Natal:
Deus se fez índio, quilombola...
Por Gilvander Moreira[1]
Obra de Ricardo Juliani. Em sua simplicidade e grandeza ele expressa um Presépio Tupiniquim. |
É tempo de natal, mas dá para celebrar o
natal no meio da fase mais cruel do capitalismo, máquina de moer vidas humanas
e vidas de todos os seres vivos, que atualmente não apenas explora, mas superexplora
a dignidade humana, a dignidade da mãe terra, da irmã água e de toda a
biodiversidade? A realidade está mais para sexta-feira da paixão, porque na
última eleição no Brasil foram eleitos para o poder político políticos da pior
estirpe, que acumpliciados com o poder econômico das empresas transnacionais,
com o capital especulativo, com agronegócio e mineradoras, estão eliminando
todas as conquistas de direitos sociais conquistados com muita luta e tendo
custado a vida de milhares de mártires, durante as últimas décadas.
Sob a avalanche do antinatal do mercado
idolatrado, necessário se faz resgatar o sentido bíblico do Natal de Jesus
Cristo, que é inspirador e revolucionário. Faz bem entendermos a narrativa
bíblica do Evangelho de Lucas (Lc 2,1-20) que versa sobre o nascimento do
galileu que se tornou Cristo. O Evangelho de Lucas não é crônica jornalística
escrita sob o calor dos fatos. Escrito na década de 80 do século I da era
cristã, o Evangelho de Lucas é Teologia da História a partir dos oprimidos e
injustiçados e da sua fé na ressurreição de Jesus Cristo. Para o evangelista
Lucas, foram os pastores – os trabalhadores mais discriminados da época – os
que, por primeiro, reconheceram a encarnação do divino no humano. Quando nasceu
Jesus Cristo? Onde? Em que contexto? Na presença de quem? E foi visitado e
acolhido por quem?
Jesus de Nazaré nasceu em tempos de
imperialismo romano com o imperador Augusto baixando decreto para aumentar o
peso da tributação nas costas do povo, além de manter a superexploração, por
meio da escravidão, a quem eram submetidos mais de 60 milhões de pessoas nas
muitas colônias do Império Romano. Diz o evangelista Lucas: “Naqueles dias, o imperador Augusto publicou
um decreto ordenando recenseamento em todo o império” (Lc 2,1). Como o pai
de Jesus, José, era descendente de Davi e natural de Belém, ele teve que viajar
da cidadezinha de Nazaré, na Galileia – periferia e norte da Palestina -, até
Belém, na Judeia, mais de 120 quilômetros, a pé ou montando em jumento, com sua
esposa Maria que estava na iminência de dar à luz um menino (Lc 2,3-5). Em uma
colônia dominada pelo imperialismo romano, por governadores submissos aos
interesses imperiais e com a cumplicidade de um poder religioso – o sinédrio –
que usava o nome de Deus para excluir e marginalizar a maioria do povo, como
trecheiro, estradeiro, “irmão de rua”, migrante, retirante, sem-terra,
sem-teto, refugiado, índio, quilombola, migrante e judeu da periferia, nasceu
Jesus Cristo na periferia de Belém, pequena cidade do interior. Jesus não
nasceu em Jerusalém nem em Roma, capital do império, nem em Brasília, nem na
Avenida Paulista e nem nos Estados Unidos. Maria e José tiveram que ocupar um
curral na periferia de Belém, porque não encontraram hospedagem na cidade,
certamente porque estavam sem condições financeiras de pagar hotel ou hospital
particular.
Ao descrever o nascimento de Jesus, o
evangelista Lucas estabelece estreito paralelismo com a morte e ressurreição do
Messias. De fato, em Lc 2,7a se diz que “Maria
enfaixou Jesus e o colocou na manjedoura”; em Lc 23,53a afirma-se que “José de Arimateia enfaixou o corpo de Jesus
e o colocou em um sepulcro”. Ou seja, escrevendo uns cinqüenta anos após a
crucificação e ressurreição de Jesus Cristo, o evangelista aponta que a missão
de Jesus será espinhosa (tinha sido), terá que enfrentar a violência de podres
poderes e de opressores (tinha enfrentado ...) - e, por isso, será condenado à
pena de morte, crucificado (martirizado) (tido sido ...), mas ressuscitará ao
terceiro dia (tinha ressuscitado).
