Espiritualidade
da Semana Santa: profecia, lavar os pés uns dos outros, doar-se e cultivar
utopias libertárias
Por Gilvander Moreira[1]
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“...
morar no interior do meu interior para entender ... aonde Deus possa me ouvir ...”
(Vander
Lee).
Toda semana é santa, sagrada, assim como
todos os seres vivos, entre os quais estamos nós, os humanos. Sagrada também é
toda a natureza com toda a biodiversidade – flora e fauna -, todos os biomas (Cerrado,
Caatinga, Mata Atlântica, Amazônia, Pantanal e Pampas). Entretanto, para as
pessoas cristãs a Semana Santa, que conclui o tempo litúrgico da Quaresma, é
santa com destaque, porque quer propiciar um processo de conversão e de
aprimoramento espiritual. O dia em que celebramos nosso aniversário é um dia
especial para nós, pode não ser para outros. Se uma árvore que perde suas raízes,
morre. Honrar sempre nossas raízes é vital, ciente que para as raízes continuarem
fortes é preciso terra fértil, água boa e cuidado. Por isso, cuidar também da
nossa dimensão espiritual é vital. Qual é mesmo a mística e espiritualidade da
Semana Santa, especialmente em tempos de pandemia do coronavírus?
No ‘Domingo de Ramos’, celebramos a
entrada em Jerusalém de Jesus, montado em um jumentinho (Lc 19,35), com seu
movimento popular religioso. Quase dois mil anos atrás, na Palestina, após uma
longa marcha da Galileia a Jerusalém (Lc 9,51-19,27), da periferia para a
capital, Jesus e seu movimento popular e religioso entram em Jerusalém, de
forma clandestina, sutil, sem alarde. Se anunciassem que Jesus e seu movimento
entrariam em Jerusalém, a entrada seria proibida pelas forças de repressão do
governador Pilatos. A alegria era grande
no coração dos discípulos e discípulas, na sua maioria, camponeses. “Bendito o que vem como rei...” (Lc
19,38). O Evangelho de Mateus nos informa que essas pessoas festejavam
gritando: “Hosana ao filho de Davi! Hosana no mais alto do céu!” (Mt 21,9). A
palavra ‘hosana’, da língua grega,
nos soa como uma exclamação, como se fosse ‘Viva! Viva!’, mas conforme o salmo
118,25 a mesma palavra ‘hosana’ significa “Javé, salva-nos!” Aqui há um trocadilho entre as palavras Javé,
Josué e Jesus, que têm a mesma raiz etimológica ‘libertar/salvar’. Portanto, o
sentido da aparente exclamação dos discípulos se dirigindo a Jesus significa
“Salva-nos!”. Mais do que exclamação, é um pedido, um clamor dos discípulos e
discípulas dirigido ao mestre Jesus. Podemos ler nas entrelinhas: 1 - que não é
possível auto-salvação; 2 - é uma denúncia contundente dos falsos ‘salvadores
da pátria’: governadores, imperador, sumo-sacerdote ou saduceus.
O povo via em Jesus, pobre, desarmado e
servo - anunciado pelo profeta Isaías (Is 42,1; 49,3; 52,13) - outro modelo de liderança
e de forma de exercer o poder, não mais como dominação, mas como gerenciamento
do bem comum. Quem aplaude Jesus entrando em Jerusalém é o povo, grupo
organizado que o segue desde a Galileia. O povão que cinco dias após, na
sexta-feira da paixão, gritará “crucifica-o” não é o mesmo povo do “Domingo de
Ramos”. Trata-se da massa alienada que sobrevivia em torno do grande negócio
que era o templo em Jerusalém. Agem insuflados por fariseus que os estimulavam
a gritar tendo Jesus como alvo “crucifica-o”. Logo, a partir desses dois
relatos dos evangelhos – a entrada de Jesus em Jerusalém e sua crucificação –
não se pode concluir que o povo é como folha seca ao vento, um bando de ‘Maria
vai com as outras’.
A entrada de Jesus em Jerusalém incomoda
parte dos fariseus que tentam sufocar aquele evangelho: ótima notícia para os
pobres, mas péssima notícia para os opressores. Hipocritamente chamam Jesus de
mestre, mas querem domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus discípulos se
calem.”, impunham os que se julgavam salvos – ‘cidadãos de bem’ - e os mais
religiosos. “Manda...!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”, eles são os que
mandam. Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”, gritam. Quem anuncia
a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta por justiça
verdadeira, o que incomoda o status quo
opressor. Mas Jesus, em alto e bom som, com a autoridade de quem vive o que
ensina, profetisa: “Se meus discípulos (profetas) se calarem, as pedras
gritarão” (Lc 19,40). Esse alerta do galileu virou refrão de música das
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs),
assim: “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem uns
poucos caminhos, mil trilhas nascerão... O poder tem raízes na areia, o tempo
faz cair. União é a rocha que o povo usou pra construir...!”
Portanto, a mística bíblica da celebração
de Domingo de Ramos é: não calem os profetas e as profetisas, porque, senão, as
pedras gritarão! Surdos e obcecados pelo ídolo capital, poderosos do mundo não
ouvem os cientistas que estão falando há muito tempo que a devastação da
natureza está levando ao aquecimento global e com isso as mudanças climáticas
serão cada vez mais dramáticas fazendo surgir doenças cada vez mais perigosas,
entre elas a COVID-19. Feliz quem ouve os verdadeiros profetas e as verdadeiras
profetisas.
