terça-feira, 6 de outubro de 2020

Francisco de Assis nos inspira e interpela. Por Frei Gilvander

 Francisco de Assis nos inspira e interpela. Por Frei Gilvander Moreira[1]

Que foto SENSACIONAL! O pássaro azul, ao lado do pássaro escultura, olhando para São Francisco tão atentamente como se de fato o ouvisse. Um raro e feliz flagrante de Jim Frazier.
ET : Esta escultura foi feita  dor FRANK C. GAYLORD  e se encontra na cidade de CHICAGO- ILINÓIS/EUA.

Um autêntico discípulo de São Francisco de Assis me perguntou: “O que significa Francisco de Assis para você?” Francisco de Assis me inspira e me interpela muito. Diante de Francisco de Assis, precisamos “tirar as sandálias”, pois estamos diante de alguém sagrado, místico no verdadeiro sentido, pois de tão humano se tornou santo, um irmão universal.

Em contexto de violência social, onde o poder religioso encontrava-se em conluio com os poderes econômico e político para assim oprimirem ainda mais os empobrecidos, Francisco de Assis não apenas fez Opção pelos Pobres, mas se tornou um pobre, um “menor” entre os menores: os leprosos da época, os que eram mais excluídos e execrados como impuros e terrivelmente discriminados. Francisco abandonou todo o luxo e as regalias da vida em uma família nobre. Francisco carregou sempre em si a ternura e o amor infinito da mãe dele, o que o ajudou a compreender que Deus nos ama infinitamente. Francisco pulou do cavalo e não aceitou participar de guerra para ampliar o poder econômico do pai fissurado para lucrar no comércio. Ele ficou do lado dos rebeldes de Assis, na região da Úmbria, Itália.

Na sua infinita ternura, Clara foi uma anja humana ao lado de Francisco de Assis. Com postura altaneira, Clara, ao se recusar a aceitar os ditames do poder patriarcal presente no seu pai e no seu tio, deve ter reforçado em Francisco a coragem de romper com tudo o que o aprisionava. Com olhar firme, Clara refutou a ordem do pai e do tio que queriam lhe impor um casamento: “Não cabe a você, tio, e nem a meu pai, determinar se casarei e com quem”. Francisco nunca acreditou em cruzada e nem em nenhum tipo de guerra que para ele nunca poderia ser santa nem justa. Francisco acreditava na força do amor e jamais no poder das armas. Para ele, “só o amor constrói”. Francisco teve a grandeza humana de romper com seu pai patriarcal e autoritário, adepto do mercado idolatrado e da escravidão a tal ponto que chegou a amarrar o próprio filho Francisco com correntes em um tronco e ainda teve a cara de pau de acusar o filho Francisco diante do bispo e de toda a nobreza: “A única coisa que meu filho sabe fazer é explorar o pai, após começar a andar com um “bando” de leprosos”. Porém, Francisco viu mais profundamente: “Eu tenho outro Pai que é Pai de todos nós e quer que eu seja o último entre os últimos. Por isso renuncio a todos os meus direitos sobre seu nome e sobre seus bens”. Que maravilha de postura! Francisco abriu mão do status, do prestígio e do poder, do luxo, da nobreza e da herança. Aliás, herança é uma das armas de reprodução da desigualdade social. Especialmente na sociedade capitalista em que vivemos o mínimo que devia existir é o imposto sobre herança com alíquota de 50% e destinado às áreas sociais para melhorar a vida do povo empobrecido. O justo seria a herança ser partilhada entre todos os filhos e filhas – a sociedade inteira - e não apenas com os filhos de uma família nuclear.

No início do Século XIII, em contexto religioso de negação do ensinamento e da práxis de Jesus revolucionário, Francisco de Assis se apaixonou pelo Evangelho de Jesus Cristo e tornou-se um feliz caminhante, pobre, humilde, que buscava sempre consolar os aflitos. Francisco sempre foi faminto e sedento de justiça, misericordioso, puro de coração, construtor de paz, perseguido por causa da justiça, insultado, caluniado, e, por isso, feliz e contente (Cf. Mt 5,1-12). Ele seguiu à risca o Evangelho que diz “Vá, venda tudo o que tem, dê o dinheiro aos pobres,[...], venha e siga-me” (Mt 19,21),  foi para onde ninguém queria ir: para o meio dos leprosos, passou a viver com eles, os abraçava e beijava, dormiu em pocilga (chiqueiro), inclusive. Esse exemplo de Francisco de Assis foi vivenciado por Che Guevara, argentino, médico e revolucionário. Esse homem foi imprescindível e, quando percorria a América AfroLatÍndia, che­gando a um leprosário na selva amazônica, foi advertido pela freira responsável para não entrar em contato com os leprosos, a não ser com luvas, para evitar contágio. No entanto, Che Guevara achava que não podia obede­cer às ordens da irmã, pois não queria que a sua atitude de prevenção aumentasse neles o sentimento de exclusão. Por isso, de noite, sem luvas, ele ia e abraçava os leprosos e os acolhia como irmãos. Estes choravam de emoção, porque Che os respeitava como gente. Não houve nenhum contá­gio. Pelo contrário! Melhorou o ambiente, que se tornou mais fraterno e, por isso mesmo, mais cristão. Francisco dizia: “Lepra, minha melhor mestra!” Assim como Jesus de Nazaré, Francisco de Assis convivia com as pessoas impuras, excluídas e discriminadas.

