DEUTERONÔMIO: Se há empobrecidos, a Aliança com Deus está rompida. Por Frei Gilvander Moreira[1]
Há 50 anos, no Brasil, mês de setembro é
também Mês da Bíblia na Igreja católica e somos convidados ao estudo de um
livro da Bíblia. Em 2020, a reflexão sugerida pela CNBB[2] é
sobre o Livro do Deuteronômio. Olhando superficialmente e à
primeira vista, o Livro do Deuteronômio[3]
parece ser uma “Segunda Lei” como se fosse um código de ética e de costumes.
Isso é, justamente, o que sugere a etimologia das palavras (em grego: deutero = segunda, nomos = lei). DEUTERONÔMIO (“Código de Leis de Direitos Humanos”)
compreende uma série de ensinamentos, acompanhados de exortações, apelos e
advertências da tribo sacerdotal dos Levitas. Tais ensinamentos se referem ao
período que abrange desde a conquista da terra prometida –
Canaã/Palestina/Israel - até o exílio na Babilônia, em 587 antes da Era Comum.
Provavelmente, o livro de Deuteronômio é fruto de inúmeros ensinamentos orais
dos Levitas, encarregados por Moisés de guiarem o povo, para que se conservasse
fiel à Aliança com Javé, Deus solidário e libertador do povo escravizado.
Moisés era considerado por todos como um grande líder do povo escravizado na
Caminhada de Libertação do imperialismo dos faraós no Egito. Bem mais tarde
essas tradições orais, elaboradas na época tribal, foram registradas por
escrito, em documentos redigidos por Escribas da Corte de Josias, já no final
da época monárquica, ou seja, dos Reis.
Isso, como já se pode suspeitar, alterou bastante o conteúdo daquelas
tradições orais, elaboradas em um tempo em que o povo não tinha reis e tomava
decisões a partir dos costumes dos clãs e tribos. Hoje, ainda há no Livro vestígios de
ensinamentos da época tribal, mas sempre envolvidos pelo pensamento autoritário
e centralizador da monarquia.
Na
iminência do exílio também para o povo do sul da Palestina, por volta de 587
antes da Era Comum (A.E.C.), bem depois da desintegração do Reino do Norte da
Palestina, com o exílio imposto pelo Império Assírio, por volta de 722 A.E.C.,
foi que aconteceu a redação final do documento. O contexto era de
recrudescimento do imperialismo estrangeiro, de superexploração e de
desagregação social do povo. A edição final do livro de Deuteronômio pretende
apresentar um projeto para construção de uma sociedade justa economicamente e
solidária socialmente. Para isso, alerta: “Se
vocês não obedecerem a Javé seu Deus, não colocando em prática todos os seus
mandamentos e estatutos que eu hoje lhes ordeno, virão sobre vocês...” (Dt
28,15): exílio na própria terra, sofrimento, adoecimento, violência social,
reproduzindo a morte. E, como consequência, haverá “terra queimada onde não se semeia e nada brota nem cresce” (Dt
29,21), ou seja, desertificação e anulação das condições materiais e objetivas
de vida. Essa advertência me faz recordar Mozart, das Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs), do noroeste de Minas Gerais, que me disse quando eu era criança e
nunca esqueci: “Há muitas injustiças no
mundo porque as pessoas não colocam em prática a lei de Deus, mas seguem a lei
dos homens que mandam politicamente e economicamente”.
No
livro do Deuteronômio há uma mistura de tempos nos textos. Com 34 capítulos, o livro do Deuteronômio, o quinto da Bíblia, não
é um livro de história e nem é crônica jornalística, escrita no calor dos
acontecimentos. Escrito provavelmente uns 600 anos após ocorrer a parte mais
antiga dos acontecimentos, o livro do Deuteronômio é uma “teologia da
história”, ou seja, um esforço de entender a história do ponto de vista de Deus que faz Opção pelos escravizados e
injustiçados. Este livro constitui, por si só, a Fonte Deuteronomista que, junto com as Fontes Javista, Eloísta e Sacerdotal, são responsáveis pela
formação do PENTATEUCO, o conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia Judaica
e Cristã: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
Em
um olhar panorâmico, à primeira vista, o livro do Deuteronômio constitui-se de
discursos atribuídos a Moisés, discursos de despedida, uma espécie de
testamento espiritual. Um dos motivos que, provavelmente, levaram os autores e
as autoras do livro do Deuteronômio a colocar as narrativas na boca de Moisés,
que era reconhecido como um grande profeta, líder libertador, pode ter sido a
intenção de passar a ideia de que os textos eram de sua autoria, visando dar
credibilidade aos mesmos. Porém, ao ler atentamente os textos de Deuteronômio,
olhando nas linhas e nas entrelinhas, ‘no dito e no não dito’, nas ambiguidades
e contradições ao longo das narrativas, percebemos que, no texto de
Deuteronômio se misturam textos e contextos de várias épocas e, como uma corda
de três fios, se faz referências a três tempos:
a)
tempo em que os fatos aconteceram;
b)
tempo em que os acontecimentos foram
transmitidos oralmente;
c)
tempo em que foram fixados por escrito, com revisões, atualizações etc.
