Mortos não pela chuva, mas pela injustiça
social
Por
Gilvander Moreira[1]
Foto: Douglas Magno / AFP |
No final da penúltima semana de janeiro de 2020, choveu significativamente em várias regiões de Minas Gerais. Em 24 horas choveu 171,8 milímetros, chuva mansa, mas constante. Houve uma enorme mobilização da grande imprensa e de poderes públicos municipais de muitos municípios no sentido de alertar a população de que estava chegando uma grande chuva que poderia causar inundações, deslizamentos e pôr em risco a vida das pessoas. Em Belo Horizonte, a defesa civil anunciou alerta de risco geológico e chegou-se a pedir insistentemente para as pessoas ficarem em casa dia 24 de janeiro. Muitas avenidas foram interditadas. Segundo a Defesa Civil do Governo de Minas Gerais, em Boletim de 28/01, com o título “Mortes causadas pelas chuvas em MG”, em alguns dias de chuva: 28.893 pessoas foram desalojadas, 4.397 desabrigadas, 65 feridas, 52 foram mortas e mais de 10 estão desaparecidas, o que, segundo o boletim, são óbitos a serem confirmados. Em Belo Horizonte, entre os 13 mortos, uma mãe e três crianças. Em Ibirité uma mãe foi encontrada morta e nos seus braços um bebê também morto.
Diante dos deslizamentos de terra, das
inundações provocadas pelas chuvas, de quase 14 mil desalojados, de mais de 3
mil desabrigados, de 12 pessoas feridas e mais de 40 pessoas mortas – sem
contar 19 pessoas desaparecidas -, primeiro, expressamos nossa solidariedade e
conclamamos a quem puder se somar ao mutirão de apoio para ajudar as milhares
de famílias atingidas e muitas golpeadas a reconquistar o mínimo necessário para
erguer a cabeça e retomar a vida. Entretanto, para que a mentira não continue cobrindo
as causas mais profundas da ‘sexta-feira da paixão’ que se abate sobre o povo
cada vez mais com frequência, precisamos dizer em alto e bom som a verdade,
cientes de que a verdade dói, mas liberta.
É mentira a manchete divulgada pela Defesa Civil – “Mortes causadas pelas chuvas em MG”. É nojento ouvir jornalistas na
grande imprensa dizerem: “a chuva está
castigando ...”. “A chuva está
causando estragos ...” Diante dos mortos, das vítimas e de milhares de
desabrigados aparentemente pelas chuvas, é imoral e covarde ouvir prefeitos
dando uma de Pilatos, tentando se eximir de suas responsabilidades, afirmando
que “foi uma tragédia ambiental natural”,
“Cada um deve cuidar da sua casa”, “Invadiram áreas de riscos. Eles são os
culpados”. Fazer esse tipo de afirmação é apunhalar quem já foi golpeado, é
transformar a vítima em algoz. É injustiça que clama aos céus.
Não é a chuva e nem Deus que devem ser
condenados. Colocar a culpa na chuva e em Deus é encobrir o real
escamoteamento a verdade, é criar uma cortina de fumaça que ofusca a realidade
beneficiando somente os adoradores do capitalismo – grandes empresários da
cidade e do campo, políticos profissionais (uma corja) e ingênuos sustentadores
da engrenagem mortífera que continua a trucidar vidas em progressão geométrica
em uma sociedade cada vez mais desigual.
Na Bíblia se fala de chuva mais de cem
vezes. A chuva é benfazeja, cai sobre justos e injustos, diz o evangelho de
Mateus (Mateus 5,45). A chuva é reflexo da bondade de Deus, que é um mistério
de infinito amor. Deus rega com a chuva a terra que deu como herança ao seu
povo (I Reis 8,36). “Mandarei chuva no
tempo certo e será uma chuva abençoada” (Ezequiel 34,26), profetiza
Ezequiel consolando o povo em tempos de imperialismo e de exílio, em tempos de
escassez de chuva. A sabedoria do povo da Bíblia reconhece que Deus, solidário
e libertador, “por meio da chuva,
alimenta os povos, dando-lhes comida abundante” (Jó 36,31). Até no dilúvio,
a chuva é vista como purificadora (Cf. Gênesis 6 a 9). Sob o imperialismo dos
faraós no Egito, a chuva de granizo é vista como uma praga que fustiga os
opressores, ao mesmo tempo em que é uma dádiva de Deus que liberta da opressão
(Cf. Gênesis 9 e 10).
A chuva não castiga, não desaloja, não
desabriga e nem mata ninguém. Quem está em casa com boa estrutura, construída sobre
terra firme, pode dormir tranquilo, porque a casa não cairá com as chuvas.
Sempre recordo que 50 anos atrás, quando eu era criança, no noroeste de Minas
Gerais, “chovia invernado uma semana,
duas semanas, às vezes, até um mês sem parar”. Não morria praticamente
ninguém. Nas Décadas de 1970, a maior parte do povo vivia no campo e podia
construir as casas longe das margens dos rios que ficavam inundadas. Atualmente,
só em Belo Horizonte há mais de 200 rios e córregos sepultados com asfalto,
após serem envenenados com esgoto in
natura.