Para Francisco de Assis, fé em Deus exigia fé em si mesmo e na força espiritual dos violentados da história e na natureza, que é sagrada. No meio de tantas injustiças, Francisco ouviu o mais profundo da mensagem divina: “Agora, vá, Francisco, e restaure minha casa que está em ruínas”. Mais do que uma igrejinha local o que estava em ruínas era a igreja acumpliciada a podres poderes da política e da economia. Francisco descobriu que para ser fiel ao chamado de Deus precisava estar junto aos leprosos. Dizia ele: “Somos todos leprosos, mesmo escondendo nossas chagas. Deus nos ama tanto, mãe, apesar de nossas chagas, que se doou a nós na cruz nos mostrando todas suas chagas”.

É preciso recordar que o “hábito” usado por Francisco era a roupa dos leprosos, “dos irmãos em situação de rua”, era roupa de saco, “chita” da época, muito diferente do hábito franciscano ou carmelita de hoje, que pode soar como status. Francisco e seus irmãos maltrapilhos foram expulsos do seu território. “Não queremos você, Francisco, e este bando de maltrapilhos em nossas terras”, ameaçavam os cavaleiros do poder repressor. Um cardeal, tipo O Grande Inquisidor, de Dostoiévski, tentou dificultar o acesso de Francisco e seus irmãos ao papa: “Quatro maltrapilhos! Sua santidade não perderá tempo com esses quatro maltrapilhos.”

Francisco dizia: “Se ninguém estiver disposto a dar o primeiro passo e se ninguém tiver a coragem de perdoar, essa guerra não acabará”. Ele se referia à guerra das cruzadas. Hoje, a guerra que nos assola é aquela na qual o sistema capitalista mancomunado com as transnacionais e as elites subservientes à idolatria do mercado impõe aos povos e territórios, ameaçando exterminar a vida humana sobre o Planeta Terra. Uns trezentos anos antes do iluminismo e do mercantilismo, que levaram à absolutização do indivíduo branco, europeu e capitalista ao afirmar os direitos individuais, Francisco de Assis já compreendia e testemunhava que o ser humano não é superior aos outros seres vivos na natureza. Ele aprendeu e cultivou uma espiritualidade universal, ao ver que “todas as terras são santas”, não apenas Jerusalém, e se encantou com a beleza e a sacralidade de toda a natureza. Por isso, para Francisco todos os seres vivos e integrantes da natureza são irmãs ou irmãos: “irmão sol”, “irmã lua”, “irmã água”, “irmão fogo”, “irmã e mãe terra”, “irmã morte”, ...

Nascido no ano de 1182, após viver apenas 44 anos, dia 03 de outubro de 1226, Francisco de Assis partiu para a vida plena e há 800 anos segue renascendo, inspirando humanidade nos corações de milhões de pessoas. E também nos interpelando sempre. Dois anos depois de sua morte, foi reconhecido como santo pelo papa Gregório IX, não porque fez milagres extraordinários, mas porque se humanizou plenamente e já era reconhecido pelo povo que teve a graça e a responsabilidade de conviver com ele. Enfim, Francisco de Assis se tornou outro Cristo e, ao ver, vivenciar e irradiar a espiritualidade de Francisco, Clara se tornou outra Maria Madalena. Por isso e muito mais, Jorge Bergoglio, ao ser escolhido papa, preferiu que fosse chamado de Papa Francisco[2].

06/10/2020.

Obs.: Os filmes e vídeos nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado acima.

1 - Marcus Viana - Francisco de Assis (Álbum Completo)

2 - Leonardo Boff sobre o livro "Francisco de Assis e Francisco de Roma: uma nova Primavera na Igreja"

3 - Terra, Teto e Trabalho: a Verdadeira Alegria e a Economia de Francisco e Clara, com Leonardo Boff

4 - Chico Alencar e Leonardo Boff falam sobre ecologia e espiritualidade!

5 - Ética & Ecologia - Desafios do Século XXI - Os 4 p



 

 

 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB, Ocupações Urbanas e Movimentos Populares; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III – Instagram: gilvanderluismoreira (Frei Gilvander Moreira)

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

O Grande Inquisidor, de Dostoiévski, nos interpela. Por Gilvander

O Grande Inquisidor, de Dostoiévski, nos interpela. Por Gilvander Moreira[1]


 Celso Frateschi em O GRANDE INQUISIDOR. Foto: Divulgação – Ágora Teatro

A convite do ator Celso Frateschi assisti e comentei a peça teatral “O Grande Inquisidor”, de Fiódor Dostoiévski, que é de leitura indispensável. O Grande Inquisidor é um pequeno, mas denso, eloquente e contundente capítulo do último romance de Fiódor Dostoiévski: “Os Irmãos Karamazov”, publicado como uma série no Mensageiro Russo, de janeiro de 1879 a novembro de 1880. Assistir à belíssima apresentação de O Grande Inquisidor com Celso Frateschi foi para mim um momento inesquecível e fez passar um filme na minha cabeça. Recordou-me as muitas vezes em que, como a maioria do povo brasileiro, eu também senti na pele estar sob certo tipo de inquisição por algum Grande Inquisidor. A peça O Grande inquisidor me fez recordar quando eu trabalhava em latifúndios como família agregada. Ao ver nossa produção, fruto da mãe terra e do nosso trabalho, sendo levada no caminhão do fazendeiro, dois gritos irrompiam no meu coração: “Isso não é justo!”,  “Isso não é justo!” e “Deus não quer isso!”, “Deus não quer isso!”  Esses gritos retinam nos meus ouvidos para sempre. Marcado por essa experiência de ser explorado pelo latifúndio e por latifundiários, tenho dedicado minha vida a lutar por justiça no seu sentido mais profundo: justiça agrária, justiça urbana, justiça ambiental e respeito aos direitos humanos fundamentais. A violência perpetrada pelo Grande Inquisidor, seja ele cardeal, latifundiário ou outro carrasco gera indignação nas pessoas violentadas.

