Povos
Ciganos: Percursos, Resistências e Direitos de um povo milenar: o cerco está se
fechando sobre os ciganos?
Por Alenice
Baeta, Frei Gilvander Moreira e Thales Viote
Debate no Maio Cigano em Belo Horizonte/MG, na sede do
CEDEFES, dia 30/5/2018, com a presença de lideranças ciganas do Acampamento São
Pedro, em Ibirité, MG, e representantes de outros povos tradicionais, como
Merong Kamakã Mongoió, líder indígena da “Retomada” em Esmeraldas - Minas
Gerais. Foto: A. Baeta/CEDEFES.
Este
Artigo busca em linhas gerais traçar alguns momentos históricos marcantes de
perseguição e resistência do povo tradicional cigano, em específico, visando
subsidiar a compreensão do atual contexto que envolve a luta dessa categoria étnica,
as suas relações espaciais, sócio-políticas e seus direitos constituídos. Desafios contemporâneos que exigem o
estabelecimento de políticas públicas eficazes que combatam a ciganofobia e o
incrustado racismo das instituições e agentes do Estado brasileiro.
Sobre
as suas origens, evidências baseadas em testes de DNA ou códigos genéticos, bem
como na análise de línguas faladas pelo conjunto de etnias que constituem o que
hoje são genericamente denominados Ciganos, indicam que estes seriam
oriundos do noroeste da Índia, sendo que a sua diáspora forçada, ou melhor, a sua
perseguição política, religiosa e étnica, teria se iniciado por volta do ano
1000 da era cristã. As perseguições se deram possivelmente a partir das
invasões de muçulmanos e de mongóis em sua terra primitiva, os obrigando a se
deslocar por meio de diversas levas para localidades da Europa Central, via
Balcãs, Oriente Médio e África. (BAÇAN, 1999; MOONEN, 2011).
Durante
o século XV, já havia represálias oficiais aos ciganos em algumas localidades
da Europa Central e Reino Unido por meio de normas oficiais dos Estados que coibiam
a sua fixação ou mesmo a sua passagem por seus domínios. Nos séculos seguintes,
a Península Ibérica, por sua vez, bania e deportava sucessivamente famílias ciganas
para as suas colônias, inclusive para o Brasil. No entanto, o marco histórico mais
cruel de genocídio ocorreu na Europa, durante a Segunda Grande Guerra pelo
governo nazista de Adolfo Hitler, quando o Terceiro Reich determinou a
erradicação das populações ciganas: o Holocausto Cigano. Este momento trágico e
deplorável ficou conhecido como Baro
Porrajmos, na língua cigana, traduzida como “Grande Consumação da Vida
Humana”. O historiador Sybil Milton (1992), do Instituto de Pesquisas de
Memórias do Holocausto, dos Estados Unidos, sugere
que o número de pessoas ciganas exterminadas, inclusive em câmaras de gás
dentro de campos de concentração, pode ter atingido nessa ocasião aproximadamente
1.500.000 (Hum milhão e quinhentas mil) pessoas ciganas. Ciganos, judeus e
comunistas foram os povos que mais sofreram as atrocidades do totalitarismo nazifascista.
Segundo
o antropólogo Frans Moonen (2011), o registro mais antigo que relata a presença
de ciganos no Brasil se deu na fase inicial do período colonial, como exposto, por
volta de 1574, quando ciganos teriam sido degredados de Portugal, juntamente com
outros europeus considerados “indesejáveis”. Os ciganos foram deportados para o
Brasil com o estereótipo preconceituoso e a criminalização advinda do
colonizador que os associava a hereges, feiticeiros, bárbaros e eternos
peregrinos. (TEIXEIRA, 2008; SIBAR, 2012).
Segundo
o historiador Rodrigo Correa Teixeira (2008), que realizou uma meticulosa
pesquisa sobre o tema, o primeiro relato identificado sobre os ciganos em Minas
Gerais se deu em 1718, se referindo a ciganos migrantes da Bahia, que teriam
chegado lá também por terem sido deportados pela metrópole portuguesa. As
autoridades mineiras, por meio de suas diligências policiais, tentavam, desde
então, coibir e controlar as inúmeras comunidades ciganas que percorriam e se
instalavam em seu território, mas sem muita eficácia. Todavia, o ápice do
confronto entre Estado, por meio de suas forças policiais, e comunidades ciganas
ocorreu no final do século XIX, ainda no período Imperial, tendo sido
denominada “correria de ciganos”, que foram “movimentação destes em fuga, por
estarem sendo perseguidos pela polícia” (TEIXEIRA, 2008, p. 5). Os acampamentos
de ciganos nessa ocasião eram preferencialmente instalados em fazendas ou na
periferia das cidades, sendo o seu nomadismo tradicional e forçado também
compreendido como uma estratégia de fluidez e invisibilidade perante as normas
oficiais do Estado, normas consuetudinárias e cerceamento constante da
sociedade hegemônica. “Se por um lado eram forçados a ocupar as redondezas da
cidade, por outro, nos terrenos que acampavam, havia mais liberdade e espaço
para convivência familiar e comunitária que seria impossível na turbulência da
área central da cidade” (TEIXEIRA, 2008, p. 36).
