenham compromisso com preservação do meio ambiente, a proteção das condições de vida e a promoção da dignidade, desde lideranças políticas, sociais e religiosas, passando por movimentos, organizações, entidades, chegando até as instituições públicas. Todos os crimes praticados por essas mineradoras, e que seguem impunes, são provas cabais de que para o capital minerário não há limites em termos de devastação e destruição. Esse modelo precisa ser interrompido para que centenas de territórios e sua gente deixem de ser subjugados como tem ocorrido de forma especialmente intensa nas últimas décadas.

Exigimos de todas as autoridades apuração contundente, julgamento e punição de mais esse crime da Vale S/A. Exigimos também que as autoridades do Estado não deixem a Vale continuar controlando a cena do crime. Nesse contexto de superexploração do capital – Vale S/A, agronegócio, transnacionais e capital financeiro especulativo -, além de acolher o menino Deus nascendo no meio dos atingidos e massacrados, temos também de denunciar os Herodes da atualidade. Em meio à guerra contra os pobres, contra a mãe terra, a irmã água, fauna e flora, oxalá sejamos Natal, presença do divino que revoluciona o humano para ser de fato humano, libertador.

22/12/2020

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Videorreportagem sobre o soterramento de Júlio César na Mina de Córrego do Feijão, da Vale S/A

2 - Homilia de Dom Vicente em São José do Brumadinho, Barão de Cocais, MG: São José sob Herodes, a Vale

3 - “SOCORRO! A VALE NOS ROUBOU O DIREITO DE VIVER”: PATRÍCIA PASSARELA e FERNANDA PERDIGÃO - 07/12/2020

4 - "Basta de atrocidades! Exigimos justiça!" - 2ª Parte - Por frei Gilvander - 06/12/2020

5 - A verdade está com os/as atingidos pela Vale e pelo Estado/1ª Parte/Por frei Gilvander - 06/12/2020

6 - "Estado, não venda nossa dor para a Vale!", atingida Eunice e Carlos Henrique, Câmara Fed. 06/12/20

7 - "A gente se sente esfaqueada pela Vale e pelo Governo." - 2ª Parte - Por frei Gilvander - 05/12/2020

8 - Gritos dos/das Atingidos/as interpelam nossa consciência - Por frei Gilvander -1ª Parte - 05/12/2020

9 - PALAVRAS DE FOGO: Atingidos/as pela Vale e Estado na Câmara Federal. Eliana Marques e Nívea Almeida

10 - Dor e lágrimas dos/as Atingidos/as. Por que as autoridades não ouvem? BRITO e LIONETE, de MG–4/12/20

11 - “Desde nossos avós vivemos aqui. Vale, AQUI NÃO!” Márcio, de Laranjeiras, Barão de Cocais/MG–7/12/20





[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Natal de Jesus: o divino no humano, no link a seguir: http://gilvander.org.br/site/%ef%bb%bfnatal-de-jesus-o-divino-no-humano/

[3] Natal de Jesus Cristo na periferia de Belém: “Não tenham medo!”, no link a seguir: http://gilvander.org.br/site/%ef%bb%bfnatal-de-jesus-cristo-na-periferia-de-belem-nao-tenham-medo/

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Pelos Direitos do Povo Tradicional Carroceiro e dos Cavalos e Éguas. Por Frei Gilvander

Pelos Direitos do Povo Tradicional Carroceiro e dos Cavalos e Éguas. Por Frei Gilvander Moreira[1]

 