Andar na contramão do Grande Inquisidor exige muito amor, paixão pela causa dos violentados e coragem. Segundo Dostoiévski, em O Grande Inquisidor, em Sevilla do século XVI, na Espanha, em tempos de chumbo e auge da mais terrível inquisição, Jesus Cristo reaparece esbanjando ternura, amor, afabilidade, com uma luz irradiante de amor que humanizava o ambiente. Porém, Jesus é submetido a um cruel processo inquisitorial por um cardeal. Eis uma metáfora da nossa realidade de mundo sob cruel superexploração, em 2020, e especialmente do Brasil, país imerso novamente em violência generalizada, tortura, com relações sociais escravocratas e ditadura, de mil formas. Muitas afirmações e perguntas de O Grande Inquisidor são emblemáticas e nos interpelam, tais como: “Por que vieste para nos estorvar?”, “Como pode um rebelde ser feliz?”, “Que liberdade é essa se a obediência é comprada com pão?”, “Os homens anseiam por comunidades de culto”, “Tu vieste só para os eleitos?”, “Quem retém o pão em suas mãos?”, “Mesmo que haja outra vida, não será para escravos obedientes”, “Não digas nada”, “Cala-te!”, “Te julgarei e te condenarei como o maior dos hereges”, “Não existe nada mais insuportável para a humanidade que a liberdade”, “Nada é mais irresistível que a atração do pão”, “Existem três poderes, três forças na terra: o milagre, o mistério e a autoridade”, “O homem busca muito mais o milagre do que Deus”, “Tu mereces ser queimado na fogueira da inquisição”, “Os grãos de areia são fracos, mas se amam”, “Amanhã eu te queimarei”, “Vá e não voltes nunca mais!”, e tantas outras afirmações e perguntas que cortam como navalha.

Realmente, há no meio do povo ânsia imensa por “comunidades religiosas de culto”. O fundamentalismo religioso do neopentecostalismo está sendo trombeteado aos quatro ventos por igrejas eletrônicas que reduzem Deus a um quebra-galho, autoajuda e fomentando uma falsa teologia, que é a chamada Teologia da Prosperidade, afundando as pessoas em água benta, em desencarnação da fé cristã e em amputação da dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo. Orar faz bem, mas não qualquer tipo de oração, pois há determinados tipos de oração que transferem para Deus responsabilidades que são nossas.

Faz necessário recordar que o bom pastor do capítulo dez do Evangelho de João, na Bíblia, convida as ovelhas para saírem do curral e as conduz para verdes pastagens, para campo aberto – espaço de liberdade, não abstrata, mas com condições objetivas que viabilizem o ser livre efetivamente. Lamentavelmente, no neopentecostalismo brasileiro, os falsos líderes religiosos, sejam padres ou pastores, incitam o povo a ficar entocado nos espaços religiosos, tiram as pessoas dos espaços públicos e, assim, aprisionam as pessoas domesticando-as com moralismos que são Grande Inquisidor, chegando a aberrações tais como furtar do povo doações para construir templos luxuosos e até sino de 17 milhões de reais. Absurdo! Idolatria! Não esqueçamos: o neopentecostalismo foi exportado dos Estados Unidos para o Brasil e América Latina, como analisa o mineiro Délcio Monteiro de Lima, no livro Os demônios descem do norte, e fomentado pelos papas João Paulo II e Bento XVI.

Há vários sentidos para Religião: no sentido original, Religião vem de re-ligar, re-ler, re-eleger e, assim, pode nos religar com o mistério de amor infinito e profundo que nos envolve com o próximo, com todos os seres vivos e com o nosso Eu mais profundo. Entretanto, com o andar histórico, as Religiões se tornaram Instituições com dogmas, doutrina, funcionários e tendem a se autorreproduzirem em estruturas de poder opressor.

Parece-me que Dostoiévski critica de forma contundente não o ensinamento e a práxis de Jesus de Nazaré, vista da perspectiva da Teologia da Libertação, mas critica a versão do ensinamento e da práxis de Jesus, segundo a teologia dogmática clássica, que sob muitos aspectos deturpa o que o Galileu revolucionário ensinou e testemunhou. Dostoiévski denuncia de forma implacável a Igreja Instituição e a diabólica inquisição que excomungou Jesus de Nazaré revolucionário, porque ele estorvava e estorva os podres e violentos poderes. Para se deleitar em podres poderes e comodismo, muitos não mudam de vida como propõe Jesus, mas mudam Jesus adocicando-o ou enquadrando-o a escusos interesses. Se Jesus voltasse agora, ele não teria lugar na estrutura do próprio Cristianismo, como tanta gente marginalizada e violentada na sua dignidade. Por exemplo, as três palavras com as quais, segundo O Grande Inquisidor, se domina todos: “milagre, mistério e autoridade”. Para a Teologia da Libertação, milagre não é mágica, não é algo feito por Jesus que seja impossível de ser feito por outra pessoa humana. Milagre não estupra a natureza. “A graça supõe a natureza”, já dizia o filósofo e teólogo Tomás de Aquino. Jesus não tinha um superpoder sobrenatural inacessível aos outros humanos. Jesus não nasceu Cristo, mas se tornou Cristo, porque se humanizou de forma esplêndida. Milagre é um processo de solidariedade gratuita que questiona dogmas, leis e regras que geram marginalização e, por isso, liberta as pessoas, mas sempre nas entranhas das relações humanas e sociais. Um aparente bom pastor, mas na realidade inquisidor, opressor, dominador, muitas vezes invoca o mistério para impor um “cale-se!”, porém diante do mistério, conforme dizia o filósofo Wittgenstein, “devemos nos calar somente após dizermos a última palavra”. Assim como Jesus revolucionário estorva os Grandes Inquisidores da história, sigamos estorvando os inquisidores da atualidade. (Obs.: Na próxima semana publicaremos a 2ª parte deste texto).