Como
nômades ou sedentarizados perambulavam por caminhos inóspitos e improváveis,
acampando em áreas pouco propícias. Rechaçados permanentemente, os ciganos se
viam forçados a permanecer por pouco tempo nas cercanias das cidades, pois os
seus abarracamentos, a forma peculiar de circulação pelas ruas e logradouros,
além de seu comportamento e vestes coloridas tradicionais se situavam fora da
lógica reinante nas cidades que combatia a diferença preconizando a “assimilação”
e a homogeneização de sua população. Por isso, as ciganas e os ciganos deveriam
ser permanentemente combatidos e controlados sendo considerados fortes entraves
às intenções e lógicas da vida social mercantilista/burguesa, tendo em vista
que suas tendas se situavam ainda em áreas estratégicas de ‘expansão’/invasão
de fronteiras, reservas da especulação fundiária - apesar de ocuparem terras
baldias em regra temporariamente, “temia-se que nela se fixassem” (TEIXEIRA,
2008, p. 36). As forças policiais usavam assim vários estratagemas, se baseando
primeiramente nos Códigos de Posturas das municipalidades que previam a “branda”
expulsão de clãs ciganos para alhures ou mesmo para além dos limites da
província. A única “política pública” destinada aos ciganos pelo braço armado
do Estado era mantê-los em permanente movimento forçado.
“Uma
vez burlada a legislação, iniciava-se a segunda via, explicitamente violenta.
Procedia-se as perseguições instrumentais visando provocar um pânico entre os
ciganos. Assim, em um momento de grande movimentação de ciganos e de forte
repressão policial, surgiram as ‘correrias’ que frequentemente resultaram em
sangrentos tiroteios” (TEIXEIRA, 2008, p. 76).
Se
observarmos hoje a realidade das comunidades ciganas, não houve tantas mudanças
estruturais se compararmos o contexto atual das demandas e das denúncias das
comunidades ciganas com as do século XIX, sendo que as perseguições sofridas
hoje, ora veladas, ora explícitas, nada mais são do que a excrecência arcaica trajada
em nova roupagem de condutas repressivas e discriminatórias feitas pelo poder
público em vários de seus âmbitos. “Quando chegam aos espaços urbanos costumam
permanecer em terrenos na periferia em condições subumanas sem saneamento ou
energia elétrica” (NIQUETTI, 2013, p. 7).
O
que parece se diferenciar no cenário atual seriam, sobretudo, as conquistas das
inúmeras entidades ciganas na esfera dos direitos humanos e dos povos
tradicionais, em geral, em nível internacional, o que obriga os países
signatários ao cumprimento interno de suas diretrizes apesar dos fortes
contrastes entre o conteúdo impresso das leis e normas e a crua e violentadora prática
das suas instituições.
Durante
o 1º Congresso da União Cigana Internacional, realizado em Londres em 1971, foi
formada uma comissão de trabalho com o dever de esclarecer e divulgar junto aos
Estados- membros crimes e violações contra os povos ciganos, combatendo ainda o
anticiganismo, a ciganofobia e a xenofobia – medo/preconceito de cigano e medo/preconceito
de estrangeiro, respectivamente. Todavia, grupos e partidos de extrema-direita
na Europa continuam cultuando e incentivando a expulsão ou exclusão de ciganos,
reacendendo a fogueira de injustiças perpetradas contra este povo e suas
tradições milenares (MOONEN, 2011).
Em
2001 foi elaborado pelos representantes de delegações, organizações e clãs ciganos
a “Declaração dos Direitos Ciganos” durante o Conclave Continental dos Povos
Ciganos das Américas em Quito, no Equador, quando foi lembrada a preexistência
de comunidades ciganas em relação à conformação de muitas repúblicas atuais no
continente americano, sendo que a população cigana deve ultrapassar nas
Américas a cifra de três milhões de pessoas, exigindo o reconhecimento dos
Estados e Governos dos seus direitos coletivos. Dentre os inúmeros itens
importantes deste documento vale a pena ressaltar aqui um deles: “3 - Defender,
recuperar e valorizar a história e as tradições étnicas do nosso povo, assim
como proteger os direitos patrimoniais consuetudinários e o patrimônio cultural
e intelectual do povo cigano”.
Apesar
da inexistência de dados precisos acerca da população cigana no território
brasileiro, estimativas não oficiais sugerem que existam de 500 mil a um milhão
de ciganos no país, dos quais a grande maioria estaria em situação de
miserabilidade, pobreza e exclusão social (Moonen, 2013). Estima-se que o
estado de Minas Gerais abriga o maior número de ciganos no país.