Você já percebeu que em todas as cidades há carroceiros e carroceiras? Você já ficou sabendo que nas origens e no desenvolvimento de todas as cidades estão os/as carroceiros/as? Você sabe que o Povo Carroceiro é Povo e Comunidade Tradicional protegida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Organização das Nações Unidas (ONU)? Você sabe que parte dos/as carroceiros/as são ciganos, outro Povo Tradicional com cultura milenar? Você sabe que em Montes Claros. MG, estima-se a existência de 3 mil carroceiros/as e que em Belo Horizonte e Região Metropolitana há mais de 10 mil carroceiros? Pergunto, porque muitas vezes, cegados pela ideologia dominante, não vemos a beleza da imensa diversidade cultural existente no nosso país. Como amar, admirar e respeitar se não conhecemos? Em todo o Brasil, deve ter alguns milhões de carroceiros/as. Belo Horizonte, por exemplo, começou ao lado de um curral Del Rey e entre os/as trabalhadores/as que foram imprescindíveis na construção da capital mineira, estão os/as carroceiros/as. Porém, com as cidades se tornando cada vez mais cidades-empresas, o processo de asfixia e de encurralamento da imensa diversidade cultural segue atropelando modos de vida maravilhosos.

Em contexto de agravamento da pandemia do novo coronavírus, injustamente, dia 15 de dezembro de 2020, um Projeto de Lei (PL 142/2017), que insistia há quatro anos em criminalizar o modo de vida dos carroceiros e das carroceiras na cidade de Belo Horizonte, MG, foi aprovado em segundo turno na Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH) por 24 vereadores dos 41 da câmara. Apunhalaram pelas costas cerca de 10 mil famílias de carroceiros/as de BH e RMBH. Escondendo os verdadeiros motivos - interesses políticos para eleição da Mesa Diretora da Câmara, interesses econômicos de empresas e caçambas, de deputados e vereadores que se elegem capitalizando essa pauta - e com argumento falacioso de defesa dos direitos animais, busca-se substituir os cavalos por motos adaptadas. Segundo os/as carroceiros/as, “querem trocar os cavalos que fazem parte da nossa família por “cavalos de lata”, um absurdo. Sob a liderança da Associação dos Carroceiros e Carroceiras Unidos/as de Belo Horizonte e Região Metropolitana, com o Lema “A cidade é nossa roça! Nossa luta é na carroça!”, esse Povo Carroceiro, que é Comunidade Tradicional, friso, repudia com veemência tal projeto pelos seguintes motivos: a) a proibição das carroças afetaria a vida de cerca de 10 mil famílias não só de Belo Horizonte como também da região metropolitana, cujo sustento se baseia no trabalho na carroça. Não tendo mais zona rural, a cidade de Belo Horizonte se encontra (faz divisa) com Sabará, Santa Luzia, Vespasiano, Ribeirão das Neves, Contagem, Ibirité, Sarzedo, Nova Lima e Brumadinho. Por isso, milhares de carroceiros/as que moram nos limites de BH trabalham em dois ou até três municípios com suas carroças; b) desde os anos de 1990, foi construída em Belo Horizonte uma política de limpeza urbana que sempre tratou os carroceiros e carroceiras como verdadeiros agentes ambientais, responsáveis pela destinação correta de milhares de toneladas de resíduos da cidade. Nas gestões de Patrus Ananias e Célio de Castro foram construídas 34 Unidades de Recebimento de Pequenos Volumes (URPV); c) os cavalos e as éguas não são meros animais, mas sim companheiros/as de trabalho dos/as carroceiros/as, têm nome, história e fazem parte da família e da Comunidade Tradicional Carroceira. A tentativa de trocar cavalos e éguas por motos demonstra o desconhecimento da relação que existe entre carroceiros/as e seus/suas companheiros/as animais. E mais, nos leva a pensar em escusos interesses do capital de empresas que querem vender mais 10 mil motos e com isso aumentar o número de acidentes com motociclistas, poluir mais o ar com dióxido de carbono e poluição sonora. E os 10 mil cavalos e éguas substituídos seriam abandonados à própria sorte até a morte ou seriam sacrificados para se tornarem invisíveis?; d) os casos de maus-tratos aos animais não fazem parte do modo de vida carroceiro e são veementemente repudiados pelos mesmos. Os carroceiros e carroceiras participam, inclusive, desde 2017, de várias discussões com a Prefeitura, buscando regulamentar o trabalho e os critérios de cuidado dos cavalos e éguas. “Se há joio no meio do trigo, não se pode cortar o meio de vida do trigo por causa de algum joio existente no meio e somos os primeiros interessados em ver todos os cavalos e éguas e todos os animais bem cuidados. Que a prefeitura, as faculdades de veterinária e a sociedade nos ajudem a garantir condições dignas para todos os cavalos e éguas e que se aplique a lei de maus-tratos aos animais. Tem que acabar com os maus-tratos que injustamente acontece aqui ou ali e jamais proibir nosso meio de vida”, dizem os/as carroceiras. “Mas com a desculpa de defesa dos cavalos e éguas, matar aos poucos os carroceiros e nossas famílias não é justo”, afirma o carroceiro Cláudio, descendente de pais, avós e bisavós carroceiros; e) a cidade de Belo Horizonte foi construída com a participação ativa dos carroceiros e carroceiras, constituindo um patrimônio histórico e cultural da cidade. Ai de quem pisa na própria história e não honra suas origens!; f) o projeto de lei viola os artigos 215 e 216 da Constituição Federal que prevê que o Estado deve garantir o direito à manifestação da diversidade de todos os grupos que compõem o país; g) o PL 142 é autoritário, pois pugna apenas por proibição e repressão de um modo de vida tradicional e também porque foi formulado sem a participação dos/as Carroceiros/as. O presidente da Associação dos/as Carroceiros de BH e RMBH, Sr. Sebastião Alves Lima, carroceiro há 48 anos, denuncia: “Esse PL é racista, porque, sem nos conhecer e nem nos ouvir, insiste em violentar e massacrar nosso modo de viver e de cuidar dos animais. Por que quem defende esse covarde projeto só pensa em repressão e proibição? Quem disse proibição por si só resolverá os casos de maus-tratos, que são uma exceção no nosso meio?”. É óbvio que esse projeto se ancora em racismo estrutural, algo execrável e corolário de relações sociais escravocratas. Assim como sedentarismo nos adoece, adoece também os cavalos e éguas. Trabalhar de forma ética e justa no oficio de carroceiro/a faz bem tanto para os/as carroceiros/as e suas famílias quanto para os cavalos e éguas.