Belo Horizonte, MG, 29/9/2020.

 Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Fernando Francisco de Gois, outro Cristo e Servo de Deus no meio dos excluídos, outro bom samaritano, em entrevista a frei Gilvander – 09/9/2020.

2 - Mov. Negro, Quilombolas e Pescadores do Baixo São Francisco se REBELAM contra mais barragem. Vídeo 6 – 22/9/2020

3 - "O anjo das ruas", Padre Júlio Lancellotti com André Trigueiro - 22/9/2020

4 - Padre Júlio Lancellotti, uma vida dedicada a amar e defender os irmãos em situação de rua - 19/9/20

5 - “Saga do Velho Chico”, de Quitéria Gomes. NÃO à barragem de Formoso, Pirapora/MG –Vídeo 5 – 07/9/20

6 - "Basta de barragens!", grita o Povo do Baixo São Francisco. UHE de Formoso, NÃO! Vídeo 4 - 07/9/2020

7 - Muitos Gritos do Brasil contra a construção da Barragem de Formoso, em Pirapora/MG -Vídeo 3 -07/9/20

8 - "Não aceitamos barragem de Formoso em Pirapora/MG", gritam no Baixo São Francisco -Vídeo 2 – 07/9/20

9 - Povo do Baixo São Francisco NÃO ACEITA mais barragem: Não à de Formoso, Pirapora/MG-Vídeo 1 -07/9/20



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

Fernando Francisco de Gois, outro Cristo e Servo de Deus no meio dos excluídos, outro bom samaritano, em entrevista a frei Gilvander

Fernando Francisco de Gois, outro Cristo e Servo de Deus no meio dos excluídos, outro bom samaritano, em entrevista a frei Gilvander – 09/9/2020.



Dia 09 de setembro de 2020, virtualmente, Frei Gilvander Moreira entrevistou Fernando Francisco de Gois, que atualmente está sendo missionário no meio dos excluídos na Prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Fernando Francisco de Gois nasceu no norte do Paraná, de uma família empobrecida, com sete filhos. Entrou para o Seminário dos frades Carmelitas aos 13 anos. Foi Frei Carmelita durante dez anos. Depois optou por deixar o Carmelo e foi morar na favela/ocupação/comunidade Profeta Elias, na periferia de Curitiba, no Paraná. Depois passou a morar na rua junto às crianças e aos adolescentes em situação de rua. Tornou-se um dos criadores do Movimento Nacional das Crianças e adolescentes em situação de rua. Foi um dos protagonistas na elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente. Depois constituiu a Chácara Meninos de 4 Pinheiros (www.4pinheiros.org.br ), onde coordenou um trabalho pastoral e social que levou ao resgate de mais de mil crianças e adolescentes em situação de rua. Após 22 anos trabalhando no resgate de crianças e adolescentes em situação de rua na Chácara Meninos de 4 Pinheiros e nas ruas de Curitiba, Fernando de Gois deixou o projeto sob a responsabilidade de jovens ex-recuperando e se tornou andarilho e trecheiro. Foi a pé de Curitiba até Aparecida no Norte, SP, 600 quilômetros em 22 dias. “Fiz isso para me humanizar”, diz Fernando. Depois passou 1 ano convivendo com os irmãos e as irmãs excluídos na Cracolândia na capital de São Paulo, sendo servo de Deus no meio dos descartados, sendo “bom samaritano. Depois continuou como andarilho e trecheiro passando pelas cidades de Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Maceió, Recife, Bom Jesus da Lapa, Lapa, para conferir como o poder público destas cidades está tratando os excluídos e, depois, atraído pelo testemunho espiritual e profético de Dom Pedro Casaldáliga e pelos mártires da Caminhada, Fernando de Gois foi para a Prelazia de São Félix do Araguaia, onde está sendo presença de Deus no meio das mulheres em situação de prostituição, irmãos e irmãs em situação de rua, presidiários etc. E para surpresa de muitos/as, a convite do bispo Dom Adriano Ciocca, atual bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, já foi ordenado diácono e será ordenado sacerdote dia 01 de novembro de 2020, na periferia, no meio dos excluídos, para ser sacerdote servo no meio dos mais excluídos. Enfim, Fernando Francisco de Gois, outro Cristo e Servo de Deus no meio dos Excluídos, um “bom samaritano”, que sempre está onde ninguém quer ir. Eis, na entrevista aqui uma AULA MAGNA imperdível! Fernando tinha que ter o nome de Francisco no nome, pois é outro Francisco de Assis e de Bueno Aires no meio dos excluídos e descartados. Temos não apenas Dois Franciscos, o de Assis e o de Buenos Aires, mas temos um 3º Francisco: Fernando Francisco de Gois, outro Cristo no meio dos descartados/as. “Olha a glória de Deus brilhando ...”

Fernando Francisco de Gois, outro Cristo e Servo Sofredor de Deus no meio dos excluídos, agora na Prelazia de São Félix do Araguaia, MT: “Sou movido pela solidariedade.” Foto: Rede Globo – Painel RPC: Fernando de Góis conta sua experiência na Cracolândia, em São Paulo, SP.



Produção, edição e divulgação: Frei Gilvander Moreira, da CPT, das CEBs, do CEBI, do SAB e da assessoria de Movimentos Populares, em Minas Gerais.