Jesus nasce no meio dos pastores (Lc
2,8), os injustiçados e execrados pela classe dominante (saduceus) onde estão
os senhores “de bens” que por cumplicidade reproduzem a desigualdade social.
Entre todos os segmentos da classe trabalhadora e camponesa, os pastores e as
pastoras eram os/as mais explorados/as, considerados/as impuros/as,
principalmente porque não respeitavam as propriedades privatizadas. Para os
pastores e pastoras, o território era um bem comum e, por isso, levavam os rebanhos
que cuidavam para pastar em outras propriedades. Assim eram considerados
invasores de propriedades privadas. Para os pastores e as pastoras, “Terra de
Deus, terra de irmãos!”, tema da Campanha da Fraternidade de 1986 que
desencadeou a luta social que fez inscrever a função social da propriedade na
Constituição Federal de 1988.
“Um
anjo de Deus apareceu aos pastores” (Lc 2,9), não apareceu ao imperador,
nem ao governador, nem a nenhum sacerdote e nem a nenhuma pessoa considerada
pura, integrada à sociedade dos “de bens”. São esses pastores e pastoras que
reconhecem o nascimento do menino Deus e vêm ao encontro daquele que iria
testemunhar um caminho de libertação para todos/as e tudo, a utopia “vida e liberdade para todos/as e tudo”
(Jo 10,10). Hoje podemos dizer que um/a anjo/a apareceu a Marielle Franco, aos
indígenas, aos quilombolas e continua aparecendo a todos/as os/as
considerados/as impuros/as que se irmanam na luta em defesa dos
injustiçados/as.
Nos Evangelhos de Lucas e de Mateus, o
nascimento de Jesus não é apresentado de forma neutra diante das contradições e
desigualdades sociais. José, Maria, Jesus, os evangelistas e as primeiras
comunidades cristãs (autoras dos Evangelhos) fazem opção de classe, têm lado: o
lado dos oprimidos e injustiçados. A luz divina foi experimentada pelos
pastores e pastoras, em uma noite escura (Lc 2,8-9), – como a noite que se
abateu sobre o povo brasileiro com a eleição de Bolsonaro, de governadores, de
deputados e senadores, todos vassalos de um capitalismo ultraliberal. A luz e a
força divina irromperam naqueles e naquelas que eram os/as mais rejeitados/as na
Palestina, colônia do Império Romano.
Nas primeiras comunidades cristãs se lia
naquela época o texto do profeta Isaías que dizia: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os
que habitavam uma terra sombria” (Is 9,1). A primeira mensagem do anjo aos
pastores e pastoras foi: “Não tenham
medo! Eis uma ótima notícia para todo o povo explorado. Hoje, na cidade de
Davi, nasceu para vocês um Salvador, que é o Messias, o Senhor” (Lc 2,10).
Essa mensagem ganha eloquência se recordarmos que quando se elevava um novo
imperador ou rei, arautos do império anunciavam a entronização aclamando o que
estava sendo entronizado como novo Salvador (soter, em grego) e Senhor (Kurios,
em grego).
As primeiras comunidades cristãs fazem
uma revolução copernicana e subvertem a ideologia dominante que divinizava o
poder e quem estava no poder. ‘Salvador’ e ‘Senhor’ não será mais o imperador e
nenhum rei. ‘Salvador’ e ‘Senhor’ será aquela criança que nasceu no meio dos superexplorados.
O anjo alerta: só quem se mistura com os periféricos e com eles convive
consegue experimentar o divino se revelando no humano a partir dos porões da
humanidade (Lc 2,12). Quem fica distante dos empobrecidos e empobrecidas
acumula preconceitos e se desumaniza. Diz o evangelista Lucas que os anjos
fazem festa ao experimentar a glória de Deus e a paz (shalom, em hebraico) no meio do povo (Lc 2,14). A glória de Deus
brilha quando o humano em todas as pessoas é respeitado e valorizado. Paz como
fruto da justiça, shalom, acontece
quando os governos com organização popular efetuam mudanças estruturais para
superar a desigualdade social e promover a justiça social com respeito à imensa
diversidade cultural, aos direitos da natureza, dos animais e toda a
biodiversidade existente no nosso país e no mundo.