Ao
ler os textos de Deuteronômio, podemos pressupor que estaremos lidando com experiências
de vida e de Aliança de um povo escravizado com Javé, experiências estas que
envolvem um período de mais de 600 anos, desde o início da conquista da Terra
Prometida - Canaã/Palestina, por volta de 1200 Antes da Era Comum, até o ano do
Exílio na Babilônia, por volta de 587 antes da Era Comum (A.E.C.).
Para
compreendermos de forma sensata e libertadora os textos do Deuteronômio, é
necessário pressupor que o livro envolve várias etapas e um longo processo de
gestação, nascimento e de desenvolvimento. O povo em marcha de libertação das
opressões, que buscava seguir a Aliança com Javé, tinha sido um povo
escravizado, mas cheio de fé em um Deus libertador e, por isso mesmo, povo que
resiste e luta pela superação de toda e qualquer escravidão.
Em
uma primeira etapa, a sabedoria do povo se torna cultura, bons valores. Por
exemplo, a nossa experiência camponesa de partilhar com a vizinhança um
pedacinho do porco matado por nossa família, ajuda-nos a imaginar a partilha e
a solidariedade que foi experimentada na época da vida nos clãs, sob o regime
do tribalismo. Ser solidário/a era um valor a ser posto em prática e também era
uma necessidade de sobrevivência dos grupos minoritários, em contexto de
grandes opressões. Essa prática de solidariedade entre as famílias e
comunidades ou clãs, com o passar do tempo, começou a se desintegrar. Vírus do
individualismo e sede de acumulação começaram a seduzir as pessoas. Nesse
momento, surgiu a necessidade de se escrever tais tradições, com o objetivo de
tentar resgatar as memórias libertadoras. Quando começaram a aparecer pedintes,
estrangeiros, viúvas e órfãos desamparados, era sinal de que a Aliança com Javé
estava sendo rompida.
Em
uma segunda etapa, criam-se leis para não haver pobres. Por exemplo, a utopia
sonhada e defendida pelos autores e autoras do livro do Deuteronômio brada: “Que não haja pobres no meio de vocês”
(Dt 15,4). Ao acordar a memória, percebiam que ‘lá atrás ninguém estava
sem-terra’. Para resgatar a equidade nas relações sociais cria-se a lei do Ano
Sabático que prescreve: ‘a cada sete anos, a terra deve descansar’. E após sete
vezes sete anos, ou seja, 49 anos, no ano seguinte – 50º ano – se faça um
jubileu, ano da graça de Javé, que consiste em propor uma reorganização geral
da sociedade (Cf. Lv 25,8-55). As terras compradas devem ser devolvidas aos
seus antigos donos/ancestrais (Cf. Lv 25,28), porque “a terra pertence a Deus” (Lv 25,23). Todas as pessoas escravizadas
deverão ser libertadas (Lv 25,41). Todas as dívidas devem ser perdoadas. “Ninguém explore seu irmão” (Lv 25,17).
Declare-se um perdão geral.
Esse
era o espírito do jubileu prescrito em Levítico 25, e retomado em Deuteronômio,
por ter sido, provavelmente, vivenciado, pelo menos em parte, quando o povo
vivia em clãs, sob o regime tribal, com razoável igualdade e equidade
social. E, provavelmente, o período da
devolução das terras tenha sido mais curto: sete anos e não 50, pois se chamava
“Ano Sabático”. Ora o sábado ocorre de sete em sete dias... A centralização do
poder pela monarquia a pedido dos donos de bois (latifundiários, comerciantes,
generais, juízes e sacerdotes) havia desintegrado essa experiência, que era
coluna mestra da aliança de Javé com o povo que tinha sido escravizado no Egito
sob o imperialismo dos faraós.
1º 9/2020.
Obs.:
Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Frei Carlos
Mesters fala sobre o Livro do Deuteronômio em entrevista a frei Gilvander -
15/01/2020
2 - Cartilha do
mês da Bíblia de 2020 do CEBI/MG: livro do Deuteronômio. Por Julieta Amaral -
18/6/2020
3 - Livro do
Deuteronômio, Levitas Resgatando ideais do Êxodo em plena Monarquia - CEBI/MG -
Parte I
4 - Livro do
Deuteronômio, a pregação dos Levitas. Por Frei Gilvander, Julieta e Irmã Marysa
- Parte II
5 - Livro do
Deuteronômio - chaves de leitura - Mês da Bíblia de 2020 - por Rafael, do CEBI.
Vídeo 1
5 - Deuteronômio/Mês
da Bíblia 2020/Chaves de Leitura por Rafael Rodrigues, do CEBI/Vídeo 2 -
02/2/2020
6 - Livro do
Deuteronômio - Mês da Bíblia/2020: Pistas para uma leitura sensata e
libertadora, por Rafael Rodrigues - Entrevista completa
7 - Live - CEBI-MG lança Mês da Bíblia de 2020 sobre o livro de
DEUTERONÔMIO, UM GRITO POR JUSTIÇA – 31/8/2020
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT,
CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil.
[3] Título dado ao texto pelos
tradutores da Bíblia da língua Hebraica para o Grego, durante o 3º século antes
da Era Comum, tradução esta que ficou conhecida como “Septuaginta”, versão dos
“Setenta sábios”.