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terça-feira, 22 de setembro de 2020

DEUTERONÔMIO: NÃO à idolatria, ao trabalho escravo e à agiotagem. Por Frei Gilvander

 DEUTERONÔMIO: NÃO à idolatria, ao trabalho escravo e à agiotagem. Por Frei Gilvander Moreira[1]



Religião alienada das questões sociais escraviza o povo, hoje e no passado. Quando tendências religiosas intimistas, espiritualistas, amputadoras da dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo e desencarnadoras da fé cristã são alardeadas por líderes religiosos, sem pastores, padres ou leigos/as, levam as pessoas a cruzar os braços e apenas orar pedindo que Deus resolva de forma mágica as injustiças sociais, o que só piora a situação de injustiças reinantes. Assim, sem perceber, as pessoas alienadas religiosamente se tornam cúmplices dos processos de opressão do povo. Ao contrário, quando tendências religiosas que animam o povo a buscar na luta coletiva e comunitária a superação dos dramas e das injustiças que se abatem sobre o povo injustiçado, as lutas populares libertárias são potencializadas, pois o povo descobre que só na luta coletiva pode conquistar seus direitos. Valorizando a dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo e a opção de Javé pelos oprimidos, a fé cristã mobiliza para lutas libertárias. Do contrário, de fato, certos tipos de expressões religiosas se transformam em ópio do povo.

O livro de Deuteronômio não tolera idolatria, uso indevido do nome de Deus. “Não pronuncie em vão o nome de Javé seu Deus” (Dt 5,11), exortam de modo enfático os levitas, animadores das comunidades, que não podiam ter terra para não adquirir poder. O problema não está simplesmente em pronunciar o nome de Deus em vão, mas em usar para fins escusos o nome de Deus, pois, invocar o nome de Deus induz as pessoas a acreditar que quem o invoca é de fato um enviado de Deus. Sabemos que em um país com povo eminentemente religioso, nas eleições, quem se pronuncia como ateu perde voto e quem se apresenta como religioso ganha um grande volume de votos. Portanto, no Brasil, se apresentar como pessoa religiosa tornou-se uma estratégia eleitoral. Trata-se de um tipo de assédio religioso para fisgar as pessoas e induzi-las a acreditar que, pelo simples fato de alguém usar linguagem religiosa e ter aparência piedosa, já é digno de confiança. Ledo engano. A realidade demonstra que isso não é verdade. Os estragos aos direitos trabalhistas, previdenciários e ambientais foram aprovados no Congresso Nacional com os votos da Bancada da Bíblia – mais de cem pastores que se tornaram deputados federais – atuando junto com as Bancadas do Boi (Bancada dos latifundiários e do agronegócio) e da Bala (os que absolutizam o direito à propriedade só para eles mesmos e mentem afirmando que é com repressão que se resolverão problemas sociais). Portanto, cuidado com os que falam muito o nome de Deus, mas não cultivam atitudes coerentes com o Deus Libertador. As primeiras Comunidades cristãs, segundo o Evangelho de Mateus, já alertavam sobre as falsas promessas e para a necessidade de prática libertadora: “Cuidado com os falsos profetas: eles vêm a vocês vestidos em peles de ovelha, mas por dentro são lobos ferozes” (Mateus 7,15). “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor”, entrará no reino do Céu. Só entrará aquele que põe em prática a vontade do meu Pai, que está no céu” (Mateus 7,21).

Trabalhar, sim, mas repousar no sábado. E honrar a memória dos ancestrais. O livro de Deuteronômio repudia trabalhar como escravo. “Não faça trabalho algum no sábado...” (Dt 5,12-13). Muito eloquente o modo como o livro de Deuteronômio enfatiza e alerta a todos/as, com detalhes, para não trabalhar todos os dias e nem de forma extenuante. Ninguém da família deve trabalhar no sábado, nem pessoas escravizadas e nem algum animal. Para que deixar de trabalhar todos os dias? – indagam os exploradores do trabalho alheio. “Que todos repousem no sábado, como você” é a resposta do deuteronomista em Dt 5,14.  Um princípio básico da Constituição do povo de Deus é garantir o direito ao repouso e ao ócio, o que é algo tremendamente anticapitalista, pois quanto mais se desenvolve o sistema capitalista mais se superexplora o trabalho por metas de produção e pela intensificação de exigências, impondo trabalho extenuante. A experiência histórica da escravidão no Egito, sob o Império dos Faraós, e das opressões ao longo da história da humanidade jamais pode ser esquecida. Jamais a história lida sob a perspectiva dos violentados pode ser encoberta ou apagada. Os novos opressores sempre insistem em apagar a história alegando mentirosamente que “não houve escravidão”, “não houve ditadura”, “não houve tortura”, porque tramam reinventar novas escravidões e novas ditaduras sangrentas.

O livro do Deuteronômio prescreve também: honrarmos os nossos ancestrais. “Honre seu pai e sua mãe...” (Dt 5,16) não se refere apenas ao nosso pai e à nossa mãe, mas refere-se a todos/as nossos/as ancestrais e antepassados/as. Honrar “pai e mãe” implica honrar todos os profetas e as profetisas da Bíblia, todos/as os/as mártires de todos os tempos, todas as pessoas que contribuíram para que fôssemos quem somos e tivéssemos acesso ao que temos. Tudo o que existe: direitos individuais e sociais, bem como grandes descobertas e cultura em geral, é obra dos/as nossos/as antepassados/as.