Além disso, os carroceiros e carroceiras da capital mineira já se autodeclararam como Povo e Comunidade Tradicional, com modos de vida próprios e cujo direito está garantido pela Convenção 169 da OIT da ONU, da qual o Brasil é signatário. A autodeclaração é o suficiente para garantir os direitos assegurados pela Convenção 169 da OIT. Além disso, o Decreto 6040/2007 e a Lei 21147/2014, que criaram, respectivamente, as Políticas Nacional e Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais, também garantem o direito dos/as carroceiros/as a manter seu modo de vida. Assim, qualquer tipo de ação, seja do setor público ou privado, que comprometa o modo de vida dos carroceiros e carroceiras, caracteriza uma clara violação à Convenção, à Constituição e às leis citadas. Desta forma, os/as carroceiros/as reivindicam aos vereadores e vereadoras de Belo Horizonte que garantam os direitos humanos e animais, arquivando de vez o perverso, inconstitucional e injusto PL 142/17 e solicitam que criem leis que garantam que as condições de vida dos/as carroceiros/as e seus companheiros animais sejam plenamente asseguradas.

Se há algo que o PL142 não faz é garantir o respeito aos direitos dos cavalos e éguas, e ainda viola de forma cruel os direitos humanos básicos. Viola o direito à livre expressão da diversidade cultural e viola o direito ao trabalho, já que o trabalho com os cavalos e éguas é a única fonte de renda para essas famílias. Há carroceiros que estão há quarenta, cinquenta anos na lida com as carroças. Muitos herdaram os saberes de seus pais, tios, avós, outros aprenderam com amigos. E pela pouca escolaridade, poucos teriam condições de tirar carteira para dirigir motos e nem condições econômicas para comprar moto, pagar seguro, IPVA e garantir manutenção.