Aqui
no Brasil, o necessário e legítimo Projeto de Lei denominado “Estatuto dos
Povos Ciganos”, sob patrocínio do senador Paulo Paim (PT), que está tramitando
no Congresso Nacional, - já deveria ter sido aprovado -, vem se somar a uma série
de iniciativas que visam buscar a dignidade e visibilidade dos povos ciganos e
o entendimento de suas peculiares demandas com relação ao acesso e o usufruto
de territórios, que pode ser de forma itinerante ou fixa, além de medidas
adotadas, a partir de 2013, pelas Secretarias Especiais de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e dos Direitos Humanos (SEDH) por parte
do governo federal. Tudo isso por luta e pressão das comunidades ciganas.
Em
Belo Horizonte, durante o Maio Cigano, de 2018, realizado dia 30 de maio, organizado
pelo Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES) em parceria com a
Comissão Pastoral da TERRA (CPT) no último mês, que contou também com a
presença do Procurador Dr. Edmundo Antônio Dias Netto, da Procuradoria da
República – Ministério Público Federal (MPF) e da antropóloga Beatriz Aciolly,
da Procuradoria da República em Minas Gerais (MPF), as lideranças ciganas
reafirmaram as discriminações que os povos ciganos têm sofrido por parte do
poder público municipal, inclusive, mencionando situações de outros
acampamentos ciganos da Região Metropolitana de Belo Horizonte e do restante do
estado de Minas de Minas Gerais.
Segundo
a liderança cigana Valdinalva Caldas, do Acampamento Cigano de São Pedro, em
Ibirité/MG: “Na cidade há lugar para deixar o lixo..., mas não arrumam um lugar
para nós ciganos...” Itamar Soares, também líder cigano, reforça ainda: “Estamos,
SIM, sendo encurralados... O cerco está se fechando para o povo cigano...”.
Os
relatos de integrantes dos povos ciganos tradicionalmente ágrafos (sem escrita)
deveriam ser muito bem considerados por todos e refletidos em busca de ações
afirmativas no combate ao racismo, à pobreza e à desigualdade. De fato,
parafraseando Teixeira (2008), a “SOBREVIVÊNCIA” foi, sem dúvida, a realização
mais duradoura e o grande evento da história das etnias ciganas.
Entretanto,
a resistência continua e os povos ciganos estão se organizando e contando com
uma crescente rede de apoio: Ministério Público Federal (MPF), Defensorias Pública
Estadual (DPE) e da União (DPU), CEDEFES, CPT, Movimento de Luta nos Bairros,
Vilas e Favelas (MLB), DEUMIH (Dra. Carine Silva), professoras/res de várias faculdades,
universidades e muitas outras forças vivas. A Comunidade Cigana do bairro São
Gabriel, em Belo Horizonte, por exemplo, já conquistou a Concessão de Uso do
Território em que está instalada a Comunidade, garantindo-se, assim, a
segurança de sua posse coletiva sobre a terra onde se instalaram. Dia 08 de
junho de 2018, a Comunidade Cigana de São Pedro, em Ibirité, MG, onde existem
mais de 80 famílias ciganas, conquistou, por meio da Defensoria Pública de
Minas Gerais da área de Direitos Humanos (defensoras públicas Cleide Nepomuceno
e Ana Cláudia da Silva, e o defensor Aylton Magalhães), a suspensão da Liminar
de Reintegração de Posse que exigia a expulsão de doze famílias da área que
ocupam há mais de sete anos (decisão tomada em plantão pelo Desembargador Audebert
Delage nos autos de agravo de instrumento número 1.0000.18.059043-2/001). A
luta pelos direitos dos povos ciganos continua e se fortalece. Feliz quem
reconhece as belezas milenares da cultura cigana e se compromete na luta em
defesa destes povos que dignificam a plural cultura brasileira!
Bibliografia
Consultada
BAÇAN, L. P. Ciganos, os filhos do Vento. São Paulo:
Ed. A Casa do Mago das Letras, 1999.
MOONEN, F. Anticiganismo – os ciganos na Europa e no
Brasil. Recife: 3ª Edição, 2011.
NIQUETTI, G. F. P.
Segregação Racial e os Povos Ciganos. In: Anais
do II Encontro da PIBDI Diversidade, 2013.
MILTON, Sybil. In Fitting Memory: The Art and Politics
of Holocaust Memorials. Detroit: Wayne State University Press, 1992.
SIBAR, L. M. L. Alteridade e Resistência dos Ciganos no
Brasil (Dissertação de Mestrado) UNESP, São Paulo, 2012.
TEIXEIRA, R. C. História dos Ciganos no Brasil. Núcleo
de Estudos Ciganos-NEC. Recife, 2008.
Brasil
Cigano- Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos / SEPPIR, Brasília, 2013.
Ibirité, MG, 10 de junho de
2018.
Obs.:
Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.
Acampamento
Cigano de São Pedro, em Ibirité/MG: A Voz da Mulher por respeito e direitos.
26/5/2018.
Acampamento
Cigano São Pedro: clamor por terra e direitos, em Ibirité/MG. 25/5/2018.