Verdadeira Constituição dos Povos de Deus da Bíblia, o Decálogo, que está em Êxodo 20,1-17 e em Deuteronômio 5,6-22, é formado de princípios que visam assegurar a construção de uma sociedade que não mate, não roube, não adultere, não calunie e nem desrespeite os direitos das mulheres e nem invada terras que são, por origem, do povo, pois “a terra pertence a Deus”. Ozorino Pires, camponês de 75 anos, atualmente assentado no Assentamento Dom Luciano Mendes, em Salto da Divisa, MG, gosta de dizer, evocando sua motivação de fé em Deus para estar na luta pela terra: “A Escritura diz que a terra foi criada por Deus sem cerca e sem porteira para todo mundo viver dela. Pelo que eu sei, Deus quando fez a terra não passou escritura para ninguém não. Somos filhos da terra e filhos de Deus”.

No meio do livro do Deuteronômio, em Dt 15,1-23, temos o núcleo das relações sociais defendidas pelos Deuteronomistas: “Não deve haver pobre entre vocês, porque Javé vai abençoar você na terra que Javé seu Deus dará a você, para que a possua como herança” (Dt 15,4). Ou seja: Deuteronômio defende a construção de uma sociedade sem explorados e sem exploradores, com todos tendo acesso à terra “como herança”, uma sociedade justa economicamente e com sustentabilidade ecológica. Aqui os autores do Deuteronômio defendem três aspectos imprescindíveis das relações sociais: a) Não pode haver na sociedade relações sociais que empobreçam as pessoas; b) Todos terão acesso à posse da terra. Não se permite concentração da terra em poucas mãos; c) Ninguém será proprietário de terra. Somente o usufruto da terra, “como herança” dada por Deus, é defendido pelo Deuteronômio.

Ao defender relações sociais que não gerem desigualdade social, o livro de Deuteronômio está em sintonia com o livro de Levítico, que prescreve a realização do Ano do Jubileu, de 50 em 50 anos (Lv 25,8-17): revolução geral da sociedade, com a terra sendo devolvida aos seus antigos possuidores e herdeiros (Lv 25, 10.13) ao defender que a “terra pertence a Deus” (Lv 25,23) e com I Reis que prescreve que a “terra é herança de Deus” (1 Rs 21,3), não sendo passível de ser comprada e nem vendida. Ninguém deve se considerar proprietário de terra, mas apenas posseiro, com direito ao usufruto.

Ao prescrever relações sociais que não causem empobrecimento de ninguém, acesso à terra para todos/as e proibição de se transformar a terra em mercadoria, privatizando-a, o livro de Deuteronômio está sugerindo que de fato a causa matriz da desigualdade social é a apropriação da terra em processos de grilagem ou em propriedade privada capitalista. A grilagem e a latifundiarização dos territórios se tornam a âncora que sustenta todas as engrenagens de exploração que se desenvolvem em uma sociedade capitalista.

As Comunidades que estão por trás do Deuteronômio, por experiência própria e pelas lições da história, sabem que não bastam leis justas, mas que é preciso cultivar relações de solidariedade libertadora permanentemente. Isso é defendido em Dt 15,7-11. Estejamos sempre atentos e dispostos a acolher quem por um motivo ou outro se tornou vulnerável. Porém, a solidariedade não pode ser assistencialista e nem gerar dependência. Precisa ser solidariedade aliada à luta pela justiça no seu sentido mais profundo. No caso de políticas públicas, não apenas políticas compensatórias ou de quotas, mas também políticas re-estruturadoras das bases da sociedade.

De sete em sete anos se deve fazer um Ano Sabático, durante o qual as dívidas deverão ser perdoadas. “Todo credor que tenha emprestado alguma coisa a seu próximo, perdoará o que tiver emprestado. Não explorará seu próximo, nem seu irmão, porque terá sido proclamado um perdão geral em honra de Javé” (Dt 15,2). Esta utopia está sendo buscada pela comunidade dos povos que fizeram Aliança com Javé, Deus solidário e libertador. Isso implica que a sociedade que Deus quer não pode ter espaço para agiotagem, nem de banqueiros, nem de empresas e nem de pessoas que preferem viver sem trabalhar e só emprestando dinheiro.

Enfim, por tudo exposto acima, percebemos que o livro de Deuteronômio pugna pela vivência da Aliança de Javé, Deus solidário e libertador, com seu povo escravizado, mas adverte: Se aparecerem empobrecidos na sociedade, é o SINAL: a ALIANÇA com JAVÉ está sendo rompida...

Belo Horizonte, MG, 22/9/2020.

 Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Frei Carlos Mesters fala sobre o Livro do Deuteronômio em entrevista a frei Gilvander - 15/01/2020

2 - Cartilha do mês da Bíblia de 2020 do CEBI/MG: livro do Deuteronômio. Por Julieta Amaral - 18/6/2020

3 - Livro do Deuteronômio, Levitas Resgatando ideais do Êxodo em plena Monarquia - CEBI/MG - Parte I


4 - Livro do Deuteronômio, a pregação dos Levitas. Por Frei Gilvander, Julieta e Irmã Marysa - Parte II


5 - Livro do Deuteronômio - chaves de leitura - Mês da Bíblia de 2020 - por Rafael, do CEBI. Vídeo 1

5 - Deuteronômio/Mês da Bíblia 2020/Chaves de Leitura por Rafael Rodrigues, do CEBI/Vídeo 2 - 02/2/2020


6 - Livro do Deuteronômio - Mês da Bíblia/2020: Pistas para uma leitura sensata e libertadora, por Rafael Rodrigues - Entrevista completa


7 - Live - CEBI-MG lança Mês da Bíblia de 2020 sobre o livro de DEUTERONÔMIO, UM GRITO POR JUSTIÇA – 31/8/2020


8 - Live - Deuteronômio, um grito por justiça: resgate de ideais do Êxodo em tempos de monarquia