“Os
pastores da região foram a Belém, às pressas, participar do acontecimento”
(Lc 2,15-16); não foram a Jerusalém, nem a Brasília, nem às catedrais do deus
mercado, nem ao Império do capital, nem ao agronegócio e nem às mineradoras. “E todos os que ouviram os pastores ficaram
maravilhados” (Lc 2,18). Quem não ouve, não respeita e nem participa da
luta dos/as sem-terra, dos/as sem-teto, dos atingidos pelas mineradoras, dos/as
migrantes, dos/as refugiados/as, dos irmãos e irmãs em situação de rua, dos/as
indígenas, dos/as quilombolas, das mulheres e dos nossos irmãos e irmãs
LGBTTQIs[2] não
consegue compreender o divino se tornando humano a partir de Jesus Cristo.
Os pastores e as pastoras reconhecem o
poder popular nascido na periferia de Belém, cidade do pastor Davi que se
tornou rei bom. “É de ti Belém, a menor
entre todas as cidades, que virá o Salvador” (Miq 5,1), bradava a profecia
inspiradora do profeta Miqueias. Etimologicamente Belém (Betlehem, em hebraico)
significa Casa do Pão. Belém é a cidade de Davi, o menor entre os irmãos,
aquele que organizou os injustiçados da sociedade para lutar por um governo
justo, popular e democrático. O verdadeiro “rei dos judeus” não é violento e
sanguinário como Herodes, é um recém-nascido, nascido sem-terra e sem-casa e
tendo que se exilar às pressas, logo após o nascimento, como refugiado, para
não ser assassinado pelo poder repressor de plantão. Segundo o Evangelho de
João, o nascido na “Casa do Pão” se tornou Pão da Vida para todos/as (Jo
6,35-59). Os pastores e as pastoras intuem com sabedoria que o poder
democrático, participativo e popular vem da periferia, dos injustiçados, dos
pequenos.
O natal trombeteado aos quatro ventos
pelos arautos do mercado idolatrado é um antinatal, abusa do nascimento de
Jesus Cristo para auferir lucro e acumular capital, promovendo gastança,
viagens que resultam em centenas de mortes e comilanças; pior, humilham milhões
de pessoas que não podem gastar, viajar e nem promover comilanças. O Papai Noel
é um mentiroso, nojento e fantoche do ídolo capital que cumpre uma tarefa suja:
seduzir as crianças e as famílias para consumirem ao máximo até se consumirem e
se desumanizarem gradativamente. Quem não se alia à luta por direitos de
sessenta por cento dos brasileiros que sobrevivem com menos de um salário
mínimo por mês não consegue vivenciar o sentido sublime e profundo do Natal de
Jesus Cristo, está sendo mentiroso/a, pois não está abraçando o projeto de
Jesus, o Cristo libertador e salvador.
Quem é discípulo/a do menino que nasceu
como refugiado na periferia de Belém precisa insurgir ao lado de toda a classe
trabalhadora e camponesa e das forças vivas que lutam pela superação de todas
as injustiças. É hora de acordar do sono imposto por falsos pastores, falsos
padres, por fake news e pelas
contradições dos Partidos Políticos. É hora de despertar para as lutas de base
e massivas. Os poderosos aparentam ser gigantes, mas têm pés de barro, pois
estão recheados de contradições e mentiras. O menino Deus nascido na periferia
de Belém vive em todos/as que lutam por justiça social, justiça agrária,
justiça ambiental, justiça urbana e por direitos humanos fundamentais. Por
isso, no Brasil, em 2019, no Natal de Jesus: Deus se fez índio, quilombola ...
Belo Horizonte, MG, 23/12/2019.
Obs.: Os filmes e
vídeos nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1
- Palavra Ética na TVC/BH: Povo Indígena Kaxixó em Martinho Campos e Pompéu,
MG. 07/7/2019
2
- Povo indígena Guarani no Paraná X Itaipu: Palavra Ética/TVC/BH c/ frei
Gilvander. 01/12/2018.
3
- Quilombo histórico Lapinha, em Matias Cardoso, norte de MG: 170 famílias
ameaçadas de despejo. NEGOCIAÇÃO, JÁ! - Vídeo 1 - 24/7/2019.
[1] Frei e padre da Ordem
dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em
Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências
Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos
Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais, Queers e Pessoas Intersex.