Ao propor a substituição das carroças por motos adaptadas, o PL 142 trata de forma equivocada os cavalos e éguas como meros objetos substituíveis. Os setores do movimento de defesa dos direitos animais, que apoiam esse projeto fascista e etnocêntrico, sempre alegam que os cavalos e éguas, animais sencientes, são escravizados pelos/as carroceiros/as. Intencionalmente, promovendo sensacionalismo, divulgam em várias capitais as mesmas fotos sem data e sem localização, fotos sem identidade. Como o lugar social condiciona o olhar epistemológico, quem não convive com os/as carroceiros/as, de longe e do seu “lugar social”, que não é da classe trabalhadora, mesmo tendo boas intenções se equivoca redondamente. Sabemos que de boas intenções a estrada para o inferno está pavimentada. Triste quem ignora a Pedagogia da Libertação, de Paulo Freire, que diz que jamais quem está longe e fora da realidade pode apresentar solução correta para os problemas dos oprimidos. São os/as carroceiros/as quem têm experiência e saberes frutos da vivência cotidiana e, por isso,  capazes de propor soluções para a superação dos problemas existentes no meio dos/as carroceiros/as. O Poder Público - Executivo, Legislativo e Judiciário - precisa ouvir os/as carroceiros/as para que um Projeto de Lei realmente justo e que respeite os direitos dos carroceiros/as seja elaborado e aprovado. Os/as carroceiros/as organizados se regem por um Decálogo (“Dez Mandamentos”) dos/as Carroceiros/as[2].  Cavalos, éguas, burros são sujeitos de direitos, parte de famílias e comunidades, têm nome, temperamento, personalidade. O fato de carroceiros/as e cavalos e éguas se dedicarem a um trabalho de grande esforço físico certamente é interpretado por esses pretensos defensores dos direitos animais, em sua maioria brancos e de classe média, como algo degradante. Afinal, a elite sempre tratou os trabalhos braçais como atividades de terceira categoria, destinados a suas empregadas, pedreiros, porteiros, entre outros/as, ao fim e ao cabo, descendentes de seus parentes que foram escravizados do século XIX. “Hipócrita, tire primeiro a trave do seu olho antes de apontar o cisco no olho do/a irmão/ã” (Mateus 7,5), alerta o Evangelho de Jesus Cristo.

Atenção, esquerda cirandeira! Cuidado com as pautas identitárias para se eleger, que ignoram o recorte de classe em jogo na luta dos/das carroceiros/as. Via de regra são aliados da classe dominante que insistem em pisotear em um Povo e Comunidade Tradicional que tanto bem tem feito ao povo brasileiro: os/as carroceiros/as. A guerra contra os/as carroceiros/as é só mais uma página da guerra contra os pobres, mais uma trincheiro capitalismo que urbaniza e uniformiza tudo para dominar e lucrar, que tem horizonte tenebroso: apagar qualquer traço da vida camponesa na metrópole. Mas, expropriado e expulso do campo, os/as camponeses/as resistem há 520 anos. E resistiremos sempre, pois sabemos que é nosso único modo de viver. Por isso seguiremos, de cabeça erguida, na luta por todos os nossos direitos[3]. Carroceiros e Carroceiras, uni-vos, pois o rolo compressor de aliados dos capitalistas está atropelando e buscando asfixiar-nos.

15/12/2020

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - “Pelos direitos dos Carroceiros, vereadores/as de BH, arquivem o PL 142” Prof. Emanuel/UEMG/14/12/20

2 - Grito dos carroceiros de Belo Horizonte contra o PL 142/2017: "Somos Povo Tradicional!" – 13/12/2020

3 - Luta de carroceiros/as de BH/MG: Trabalho e respeito aos cavalos e éguas. 6ª Parte. 07/7/2018.

4 - Luta dos carroceiros/as e cavalos em BH/MG: pelo direito de existir na cidade/5ª Parte/07/7/2018.

5 - Luta dos/das carroceiros/as pelo direito de trabalhar com cavalos e éguas/BH/MG. 4ª Parte/07/7/2018

6 - Carroceiros/as, cavalos e éguas em BH/MG: dignidade e sobrevivência, 3ª Parte. 07/7/2018.