9 - Deuteronômio 1 parte (Por Sandro Galazzi)


10 - Deuteronômio 2 a redação profética (Por Sandro Galazzi)


11 - Deuteronômio 3 a redação de Josias (Por Sandro Galazzi)


12 - Deuteronômio 4 a história deuteronomista (Por Sandro Galazzi)



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

terça-feira, 15 de setembro de 2020

DEUTERONÔMIO: “Não despeça de mãos vazias seu irmão ou irmã!” - Por Gilvander

DEUTERONÔMIO: “Não despeça de mãos vazias seu irmão ou irmã!” - Por Gilvander Moreira[1]

 


Em setembro de 2020, estamos refletindo sobre o quinto livro da Bíblia: Deuteronômio, que busca resgatar os ideais do Êxodo em tempos de monarquia na iminência de mais um exílio. Os autores e as autoras de Deuteronômio resgatam o ensinamento e o testemunho dos Levitas – lideranças que não podiam ter terra, o que gerava poder – que buscam alertar o povo para não recair nas agruras de outra escravidão semelhante à imposta pelo imperialismo dos faraós no Egito. Imersos na ditadura de monarquia opressora que reproduzia relações sociais escravocratas, os levitas, em textos inseridos no livro do Deuteronômio, propõem a superação de toda e qualquer escravidão e que o povo conquiste liberdade, mas não liberdade abstrata e formal como a ocorrida no Brasil com a Lei Áurea de 13 de maio de 1888, que despediu de mãos vazias o povo negro escravizado, somente após 38 anos da criação do ‘cativeiro da terra”[2] por meio da Lei de Terras, Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850.

Quando um de seus irmãos, hebreu ou hebreia, for vendido a você como escravo, ele servirá a você no máximo seis anos” (Dt 15,12). Nem um dia a mais. Para não se repetir a escravização em novos moldes, o Deuteronômio alerta: “Não despeça seu irmão ou irmã escravizado/a de mãos vazias: carregue os ombros dele com o produto do rebanho de você, da sua colheita e de cereais e de uva” (Dt 15,13). Com essa prescrição se denunciam as propostas de liberdade abstrata e se defende a conquista de condições objetivas que garantam a liberdade e emancipação efetivas. No caso, os frutos da mãe terra, da irmã água e do trabalho humano devem ser destinados a quem ‘sua’ a camisa para produzir. Nesse ponto, o livro do Deuteronômio está em sintonia com o que prescreve a utopia de Outro Mundo Possível e Necessário, cantado pelos discípulas e discípulos do grande profeta Isaías: “Construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer” (Is 65,21-22). Isto é, um mundo transfigurado, sem exploradores e sem explorados, sem escravocratas e sem escravizados, com todas as cercas rompidas. Um mundo com todos/as tendo as condições objetivas necessárias para viver e conviver com dignidade, sendo livres, de fato. O livro do Deuteronômio não defende apenas a concessão de paliativos, mas a partilha do que se produz na pecuária, na agricultura e na produção voltada para exportação – caso do vinho, inclusive. Orienta a dar o necessário, de acordo com a bênção recebida de Javé. A Bênção de Deus não pode ser privatizada, pois é para todas e todos, para todos os seres vivos, inclusive.

O livro do Deuteronômio insiste em que: recordar é preciso. Se lido a partir das/os injustiçadas/os, a História nos inspira. “Não esqueçam que vocês foram escravizados no Egito e que Javé seu Deus libertou vocês” (Dt 5,15; 15,15; 16,12; 24,18. 22 etc.). Este refrão repete-se mais de 100 vezes no Deuteronômio. Recordar as opressões do passado e as lutas de resistência popular é imprescindível para seguirmos com as lutas libertárias. “Recordar para não repetir”, alerta a filósofa Hannah Arendt ao analisar o totalitarismo político nazista.

Entretanto, a experiência bíblica deuteronomística demonstra que não adianta forçar a libertação das pessoas escravizadas, se elas não se reconhecerem como escravizadas e não se despertarem para o valor de se lutar por libertação. Enquanto a opressão estiver assimilada – “Não quero ir embora...” (Dt 15,16), ou segundo a linguagem de Paulo Freire, enquanto o oprimido estiver sendo ‘hóspede do opressor’, estará trancada a porta que pode dar acesso a um processo de libertação. Paulo Freire e a experiência de quem luta por justiça social nos dizem que jamais os opressores libertam os oprimidos. Os oprimidos, isoladamente, também não conseguem se libertar. Em comunhão, lutando juntos, os oprimidos podem se libertar e libertar também os opressores, que estão amarrados nas estruturas de poder opressor. Sendo lideranças populares e religiosas no meio do povo, os Levitas, sem possuir terra, desenvolviam a missão de acordar a memória adormecida do povo, cutucar para manter viva a fina flor da vivência que assegurava fidelidade à Aliança de Javé com seu povo oprimido. “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”, analisa Simone de Beauvoir no livro O Segundo Sexo.[3]