Na ‘quinta-feira santa’ acontece a
celebração do lava-pés (Jo 13,1-20), ocasião na qual mais do que instituir a
Eucaristia, Jesus se oferece como servo, aquele que presta um serviço gratuito
e libertador. Jamais Jesus iria criar algo para reforçar poder de alguns sobre
outros. Jesus se fez servidor, pegou uma
bacia e toalha e lavou os pés de seus discípulos, em uma época em que era
instituído pela sociedade imperial escravocrata e patriarcal que escravo devia lavar
os pés do seu senhor/patrão, mulher devia lavar os pés do marido e as crianças
deviam lavar os pés dos adultos. Jesus revoluciona estas estruturas
discriminadoras e ensina, pelo testemunho, que só serve para viver quem vive
para servir solidariamente de forma libertadora.
Na ‘sexta-feira santa’ celebramos a
Paixão de Jesus Cristo e a Paixão de todas as pessoas que são crucificadas por
todos os tipos de opressão – econômica, política, religiosa etc. Atualmente
vivemos uma grande sexta-feira da paixão marcada pela superexploração do
capital e pela pandemia do coronavírus, causada certamente pelo progresso e
desenvolvimento econômico capitalista, sistema que só visa o lucro e o acúmulo
de riqueza para poucos à custa de devastar toda a natureza e acabar com as
condições de vida sobre nossa Casa Comum, o planeta Terra. Jesus Cristo não foi
condenado à pena de morte por Deus, pai de infinito amor. O Deus da vida não é
sádico e nem masoquista. Também Jesus não foi morto na cruz simplesmente para
nos salvar do inferno no pós-morte. Jesus foi condenado à morte pelos podres
poderes de um modelo de economia que sacrifica a classe trabalhadora em nome do
lucro e da acumulação de capital para alguns, por um poder político imperial e
autoritário que sufocava a participação popular, e por um poder religioso
ritualista e fundamentalista que usava a religião para oprimir. Jesus foi
crucificado para que ninguém mais fosse crucificado. Logo, Jesus condenado à
morte denuncia tudo o que gera morte.
Entretanto, Jesus ressuscitou e, com a
experiência da ressurreição de Jesus, as pessoas que o amavam também ressuscitaram,
ou seja, se encheram de esperança, de amor e de coragem, para seguir sendo
discípulas e discípulos de Jesus Cristo e levando para frente seu projeto de
fraternidade entre todos e tudo. Por mais escura que seja a noite ela sempre
anuncia uma nova aurora. O sentido da Páscoa não pode ser privatizado por
expressões religiosas que desencarnam a fé cristã e amputam a dimensão social
da fé. A fé na ressurreição de Jesus Cristo não garante apenas vida após a
morte. É preciso não esquecer que a Páscoa Judaica, origem da Páscoa Cristã,
diz respeito à libertação dos povos escravizados no Egito pelo imperialismo dos
faraós. Por isso, Páscoa envolve reunir os injustiçados, atravessar os “mares
vermelhos”, marchar rumo à terra prometida – terra partilhada e democratizada –
e, enfrentar os grileiros e especuladores lutando para conquistar um pedaço de
chão. A Páscoa cristã atesta que Jesus de Nazaré, mesmo sendo inocente e justo,
foi condenado pelos podres poderes à pena de morte, mas ressuscitou. O sonho
ensinado e testemunhado por Jesus e seus discípulos e discípulas jamais será
sepultado.
Há quase 2.000 anos ecoa uma notícia
revolucionária dada em primeira mão por Maria Madalena, “apóstola dos
apóstolos”, mulher que cultivava o amor, a solidariedade e lutava contra toda e
qualquer injustiça. Irradiando alegria, a partir do túmulo de Jesus de Nazaré,
Maria Madalena saiu correndo e anunciando por todos os cantos e recantos:
“Jesus está vivo, ressuscitou!” Bateram em ferro frio os chefes dos poderosos
da religião, da política e da economia, ao pensar que condenando Jesus de
Nazaré à pena de morte, poriam fim no movimento popular e religioso de
fraternidade real, testemunhado e ensinado pelo Galileu da periferia da
Palestina. Celebrar a Páscoa de Jesus de Nazaré é momento oportuno para
revigorar nossa fé no Deus da vida, fé na humanidade, fé nos oprimidos, fé na
mãe terra, na irmã água e fé em nós mesmos. É também momento propício para
celebrarmos todas as lutas do passado e do presente. Lutas por direitos
fundamentais. Quem persevera na luta dos Movimentos Populares conquista
direitos, mais cedo ou mais tarde.
A partir do testemunho e da mensagem de
Jesus de Nazaré, somos todos convidados a reconhecer o poder da ressurreição
instalado no coração das pessoas e de todos os seres vivos. Todos nós
pertencemos à ordem da transcendência, em que a grandeza divina se faz nossa
herança. Que neste tempo de Páscoa, todos nós renasçamos para a missão que Deus
mesmo nos reservou: sermos portadores/as de vida plena.
Celebrar a Páscoa judaica e cristã é
cantar e dançar a ciranda da Ressurreição, da vida triunfando sobre a morte.
Jesus foi condenado à morte, mas ele ressuscitou. Por isso, o ideal de vida e
liberdade para todos/as não morre. Com a ressurreição de Jesus ficou decretado
que as utopias jamais morrerão, os sonhos de libertação jamais serão pesadelos,
a luta dos oprimidos e injustiçados será sempre vitoriosa (ainda que custe
muito suor e sangue). As forças da Vida terão sempre a última palavra. Por mais
cruéis que sejam, todas as tiranias, opressões, corrupções, guerras e a
pandemia do coronavírus passarão! Sejamos expressão de fraternidade e vida uns
para os/as outros/as, mesmo em noite escura! Feliz e sublime páscoa para
todos/as![2]
10/4/2020.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela
FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia
pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em
Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de
“Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte,
MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
[2]
Gratidão à Carmem Imaculada de
Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.