7 - Carroceiros/as de BH/MG: Cuidado com o meio ambiente e respeito aos animais/2ª Parte/ 07/7/2018.

8 - Carroceiros e carroceiras de BH/MG: Respeito à cultura, direito ao trabalho. 1ª Parte. 07/7/2018.

9 - Carroceiros/as de Belo Horizonte PROTESTAM na CMBH contra a aprovação do PL 142 INJUSTO - 14/12/20



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Decálogo dos Carroceiros e Carroceiras:

1º - Amar o animal como se fosse seu próprio filho.

2º - Manter seu animal sempre bem cuidado.

3º - Ser feliz e orgulhoso por ter seu animal sempre bem cuidado.

4º - Manter o cavalo feliz com uma carroça sempre com os pneus calibrados, boa carroça e arreata adequada.

5º - Zela pelo trato do animal dando banho, alimento, água e o descanso necessário.

6º - Andar sempre com atenção em vias púbicas, respeitando a legislação.

7º - Contribuir para a união e a solidariedade entre os carroceiros e as carroceiras.

8º - Aprender a ser amigo/a, compartilhando os conhecimentos.

9º - Ter boa convivência com os clientes/fregueses e servidores públicos, tratando-os com respeito.

10º - Jogar os materiais transportados apenas nos locais permitidos, contribuindo para a limpeza urbana.

[3] São co-autores deste artigo o Prof. Emanuel Almada, da UEMG e do Grupo Kaipora, e todos/as Carroceiros/as da Associação de Carroceiros/as Unidos/as de Belo Horizonte e RMBH.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

São José de Brumadinho, sob Herodes: a Vale. Por Frei Gilvander

  São José de Brumadinho, sob Herodes: a Vale. Por Gilvander Moreira[1]

Foto: Divulgação / MAM

Sem apresentar estudo sério e idôneo, a mineradora Vale anunciou, dia 18 de novembro último (2020), a elevação do nível de emergência para 2 da barragem Norte/Laranjeiras em Barão de Cocais, MG. Tal justificativa foi também usada para a retirada forçada de mais de 30 famílias e mais de 800 animais na região das comunidades de Laranjeiras e São José de Brumadinho, onde encontra-se  o Santuário de São José. A barragem, que tem 56 metros de altura e 32,3 milhões metros cúbicos de volume, já estava interditada desde março deste ano, pela falta de Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) exigida pela Agência Nacional de Mineração (ANM). A estrutura está classificada como de Dano Potencial e Categoria de Risco (CRI) altos e desativada desde 2019, mas, segundo os trabalhadores, ela não apresenta riscos de rompimento iminente. Com esse anúncio, as famílias vivenciam situações marcadas pelo terrorismo psicológico promovido pela Vale e pelos funcionários do poder público municipal e estadual. Todo o território tem sido alvo de tentativas de apropriação pela Vale há anos, desde o início de implantação da mina Brucutu, em 2006, em região próxima. Agora, a empresa se aproveita desse difícil momento em meio à pandemia da Covid-19 e usa a elevação do nível de emergência da barragem como estratégia para se apropriar de mais um território.

Essa é a estratégia recente que a Vale tem utilizado para invadir, se apropriar e controlar os territórios de interesse da mineradora e, pior, com apoio do Estado. Assim foi com a região de Socorro, em Barão de Cocais, que desde 08 de fevereiro de 2019 sofreu remoção forçada e que tem sido tomada por inúmeros projetos de exploração mineral, inclusive da própria Vale. O mesmo foi realizado no distrito de Antônio Pereira, no município de Ouro Preto, MG, com a remoção forçada de dezenas de famílias e que também é alvo de projetos de expansão minerária da Vale. Recorde-se do absurdo que foi o desgoverno Bolsonaro ter colocado “mineração como atividade essencial” durante a pandemia. Com essa ‘carta branca’ do Estado, a Vale tem disseminado covid-19 nos territórios e continua de forma acelerada sacrificando povos, a mãe terra, as águas e toda a biodiversidade em nome do acúmulo de lucros exorbitantes. E continua matando de mil formas em todos os territórios das bacias do Rio Paraopeba e do Rio Doce.