Encontramos características libertadoras do amor integral a Deus e ao próximo no livro do Deuteronômio, que pede de nós amor integral a Javé, nosso Deus solidário e libertador, não apenas um amor caritativo. Após repudiar outras imagens de Deus – idolatria – o/a autor/a Deuteronomista aponta o rumo: “Ame a Javé seu Deus com todo o seu coração, com toda sua alma e com todas as forças” (Dt 6,5). Como amar com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças? O primeiro mandamento exige um total e absoluto amor a Deus, como dedicação que abarca todo o âmbito da pessoa: os três constitutivos pessoais que são mencionados: “coração”, “alma”, “forças” expressam a totalidade indivisa das várias dimensões da pessoa humana. O livro do Levítico exorta: “Ame o seu próximo como a si mesmo” (Lv 19,18). O segundo mandamento[4], que provém de outra codificação legislativa, como é o chamado “Código de Santidade” (Lv 17-26), inculca o amor ao próximo, isto é, ao próprio compatriota, ao membro da mesma etnia, ao israelita[5]. “Amar a Deus” é uma das constantes características de todo o corpo deuteronomístico e está intimamente interligada com “amar o próximo”. Não existe um integral amor a Deus se falta amor integral ao próximo. O caminho que leva a Deus passa necessariamente pelo próximo, a partir do próximo mais violentado. Dedicar-se a Deus e ao próximo são duas faces da mesma medalha e é significativo que Dt 6,5 e Lv 19,18 estejam em Lc 10,27 como uma “leitura” da Lei que revela a íntima ligação entre “amar a Deus e amar o próximo”: “O que está escrito na Lei? Como tu lês?” (Lc 10,26), interpela Jesus Cristo ao escriba preocupado em conquistar a vida eterna.

A lei da solidariedade com os pobres ocupa em Deuteronômio um lugar especial (Cf. Dt 14,28-29; 15,1-18; 23,25-26). O próprio rei deve viver como um pobre (Cf. Dt 17,17b). Em Dt 5,6-21 temos uma releitura e atualização do Decálogo que está em Ex 20,1-17, núcleo da Lei libertadora, do Sinai, da época em que o povo marchava para conquistar a terra prometida. Primeiro, o Decálogo, que é a Constituição do povo de Deus, é dirigido a todo o povo, a Israel, e não apenas às pessoas individualizadas. Logo, reduzir o Decálogo a Dez Mandamentos direcionando-os apenas às pessoas individualizadas é privatizar o sentido do Decálogo que proíbe não apenas que pessoas matem outras pessoas ou roubos individuais. Muito pelo contrário: toda a sociedade, na sua forma de organização social, não pode matar, nem roubar e nem adulterar. O agronegócio, por exemplo, com uso indiscriminado de agrotóxicos na agricultura mecanizada, adultera a produção de alimentos, o que tem causado uma epidemia de câncer. O Deuteronômio enfatiza que a Aliança do Deus libertador com o povo escravizado não foi feita só com os antepassados, mas também conosco (Dt 5,2-3). Isto é, o Deus libertador não estava apenas lá no passado com nossos antepassados escravizados no Egito, mas está caminhando conosco atualmente. Nós também estamos sendo escravizados até os tempos de hoje e, segundo o Deuteronômio, Javé cultiva a Aliança de compromisso libertador com o povo escravizado de hoje, também.

 O livro de Deuteronômio analisa que a idolatria é raiz também das explorações e violências que se abatem sobre o povo. Por isso, Deus é apresentado de forma enfática como “Javé seu Deus, que o libertou da terra do Egito, da casa da escravidão”. Com veemência e grande ênfase, todo e qualquer tipo de idolatria é rechaçada (Dt 5,7-10). Seguir outros deuses não é apenas uma questão ‘teórica’ irrelevante, mas tem incidência direta sobre a convivência social. Experimentamos isso nas lutas por direitos – luta pela terra, luta pela moradia, luta para frear as mineradoras que devastam, luta pela superação do racismo, luta contra a homofobia, luta pela superação da violência contra as mulheres etc. Isso porque, para se reforçar as lutas sociais por direitos, é preciso coesão, união e unidade na luta coletiva. 

Belo Horizonte, MG, 15/9/2020.

 Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Frei Carlos Mesters fala sobre o Livro do Deuteronômio em entrevista a frei Gilvander - 15/01/2020

2 - Cartilha do mês da Bíblia de 2020 do CEBI/MG: livro do Deuteronômio. Por Julieta Amaral - 18/6/2020

3 - Livro do Deuteronômio, Levitas Resgatando ideais do Êxodo em plena Monarquia - CEBI/MG - Parte I

4 - Livro do Deuteronômio, a pregação dos Levitas. Por Frei Gilvander, Julieta e Irmã Marysa - Parte II

5 - Livro do Deuteronômio - chaves de leitura - Mês da Bíblia de 2020 - por Rafael, do CEBI. Vídeo 1

5 - Deuteronômio/Mês da Bíblia 2020/Chaves de Leitura por Rafael Rodrigues, do CEBI/Vídeo 2 - 02/2/2020

6 - Livro do Deuteronômio - Mês da Bíblia/2020: Pistas para uma leitura sensata e libertadora, por Rafael Rodrigues - Entrevista completa

7 - Live - CEBI-MG lança Mês da Bíblia de 2020 sobre o livro de DEUTERONÔMIO, UM GRITO POR JUSTIÇA – 31/8/2020

8 - Live - Deuteronômio, um grito por justiça: resgate de ideais do Êxodo em tempos de monarquia

9 - Deuteronômio 1 parte (Por Sandro Galazzi)

10 - Deuteronômio 2 a redação profética (Por Sandro Galazzi)

11 - Deuteronômio 3 a redação de Josias (Por Sandro Galazzi)

12 - Deuteronômio 4 a história deuteronomista (Por Sandro Galazzi)



 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. 9ª edição. São Paulo: Contexto, 2013. Livro de leitura indispensável.

 

[3] BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo Vol 2: A Experiência Vivida, Difusão Europeia do Livro, 1967.

[4] Presente também em Gl 5,14; Rm 13,9 e Tg 2,8 como uma síntese da Lei de Moisés e dos profetas.

[5] J. A. Fitzmyer, El  evangelio según Lucas, 3 vol. Madrid: Ed. Cristiandad, 1987, p. 268.