A irmã chuva apenas revela uma injustiça
socioeconômica e política existente. Quem desaloja, desabriga, fere e mata em
última instância é a tremenda injustiça agrária e socioambiental reinante na
sociedade capitalista. Dizer que “a chuva castiga” é mentira, é reducionismo
que esconde o maior responsável por tanta dor e tanto pranto: o sistema
capitalista e a classe dominante, que descartam as pessoas e as condenam a
sobreviverem em encostas e áreas de risco. Soma-se a tudo isto a falta de
planejamento urbano e social das prefeituras, que deveriam investir de forma
contundente na elaboração de Plano Diretor e de zoneamento para as cidades de
forma participativa e comunitária, buscando construir cidades justas
economicamente, solidária socialmente e sustentável ecologicamente. Sem uma
gestão socioambiental, os municípios continuarão destruindo as matas ciliares de rios e
desmatando as suas encostas, fragilizando o solo, causando deslizamentos e
assoreamentos, que tendem a ser cada vez mais trágicos.
Quem é atingido quando a chuva chega em um
volume maior, salvo exceções, são as famílias que tiveram seus direitos humanos
fundamentais – direito à terra, à moradia, ao trabalho, à educação, a um
salário justo, ao meio ambiente equilibrado e à dignidade – desrespeitados pelo
capitalismo neoliberal e por pessoas que adoram o deus capital, o maior ídolo
da atualidade.
Segundo o Comitê sobre os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais da ONU em seu Comentário 4, todas as pessoas
têm o direito a uma moradia SEGURA E ADEQUADA, abaixo especificada:
a) Segurança da posse: a moradia não é adequada
se os seus ocupantes não têm um grau de segurança de posse que garanta a proteção
legal contra despejos forçados, perseguição e outras ameaças.
b) Disponibilidade de serviços, materiais,
instalações e infraestrutura: a moradia não é adequada, se os seus ocupantes
não têm água potável, saneamento básico, energia para cozinhar, aquecimento,
iluminação, armazenamento de alimentos ou coleta de lixo.
c) Economicidade: a moradia não é
adequada, se o seu custo ameaça ou compromete o exercício de outros direitos
humanos dos ocupantes.
d) Habitabilidade: a moradia não é adequada se
não garantir a segurança física e estrutural proporcionando um espaço adequado,
bem como proteção contra o frio, umidade, calor, chuva, vento, outras ameaças à
saúde.
e) Acessibilidade: a moradia não é adequada se as
necessidades específicas dos grupos desfavorecidos e marginalizados não são
levados em conta.
f)
Localização:
a moradia não é adequada se for isolada de oportunidades de emprego, serviços
de saúde, escolas, creches e outras instalações sociais ou, se localizados em
áreas poluídas ou perigosas.
g)
Adequação cultural: a moradia não é adequada
se não respeitar e levar em conta a expressão da identidade cultural
(UNITED NATIONS, 1991).
Portanto, quem desaloja, desabriga e
mata não é a chuva, não é Deus, mas é a injustiça social reproduzida
cotidianamente no Brasil, que gera uma tremenda desigualdade social e empurra
milhões para sobreviver em áreas de risco geológico. Quem construiu um barraco
em área de risco geológico antes foi empurrado para risco social.
Logo, gratidão eterna à irmã chuva que
gera vida e ao Deus da vida, mas ira santa e rebeldia diante do sistema
capitalista e seus executivos que de fato desabrigam, golpeiam e matam. É
hilariante ouvir um prefeito ‘lavar as mãos’ sujas de sangue e dizer que “cada
um deve cuidar de sua casa”. Autoridades políticas só podem dizer isso após
construírem moradia digna – SEGURA e ADEQUADA - para 7 milhões de famílias que
estão sem moradia no Brasil. Enfim, após fazerem reforma agrária e reforma
urbana. Em Belo Horizonte e Região Metropolitana, onde mais vidas foram
ceifadas (13 em Belo Horizonte, 6 em Betim, 5 em Ibirité e 2 em Contagem) há um
déficit habitacional acima de 150 mil moradias. Além de fertilizar a terra e
recarregar as nascentes e mananciais, a irmã chuva está gritando por políticas
públicas sérias e idôneas, tais como política agrária e política de moradia
popular adequada para todos/as.
Belo
Horizonte, MG, 28/01/2020.
Obs.: Abaixo, vídeos que versam sobre o
assunto apresentado acima.
1 – Viúva do Evangelho e o Juiz no Acampamento Maria
da Conceição, do MST, em Itatiaiuçu, MG. Vídeo 6 – 21/01/2020.
2 - Acampamento Maria da Conceição, MST, em
Itatiaiuçu, MG: inspeção do Juiz agrário. Vídeo 1 - 21/01/20
3 - Despejar 1.000 famílias do MST para repassar
terra para a Vale? Injustiça gravíssima. Bicas/Vídeo 5 – 21/01/2020.
4 - Inspeção do juiz da Vara Agrária no Acampamento
Pátria Livre, MST. Bicas, MG. DESPEJO, NÃO! Vídeo 4 – 21/01/2020.
5 - "Se me tirar daqui, eu morro, vou para o
caixão" (Sr. Sérgio). Acampamento Zequinha, do MST, Bicas, MG. Vídeo 1 –
21/01/2020.
6 - Déficit habitacional em BELO Horizonte, MG, é
matéria especial na TV Band Minas - 13/12/2019
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; mestre
em Ciências Bíblicas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em
Teologia pelo ITESP/SP; assessor da
CPT, CEBI, SAB, CEBs e Movimentos Sociais Populares; professor de “Movimentos
Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br - www.freigilvander.blogspot.com.br –
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