As comunidades de São José de Brumadinho e Laranjeiras possuem uma extraordinária história de resistência ao avanço do projeto de mineração da Mina do Brucutu, que visa transformar em um grande complexo de barragens de rejeitos a região que é um paraíso natural, ecológico e cultural. As comunidades possuem patrimônios culturais tombados pela Prefeitura e o Santuário de São José de Brumadinho é reconhecido como um local de peregrinação e encontros religiosos. Uma das Comunidades que está sendo expulsa pela Vale abriga o Santuário de São José de Brumadinho, onde, segundo devotos de São José, aconteceu um milagre em 1742 e, por isso, a região recebe mensalmente, no dia de São José, centenas de pessoas que vêm exercer sua fé e celebrar com o padroeiro dos trabalhadores.

A Mina de Brucutu, a maior da Vale no estado de Minas Gerias, está em plena expansão e ameaça toda a região do distrito de Cocais. A barragem de rejeitos do Torto já está em instalação, há o plano de construção de uma terceira barragem, denominada Tamanduá, que junto com a barragem Norte/Laranjeiras transformará o território em um complexo de reservatórios de rejeitos. Ademais, a cava do projeto da Mina de Brucutu segue em direção à sede do distrito de Cocais e planeja o desvio de um trecho da rodovia estadual MG-129, a estrada mais importante de ligação dos municípios da região.

Essa é mais uma ação criminosa da Vale que conta com a cumplicidade do Estado em utilizar o terror das barragens para fazer remoções forçadas em territórios onde a criminosa reincidente possui interesse em ampliar mineração devastadora. Muitas famílias estão resistindo a sair dos locais até possuir todas as informações da condição de segurança da barragem e as comunidades não abrirão mão de seu local sagrado, o Santuário de São José de Brumadinho. “São José fica e a barragem sai!”, eis o lema da luta no território sob a sanha insaciável de acumulação de capital da Vale.

Com o apoio do Estado, a mineradora Vale, contumaz servidora da idolatria do mercado e do capital, avança fazendo guerra contra os povos, os territórios e toda a biodiversida. A Vale, que já tentou comprar várias propriedades na região, está removendo os sitiantes para casas alugadas na cidade. Todos os moradores desalojados da comunidade de Socorro, que foram tirados de suas casas devido ao risco de rompimento da barragem Sul Superior, de Gongo Soco, em fevereiro de 2019 ainda não puderam voltar para casa, mesmo sem o rompimento que não aconteceu. Alguns venderam seus terrenos para a mineradora e mesmo aqueles que ainda os mantêm tiveram sua vida bastante modificada para pior. A vida deles nunca mais será a mesma. “A criminosa Vale mata nossos sonhos e nosso direito de viver todos os dias”, dizem as pessoas atingidas de mil formas.

O sítio do senhor Miguel Antônio de Almeida, de 85 anos, foi o primeiro a ser “visitado” por funcionários da Vale e da Defesa Civil. Sr. Miguel ouviu de um coordenador da remoção forçada: “Nos próximos 20 dias, vamos trabalhar a mudança do senhor e de todas as pessoas desta comunidade.” Uma funcionária da Vale foi incisiva: “Tem que sair, não tem como vocês ficarem aqui, estamos seguindo um protocolo da Defesa Civil. Não tem a opção de não querer ir. Será feito um inventário de tudo do sítio e vocês vão receber uma cartilha com todas as orientações”. Sr. Miguel, aterrorizado, ainda encontrou força para ir cuidar de algumas vacas no curral e desabafou: “A minha vida está aqui neste lugar. Se eu sair daqui, morro”. O filho do Sr. Miguel, Délcio Almeida, contou que o pai levanta todos os dias de madrugada, às 3h30. “Isso aqui é a vida dele. Ele capina, tira leite e faz queijo. A minha mãe veio para aqui para construir esta casa, devido à capela de São José do Brumadinho, aqui em cima. Ela faleceu em 2014, e amava este lugar. Não pode fazer isso com a gente. Aqui é onde a nossa família gosta de viver”, afirmou.

Dia 6 de dezembro último, Dom Vicente Ferreira, bispo da Arquidiocese de Belo Horizonte, da região de Brumadinho e da Comissão de Ecologia Integral da CNBB, celebrou missa diante do Santuário de São José do Brumadinho, em Barão de Cocais. Na homilia, Dom Vicente profetizou: “Sob cruel perseguição do rei Herodes, São José teve um sonho de que deveria fugir para o Egito com Maria e Jesus para salvar o menino Deus. Nosso sonho, agora, diz: São José fica e a barragem é que deve ser retirada! Nós queremos São José aqui! O Santuário não pode ser retirado daqui. Ontem, Herodes; hoje, a Vale. De que vale louvar o Pai do céu, se estamos matando a mãe Terra? Juntar a prece e nos apressar na luta por tudo o que é justo, eis nossa missão. A Vale faz propaganda mentirosa e enganosa. Temos que ficar indignados e revoltados diante da ganância sem fim desta mineradora que só pensa em destruir. Urge conversões eclesial, ecológica e cultural. Precisamos sair às pressas para lutar em defesa da Casa Comum. Não temos a opção de desistir, pois quem desiste morre aos poucos. A história é cheia de dragões e Herodes. Não podemos ter medo de nominar os Herodes de hoje. Jamais a Vale vai matar a nossa capacidade de sonhar um mundo justo. Quem deixar algum atingido para trás terá que prestar contas a Deus. A única coisa que a Vale quer é dominar os territórios para ganhar mais dinheiro. A Vale troca a vida pelo lucro.”

Reproduz-se em Minas Gerais, no Brasil e no mundo a luta de Davi contra Golias e, segundo o livro do Apocalipse, a luta da mulher em dores de parto ameaçada por um dragão cuspindo fogo para devorar a criança que está na iminência de nascer. Assim como Davi venceu Golias e a mulher venceu o Dragão do Apocalipse, a mineradora Vale e o Estado cúmplice serão vencidos pelo povo que segue se organizando e resistindo de cabeça erguida. A Vale, apesar de parecer invencível, pode e deve ser derrotada pois usa de mentiras, está recheada de contradições e, por isso, tem “pés de barro”, sangue nas mãos e espalha um vírus letal do seu corpo para as pessoas e os territórios onde atua[2]. Enfim, de fato, a Vale "é a morte, é o mercado financeiro... A Vale não vale nada, nada..."

08/12/2020

Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Homilia de Dom Vicente em São José do Brumadinho, Barão de Cocais, MG: São José sob Herodes, a Vale

2 - “SOCORRO! A VALE NOS ROUBOU O DIREITO DE VIVER”: PATRÍCIA PASSARELA e FERNANDA PERDIGÃO - 07/12/2020

3 - "Basta de atrocidades! Exigimos justiça!" - 2ª Parte - Por frei Gilvander - 06/12/2020

4 - A verdade está com os/as atingidos pela Vale e pelo Estado/1ª Parte/Por frei Gilvander - 06/12/2020

5 - "Estado, não venda nossa dor para a Vale!", atingida Eunice e Carlos Henrique, Câmara Fed. 06/12/20

6 - "A gente se sente esfaqueada pela Vale e pelo Governo." - 2ª Parte - Por frei Gilvander - 05/12/2020

7 - Gritos dos/das Atingidos/as interpelam nossa consciência - Por frei Gilvander -1ª Parte - 05/12/2020

8 - PALAVRAS DE FOGO: Atingidos/as pela Vale e Estado na Câmara Federal. Eliana Marques e Nívea Almeida

9 - Dor e lágrimas dos/as Atingidos/as. Por que as autoridades não ouvem? BRITO e LIONETE, de MG–4/12/20

10 - “Desde nossos avós vivemos aqui. Vale, AQUI NÃO!” Márcio, de Laranjeiras, Barão de Cocais/MG–7/12/20


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.